O dia 16 de março de 2016 entrará para a história do Brasil como aquele em que mais claramente o golpe contra a democracia (já em franca marcha) assumiu a evidente feição do fascismo contemporâneo. A divulgação ilegal pela mídia de escutas telefônicas de conversas entre o ex-presidente Lula e a presidenta Dilma atestou, mais uma vez e cabalmente, o conluio ilegítimo e golpista entre a República de Curitiba, chefiada pelo capataz do tucanato Sérgio Moro, setores reacionários da Polícia Federal e a mídia venal e subserviente aos interesses da velha casa-grande.

Estimuladas pela irresponsabilidade insana dos meios de comunicação vendidos, especialmente pela Rede Globo, hordas cheias de ódio foram às ruas no anoitecer do dia 16. A trilha sonora combinava o panelaço das varandas gourmet com berros horrendos. Somado ao que estava na TV, o espetáculo era de arrepiar. Era o anúncio de mais uma longa noite de ditadura?

São, de qualquer modo, cenas que não devemos esquecer, pois o fascismo saiu definitivamente da teoria e foi para a prática, a um passo de se tornar a nova moda nacional. Precisamos dar nome aos bois.

É fundamental repetir: o nome do movimento que avança sobre o país é fascismo. É uma nova forma de fascismo como componentes contemporâneos locais e cosmopolitas que é preciso especificar.

Este novo fascismo é constituído um conjunto de determinações que envolvem todos aqueles que se julgam imunes a ele ou que o defendem. Ninguém estará a salvo com a sua vitória.

Este novo fascismo pede reação de quem acredita na democracia. Este novo fascismo vai durar um bom tempo, caia ou não o Governo Dilma Rousseff.

Esse novo fascismo é constituído por uma argamassa de classe muito clara. É preciso nomeá-la. Trata-se da nossa velha e boa elite branca, que sempre confundiu direito com privilégio, que é contumaz sonegadora de impostos, que acha que viver bem é ter regalias. Esse novo fascismo é feito de gente que é contra gays, contra cotas nas Universidades, contra as ações de promoção social como o Bolsa Família e o Mais Médicos. Esse novo fascismo é feito de gente que cresceu durante a democracia, que não perdeu nada durante os governos de Lula e Dilma, e muito pelo contrário. O novo fascismo, sobretudo, é animado por gente rancorosa, violenta e cheia de autopiedade: ninguém pode ser mais vítima do que eles; até do sofrimento eles querem ter o monopólio. Esse novo fascismo quer aniquilar o outro, e descarregar nele todas as sombras que recalca dentro de si. Esse novo fascismo é animado por gente que projeta no outro (no outro de classe) tudo o que vê de mal dentro de si mesmo. Para esses sonegadores odientos, corrupto é sempre o político adversário; para esses caprichosos descendentes de senhores de escravos, ignorante é sempre o povo trabalhador. É esta a argamassa social que puxa os gritos de “Fora Dilma”, “Fora PT”, ao arrepio de qualquer sensatez republicana e democrática. E são fascistas porque o seu ethos é o da negação da política e o da negação da reflexão. Não desejam fazer uma disputa democrática das consciências, querem impor pelo berro e pela força a sua estreita e preconceituosa visão de mundo. Se não acordarmos, esse fascismo vais nos empurrar o seu mundo tétrico goela abaixo. Uma sociedade que nega a política, é uma sociedade que nega as instituições democráticas, que entrega imediatamente o comando das nossas vidas aos interesses espúrios do Capital. As últimas manifestações contra o Governo Dilma mostraram que eles deixaram de ser uma massa amorfa e passaram a ser uma hoste fascista, como uma coesão de propósitos admirável e perigosa.

Essa hoste fascista tem a seu favor uma poderosa máquina de produção de consenso e de consciência conservadora. Essa é a cara midiática do novo fascismo. Com as Organizações Globo à frente, a indústria de ódio fascista assumiu o desespero para derrubar o Governo Dilma e tudo o que ele representa. Nesse caso, o jornalismo virou apenas um apêndice do entretenimento banal e transformou seu dever investigativo em produção de consenso conservador. Há uma tendência ao monopólio da informação, há uma clara raiz de classe na maneira como a pauta é arquitetada para demonizar os políticos de esquerda. Basta ver como, estranhamente, o vazamento das conversas arapongadas de Lula e Dilma vieram a público pouco antes do Jornal Nacional, numa demonstração de que o que se desejava era mesmo derrubar o Governo, se possível durante o plantão jornalístico, para delírio das massas patéticas e incandescidas. Uma mídia vendida é antidemocrática. Uma mídia vendida é uma coluna deste novo fascismo contra o qual queremos lutar e que precisamos nomear como tal. Uma mídia fascista é aquela que atua como o partido político, de essência totalitária, num ambiente social que nega a política. Uma mídia fascista é uma mídia a serviço do pensamento único, tomando como único pensamento que vale aquele que interessa aos velhos donos do poder.

Por falar em velhos donos do Poder, esse novo fascismo tem um braço parlamentar. Trata-se do Congresso mais vendido, corrupto e conservador da história recente. Uma verdadeira tropa de jagunços de interesse corporativistas, um bando de balconistas de negociatas que até agora não mexeram uma palha para fazer o país se movimentar para safar-se do lodaçal da crise econômica internacional. Este é um Congresso de matiz fascista porque tem como chefes das duas câmaras dois indivíduos formados e pós-graduados nos esquemas de corrupção mais velhos e bastardos da República. Renan Calheiros e Eduardo Cunha só teriam moral para chefiar câmaras de estados de exceção, pois com a sua expertise comprovada em trair os interesses da nação em prol do enriquecimento individual e de seus compinchas e lacaios, são dois verdadeiros baluartes da ocupação do espaço democrático com interesses privados. São velhos abafadores de escândalos e aborteiros de investigação. Este é um Congresso fascista também porque suas maiores bancadas representam o que há de mais conservador na sociedade brasileira: religiões neopentecostais que adoram o dinheiro e massacram a consciência do povo, representantes do agronegócio que se lixam para o meio ambiente e as implicações deletérias do campo ocupado pelos interesses do grande capital, histéricos senhores brancos de “bem” que defendem o armamento da população para angariarem alguma propina dos grandes grupos produtores de arma. Esse Congresso fascista nasceu de um ovo plantado em 2013, quando manifestações que negavam a política abriram espaço para o crescimento e a institucionalização do neoconservadorismo. Trememos ao imaginar: que Congresso viria após um golpe fascista como o que ora se gesta?

Este espetáculo que vemos hoje é um novo fascismo e tem tentáculo armado e institucional. São agentes da Lei que agem politicamente à revelia da lei. Fraudam processos e provas, perseguem figuras públicas de esquerda, promovem seletividade no fornecimento de informações à população. Este tentáculo institucional do novo fascismo tem como representante central a figura de Sérgio Moro, que protagonizou um verdadeiro atentado à soberania nacional ao grampear a conversa de uma presidenta eleita democraticamente. Não bastasse isso, o juiz fascista é pródigo em apresentar-se em eventos promovidos por endinheirados e por partidos políticos que já foram chamados de social-democratas, mas que hoje são apenas uma tíbia sombra disso. O juiz fascista é dado a faceiramente dar declarações sobre o processo da Lava-Jato e não se furta a se deixar fotografar ao lado de figuras mais do que implicadas em processos judiciais que as envolvem claramente em corrupção. Basta notar o caso emblemático do seu jagunço mais famoso, o famoso “Japonês da Federal”, afundado até o pescoço em um lamaçal terrível de corrupção. Na sanha desqualificadora da política das classes que puxam o fascismo para a rua, ambos, o juiz fascista e o agente corrupto, estão erigidos perigosamente ao patamar de verdadeiros heróis nacionais. A prerrogativa de ser o líder dos ensandecidos, é claro, cabe ao dono das indefectíveis camisas negras, a cor emblemática do fascismo.

Vale dizer ainda que este fascismo tem um nome econômico de escala global. Ele se chama neoliberalismo e avança com a bandeira da austeridade, ceifando salários, provocando fome, miséria e aumento da desigualdade. O evangelho da austeridade tem seus coroinhas locais, até infiltrados no atual Governo, e principalmente implantados nas agências de avaliação de risco e nas consultorias econômicas que prestam serviços à mídia fascista. Esses agentes econômicos do neoliberalismo e pregadores do evangelho da austeridade são fascistas porque monopolizam a opinião pública a respeito da necessidade imperiosa de continuar aplicando remédios amargos, mas, é claro, sempre em desfavor da população mais vulnerável. Eles são fascistas porque nos negam a possibilidade de imaginar uma outra realidade econômica global, em que a verdadeira batalha ética seja a da diminuição das desigualdades, através de um processo de distribuição de renda que retire dinheiro dos mais ricos e o entregue aos mais pobres. Pensar que é impossível um mundo diferente, que o Estado nada pode fazer, é jogar no time do fascismo, o fascismo que nega a política e a capacidade do Estado de racionalizar democraticamente, em favor dos mais pobres, o pacto social burguês.

O nome de tudo isso é fascismo. Não podemos nos iludir pensando que se trata de apenas derrubar o governo do PT. Trata-se de jogar a política na lata de lixo, trata-se de perseguir os que defendem um mundo melhor e a soberania popular, trata-se de criminalizar os movimentos que expressam os desejos de dignidade dos humilhados. A classe média atordoada e amedrontada está agora sendo interpelada a se posicionar. Por tradição, a pequena burguesia atemorizada, alia-se ao fascismo. A tarefa de quem está no campo progressista é disputar essas consciências: com argumentos, racionalmente, com paz e serenidade. Não é hora de distribuir golpes e desaforos. É hora de usar o melhor que temos, nossa inteligência e nossos afetos, nossa força de militância e nossa aguerrida disposição de ir para as ruas em paz. Nós somos da paz mas não temos medo. Nosso maior desafio é conter o avanço definitivo deste novo fascismo que está à solta nas ruas e nas telas dos telejornais, imergindo o país num caos do qual ele não sairá rapidamente. Para isso, é imperioso defender hoje Lula e Dilma, sob pena de que, em alguns meses, sejamos todos linchados em praça pública. E todos, até os que defenderam o fascismo, estarão muito menos livres.

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). Acaba de lançar o livro de poemas e outros nem tanto assim (7letras, 2015). www.alexandrepilati.com

*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.