Por Elias Jabbour

Por Elias Jabbour, geógrafo e pesquisador da Fundação Maurício Grabois

Cheguei faz exatamente sete dias na China, com primeira – e óbvia escala – em Pequim. De imediato, desde o aeroporto até o albergue em que me encontro, estou estupefato com o que tenho observado. Santa ignorância! “Eles” vão crescer 8% este ano!

Neste meu terceiro périplo pela China desde 2004, pretendo ainda passar por Xangai, talvez Shenzen e Xian. Com um intervalo de 15 dias na Coréia do Norte. Ainda estou zonzo, tentando assimilar tanta informação e observações. Mas posso vaticinar que desde 2004 simplesmente tudo mudou por aqui. Tentarei, no âmbito do genérico, passar algumas impressões.

Pequeno prólogo

De um olhar influenciado pela emoção da “primeira vez” em 2004, passando por uma rápida visita de trabalho em 2007, agora com uma dupla responsabilidade de terminar minha pesquisa de doutorado e ampliar contatos da nossa Fundação Maurício Grabois. Acredito que de cinco anos para cá o acúmulo de novos aportes teóricos, leituras e impressões, de forma inicial, capacitaram-me a captar a essência somente com a visualização da essência do fenômeno.

Isso significa que é muito tocante perceber em Pequim a não existência de favelas (afinal, o frio que pode alcançar 20 graus negativos torna impraticável este tipo de habitação) e a redução de sub-habitações. Como discurso de propaganda pode ser bom. Ao progresso de nossa causa não resolve muita coisa.

Interessante é perceber a relação entre o desenvolvimento de um país que advoga o socialismo e o surgimento de um padrão “socialista” de urbanização após mais de 90 anos da Revolução Russa e quase sessenta da fundação da República Popular da China.

O problema das cidades tem sido motivo de muita dor de cabeça para nós brasileiros. Infelizmente, a meu ver, não conseguimos ainda sair da “pré-história do marxismo” neste sentido. O idealismo de um jovem Marx ainda conforma a essência dos “elaboradores” de “políticas públicas” voltadas ao desenvolvimento urbano. Por exemplo, na luta pela elaboração e execução de planos diretores.

Se colocarmos a relação entre especialização da agricultura e o processo de industrialização, mais a transferência às cidades das crises de superpopulação agrária, a coisa piora e os defensores da “economia natural do socialismo” lhe taxam de algum rótulo politicamente correto. Os comunistas, amantes do “comunismo primitivo”, idem. Proclamar o “marxismo-leninismo” aos quatro ventos sem um mínimo conhecimento de como as coisas funcionam pode ser um exercício, no mínimo, vexatório.

Digo tudo isso para provocar discussões mais consequentes em nosso meio. Pequim e seu desenvolvimento podem ser um parâmetro razoável para algumas coisas.

Modelo soviético, planejamento e transportes

Sob o capitalismo, quase que naturalmente, a terra acaba que por se transformar em ativo financeiro, forma de abertura de novos campos de acumulação. Isso inicia-se no campo com a transição do parâmetro “terra” para o parâmetro “capital” e ganha desenvoltura com a financeirização, gerando o que Ignácio Rangel descobriu e denominou de “Quarta Renda Diferencial”, originada pela hipertrofia da especulação imobiliária, tornando o solo urbano fator de ultravalorizações, dependendo das formas como os transportes se desenvolvem.

Pois bem, como a herança soviética pode nos ajudar à compreensão deste processo? O planejamento permite ao programador quase que anular a ação espontânea das econômicas (via rendas diferenciais) na medida em que a partir de uma ampla visão que relacione doses (homeopáticas ou não) de mecanização da agricultura com a ampliação dos meios de transportes de forma que, por exemplo, a expansão metroviária seja mais rápida que a transferência de pessoas do campo à cidade.

Não é simples este tipo de análise, mas pelo pouco que podemos perceber, os chineses foram muito competentes na internalização destes mecanismos, outrora bem sucedidos na União Soviética, ao desenvolvimento de cidades como Pequim. Interessante notar que Pequim foi uma das primeiras execuções de planejamento urbano na história humana. Isso faz nada mais nada menos que cerca de dois anos atrás.

O exemplo de Pequim

Pequim em grande medida aplica com muita competência o “modelo soviético” por aqui. Pode-se perceber que ao tomar o metrô, e ao sair do perímetro central da cidade, no extremo oeste só visualiza-se a estação de metrô e, em muitos casos, a zona rural da cidade. Cinco anos atrás, nas estações mais antigas zonas de desenvolvimento floresceram com prédios e conjuntos habitacionais.

Para exemplo de comparação, no Brasil a ação das rendas diferenciais faz com que populações inteiras sejam expulsas pela valorização do solo. Este fenômeno, outrora exclusivo dos países periféricos, recentemente tem ocorrido em outras cidades do centro do sistema.

Na Pequim de um país que para muitos já “restaurou o capitalismo”, a propriedade estatal da terra (um dos setores estratégicos da economia) amortece o efeito das rendas diferenciais, conformando um todo urbano não uniforme, mas longe das anomalias que assistimos no ocidente. Trata-se de uma cidade com um grande centro (Tiananmen), mas com centros “regionais” muito bem organizados, em desenvolvimento.

Diferente da “bagunça urbana” de São Paulo e Rio de Janeiro, Pequim se desenvolve sob os auspícios da propriedade estatal da terra e do planejamento. É risível as promessas de expansão do metrô por candidatos a prefeito de certas cidades (inclusive de esquerda).

Mas nem tudo são flores. Não podemos nos esquecer que a China é uma economia de mercado e onde existe mercado existe lei do valor e ação das rendas diferenciais. Não somente isso, a transformação do crescimento chinês de algo “quantitativo” para outro de tipo “qualitativo” trás consequências como a ainda existência de mendigos pelas ruas.
Muito menos que em 2004, pois desde então a “Quarta Geração Dirigente” tem tomado a frente da luta pela diminuição das desigualdades regionais e sociais. E a própria crise financeira cumpriu o papel de “retorno” de muitos camponeses aos seus núcleos familiares. Abrindo parêntese, fui a alguns dias atrás à estação oeste de trem de Pequim e pude perceber que a saída de pessoas, segundo relatos que coletei, tem sido, pela primeira vez na história, maior que a entrada. Interessante.

Já sob outra ótica, a China ainda se encontra na etapa primária do socialismo, logo a convivência entre o velho e o novo se expressa no cotidiano urbano do país. Exemplo desta contradição no concreto está na formação de uma demanda muito mais rápida que as capacidades produtivas do país podem suportar. Isto não é anarquia da produção e sim uma lei econômica objetiva, pois, como diz meu orientador Armen Mamigonian, não se pode se espelhar nos soviéticos que buscaram ao máximo equalizar o país “por baixo”.

Retornando, no concreto isso significa que um aumento brutal de carros nas ruas encontra correspondência mais lenta em novas avenidas e estações de metrô. Em 2004 existiam cerca de 50 estações de metrô, hoje está na casa das 150. Grande, porém insuficiente crescimento.

Daí ser nodal analisarmos outro elemento constituinte desta dialética, o “capital financeiro” do país e da cidade como suporte ao processo de crescimento e, consequentemente, urbanização.

Por fim, o elemento financeiro

O problema do campo somente será plausível de solução nos marcos do amplo desenvolvimento das cidades. A solução reside na abertura de novos campos de investimentos nas grandes metrópoles. Ignácio Rangel defendeu com unhas e dentes – e isoladamente – esse tipo de alternativa ante um chamado, pelos estruturalistas, “crescimento com desenvolvimento” (algo mais socialdemocrata e “politicamente correto” impossível).

Ora, o elo da cadeia entre a reprodução do desenvolvimento econômico e seu similar urbano está (para a indústria) na fusão entre capital bancário e industrial (capital financeiro) e na fusão entre esse capital financeiro com o aparelhamento de um sistema bancário capaz de suportar as demandas da urbanização.

Desta forma, especulo que o legado chinês ao problema da urbanização e do desenvolvimento das cidades ante os problemas de superpopulação e superprodução agrários (Marx) tem bases reais somente no aparelhamento de sistemas municipais de financiamento (Banco de Pequim, Banco de Xangai, Banco de Desenvolvimento de Shenzen, por exemplo) da produção e de imensas obras públicas.

Na Pequim de hoje, tendo de fazer frente a problemas de ordem estruturais (trânsito) e conjunturais (crise), a saída encontrada está na ampliação de campos de investimento capazes de gerar milhares de empregos ao mesmo tempo em que desate pontos de estrangulamento.

Centenas de avenidas estão sendo alargadas, inclusive a avenida central (Changhan), e os metrôs estão em expansão. Em outro campo, a municipalidade – segundo relatos – financiou completamente a troca dos antigos ônibus (altamente poluidores) por ônibus (de fabricação chinesa) de até dois andares.

Além disso, a frota de táxi está completamente renovada em relação aos carros antigos que dominavam o cenário em 2004. Trata-se de carros (tem até Toyota) novos, confortáveis e muito baratos. Os táxis vivem cheios, logo uma nova forma de acúmulo foi viabilizada. Enfim, poderia continuar com muitos exemplos, mas preciso ficar por aqui.