A condenação de cinco ex-comandantes e do último ditador argentino, general Reinaldo Bignone( 1982-1983) por detenção ilegal e tortura de presos políticos, mostra a dimensão poética do regime democrático. Se toda poesia é um ato de assombro, a plenitude dos direitos humanos só existe em sociedades que se reinventam em suas grandes recusas. O espanto diante da beleza da vida só é possível quando conjugado a um inequívoco terror diante do sofrimento humano. Não há liberdade sem negações assertivas, sem um não inaugural. Quando a tensão dialética dá lugar a pactos políticos íntraelites, as transições para a democracia costumam não passar de perigosos pastiches.

Os julgamentos dos acusados de crimes durante a ditadura militar foram retomados em 2005, depois da revogação das “leis do perdão”- Ponto Final e Obediência devida – aprovadas na década de 1980. Ao revogá-las, o ex-presidente Néstor Kirchner reafirmou que, em sociedades autenticamente democráticas, não existem Constituições que contemplem tutelas fardadas sobre o Estado e os poderes da República. Se permanecerem frágeis as mediações entre política e sociedade, a possibilidade de recuo para formas nitidamente autoritárias conserva-se como espectro a rondar conquistas recentes. Quando se definiu como “filho” das mães e avós da Praça de Maio, Kirchner voltou no tempo para resgatar o futuro.

Em 1983, a sociedade civil argentina reagiu de forma claramente adversa à lei de anistia que o regime militar acabara de proclamar. Várias organizações de Direitos Humanos mantiveram milhares de pessoas nas ruas pedindo a aparição com vida dos desaparecidos e a punição dos responsáveis por tudo. Eram estes os dois objetivos que o projeto dos militares pretendia frustrar: sem a grande recusa não se poderia investigar o destino das vítimas da ditadura, e punir os agentes do Estado envolvidos com o desaparecimento de mais de 30 mil pessoas, das quais aproximadamente 400 eram crianças. A “lei da anistia” beneficiava, fundamentalmente, os autores de “todos os fatos de natureza penal realizados na ocasião ou por motivos de ações dirigidas a prevenir, conjurar, ou acabar com as atividades terroristas, qualquer que seja o bem jurídico lesado”, compreendendo “os delitos comuns conexos e os delitos militares conexos”, determinava ainda que ninguém poderia ser ” interrogado, investigado, convocado a depor ou inquirido” sobre aqueles fatos. Não fosse a firme resistência da sociedade argentina, este dispositivo legal impossibilitaria às famílias dos desaparecidos lutar por sua recuperação, saber por que foram presos ou mortos e, neste último caso, recuperar seus restos.

Há 27 anos, a resistência democrática preservou a justiça reclamada e sustentou seus princípios. Rejeitou um diploma que consagrava, perigosamente, o princípio da impunidade para uma repressão ilegal que, pela sua natureza e magnitude, agravou a consciência ética da humanidade. Era o primeiro passo para a reconstrução do tecido social, para a consolidação de uma cultura democrática que faria dos Direitos Humanos uma política de Estado. O general Bignone talvez não saiba,mas foi aquele o momento em que seu julgamento começou. O dele e o de vários oficiais da ditadura que foram condenados à prisão perpétua.

Seremos efetivamente um país democrático quando aprendermos a lição argentina. Essa luta não é apenas de grupos de direitos humanos e membros do governo, como o ministro Paulo Vannucchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos. Reabrir os casos e promover a revisão da Lei da Anistia é ampliar a democracia. Como afirmou Guillermo O’Donnel, cientista político argentino, “todas as transições se fizeram pela coligação de alguns contra outros. No Brasil, a transição parece ser tarefa de todos com todos no qual tudo se admite, com exceção do conflito e da competição” Precisamos decidir o que queremos: ou transformamos nossas “Escolas Mecânicas da Marinha” em Museus da Memória ou deixamos que a consciência da impunidade permaneça como um cadáver que nos sorri. Os “dossiês especiais da Rede Globo” continuam sancionando o consulado militar e sua versão da história. Quando virá nossa recusa?

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Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil

Fonte: Carta Maior