Leia também a resposta dos professores da UFMA Fábio Palácio e Cristiano Capovilla ao artigo de Carlos Eduardo Gonçalves e Marcos Lisboa.

Em novembro de 2008, a rainha Elizabeth 2ª ousou fazer a pergunta que os sábios da London School of Economics não queriam ouvir: por que nenhum previu a crise financeira de 2008? A pergunta perturbava a ortodoxia neoclássica, e a comissão formada ofereceu à rainha uma resposta singela: houve uma falha coletiva de “imaginação” de economistas que viam árvores, mas não a floresta.

Mais singela foi a resposta do presidente do Banco Central dos EUA entre 1987 e 2006, Alan Greenspan. Em depoimento à comissão do Senado para investigar a crise, Greenspan admitiu que havia uma falha na “ideologia” e no “modelo” que usava para interpretar o mundo. Nada mal para quem se dedicara por anos à desmontagem dos controles à livre movimentação financeira alegando que os “agentes racionais” do mercado usavam os modelos econômicos corretos e asseguravam o melhor equilíbrio possível na determinação dos preços e na alocação dos recursos.

Não faltou imaginação à resposta do patrono da revolução neoclássica desde os anos 1970, Robert Lucas. Embora há anos defendesse que, se os agentes fossem racionais, usariam as teorias dele (Lucas) para entender a estrutura da economia e prever o futuro da melhor maneira possível, o patrono das “expectativas racionais” escreveu em artigo na revista “The Economist” em 2009: “A crise não foi prevista porque a teoria econômica prevê que estes eventos não podem ser previstos”. Ou seja, por axioma (ou ideologia), os indivíduos são racionais, suas interações nos mercados são eficientes e, portanto, a crise que aconteceu não poderia ser prevista.

O argumento que a probabilidade do que ocorreu, como calculou o Goldman Sachs, era igual a de ganhar 22 vezes seguidas na loteria cobria de retórica cientificista o fracasso em prever, ao menos, o movimento do sistema no sentido da instabilidade e da crise. Não era por falta de experiência histórica: desde 1980, a desregulamentação financeira avançou e, com ela, a frequência e a intensidade de crises que supostamente ocorreriam apenas três vezes na vida do universo.

A cada crise, os economistas neoclássicos não jogaram fora modelos teóricos sobre os quais construíram tanto reputação acadêmica quanto laços rentáveis, bem documentados, com instituições financeiras e “think tanks” neoliberais. Eles simplesmente culparam alguns “desvios” da realidade em relação ao modelo (desvios esses, aliás, “descobertos” ex-post). O inferno é a realidade, não o modelo simplório.

Pior para os economistas neoclássicos é que, além das personagens simpáticas do filme “A Grande Aposta”, não foram poucos os economistas heterodoxos que previram a crise financeira, embora nenhum super-homem o tenha feito com o nível de exatidão do agente representativo que povoa os modelos neoclássicos de equilíbrio geral. O que explica o fracasso da ortodoxia em ver a floresta?

AXIOMA

O principal elemento definidor da ortodoxia neoclássica é o axioma de indivíduos racionais e maximizadores de utilidade, que interagem em livre concorrência para alcançar um equilíbrio estável na circulação de bens e serviços. Embora este indivíduo seja um axioma teórico não observado na realidade, é com base na suposição de sua existência que os “desvios” observados na realidade podem atrasar o equilíbrio geral ou gerar equilíbrios sub-ótimos: não há imperfeição na realidade sem a perfeição subjacente ao modelo teórico.

A metafísica e a epistemologia da corrente dominante ocultam uma ontologia do econômico que postula certa concepção do modo de ser, uma visão da estrutura e das conexões da “economia de mercado”. Para este paradigma, a “sociedade” onde se desenvolve a ação econômica é constituída pela mera agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não necessários ou estruturados pela sociedade.

Essa visão se inspirou no paradigma da física clássica. Explicamos melhor este ponto com a ajuda de Roy Bhaskar: se a concepção é atomística, então todas as causas devem ser extrínsecas. E se os sistemas não dispõem de uma estrutura intrínseca (isto é, esgotam-se nas propriedades atribuídas aos indivíduos que os compõem), toda ação deve se desenvolver pelo contato. Os indivíduos “atomizados” não são afetados pela ação e, portanto, ela deve se resumir à comunicação das propriedades a eles atribuídas.

Assim, os indivíduos maximizadores são partículas que jamais alteram suas propriedades na interação com as outras partículas carregadas de “racionalidade”. Os fundamentos da teoria econômica dominante definem coerentemente o mercado como um ambiente comunicativo cuja função é a de promover de modo mais eficiente possível a circulação da informação relevante.

Essa ontologia tem uma expressão metafísica e outra epistemológica. A metafísica reivindica o caráter passivo e inerte da matéria e a causação é vista como um processo linear e unidirecional, externo e inconsistente com a geração do novo, ou seja, com a emergência que caracteriza a dinâmica dos sistemas complexos.

Na versão epistemológica, reduto preferido do positivismo, os fenômenos são apresentados como qualidades simples e independentes, apreendidas através da experiência sensível. Nesse caso, a causalidade é vista como a concomitância regular de eventos, que se expressa sob a forma de leis naturais, depois de processada pelo sujeito do conhecimento capaz, então, de prever efeitos no futuro.

Curioso é que, inspirada na física clássica, a ortodoxia neoclássica parou no tempo e não acompanhou a teoria dos sistemas complexos (ou do caos). A teoria da complexidade foi anunciada no final do século 19 por Henri Poincaré ao estudar a formação das órbitas dos planetas no Sistema Solar, mas foi redescoberta pelo meteorologista e matemático Edward Lorenz em 1960.

Lorenz descobriu que, com variações mínimas das condições iniciais (nunca capturadas precisamente pelos modelos), o tempo evoluiria de modo a tornar qualquer previsão inicial de pouco valor. Os erros e incertezas interagem, se multiplicam e formam processos cumulativos. A complexidade do sistema exigiria, mais do que uma previsão exata a partir de supostos iniciais irreais, que se proceda com base em um escrutínio profundo das condições iniciais e do modo como a estrutura do sistema vai se modificando, chegando por aproximações sucessivas aos cenários possíveis da evolução a partir de um arco inicial de trajetórias potenciais.

A irreversibilidade do tempo histórico e a dependência do sistema em relação à sua trajetória são elementos centrais da física do século 20. Em “Entre le Temps et l’Eternité” (entre o tempo e a eternidade), Ilya Prigogine e Isabelle Stengers mostram que as fenomenologias descritas pela termodinâmica, pela física das partículas e pela teoria da relatividade “não só afirmam a seta do tempo, mas também nos conduzem a compreender um mundo em evolução, um mundo onde a ‘emergência do novo’ reveste um significado irreversível (…) O ideal da razão suficiente supunha a possibilidade de definir a causa e o efeito, entre os quais uma lei de evolução estabeleceria uma equivalência reversível”.

Ao manter o paradigma atomista, a ortodoxia neoclássica perde capacidade de explicar e, portanto, prever comportamentos emergentes de um sistema complexo como a economia capitalista. Em “Decoding Complexity” (decodificando a complexidade), James Glattfelder escreve com rigor: “A característica dos sistemas complexos é que o todo exibe propriedades que não podem ser deduzidas das partes individuais. Em suma, a teoria da complexidade trata de investigar como o comportamento macro decorre da interação entre os elementos do sistema”.

Ao encontrar problemas de agregação insolúveis na tentativa de reduzir propriedades do sistema a propriedades dos indivíduos, a macroeconomia neoclássica reage não para incorporar a complexidade da realidade, mas para simplificar axiomas fundamentais ainda mais. Quando se demonstrou matematicamente que, dada a heterogeneidade dos indivíduos, não é possível prever o formato da função de demanda agregada e, muito menos, gerar uma função de demanda agregada com o formato propício para o equilíbrio maximizador, os neoclássicos preferiram a simplificação absurda: que o sistema pode ser modelado como se tivesse um único agente representativo que compra, vende, trabalha, contrata, consome e poupa, empresta e toma emprestado, que tem um único modelo sobre como a realidade funciona e que conhece a distribuição de probabilidade de todas as contingências futuras.

Inconsistências de agregação semelhantes para a teoria do capital ou para a curva de oferta agregada foram simplesmente desconsideradas. O método não trata da abstração da complexidade para reter seus aspectos essenciais, mas da eliminação da complexidade para manter a ficção reducionista e simplória do equilíbrio entre indivíduos maximizadores.

JUÍZOS DE VALOR

Tamanho apego da teoria neoclássica ao reducionismo da física clássica e ao axioma do indivíduo atomizado é impregnado por juízos de valor. Herda a previsão feita por Adam Smith e radicalizada pelo modelo de equilíbrio geral que, mantidos livres em sua interação, os indivíduos alcançariam um equilíbrio estável e maximizador, orientados pelo sistema de preços para alocar recursos escassos.

O indivíduo maximizador é tomado como um elemento natural e eterno cujas preferências mudam exogenamente ao sistema de interações. As interações têm sempre o mesmo modelo e não são afetadas pela irreversibilidade da história e por mudanças estruturais que caracterizam a complexidade social.

Tal complexidade é o principal elemento unificador das heterodoxias econômicas. Ao invés de reduzir a ação a um indivíduo representativo, os indivíduos são classificados e posicionados em uma estrutura que os divide como sujeitos sociais cuja harmonia não pode ser pressuposta: trabalhadores e capitalistas, empresários, banqueiros e rentistas. A estrutura é assimétrica pois certos indivíduos controlam a riqueza, mas é mutável e interage com estratégias de organizações empresariais, classes e grupos sociais, Estados e sistemas econômicos nacionais que têm poder desigual e que não podem ser previstas.

Instituições e convenções sociais podem conferir uma estabilidade transitória ao sistema, mas processos de causação cumulativa (feedbacks positivos) o afastam do equilíbrio e geram uma dinâmica instável, sujeita à irreversibilidade histórica. Assim, problemas de coordenação em condições de incerteza impedem a maximização no uso dos recursos ociosos e podem até mesmo provocar crises duradouras.

Concordamos com Marc Lavoie de que são pelo menos sete as falácias de composição que, como propriedades emergentes do sistema capitalista, a ortodoxia não é capaz de compreender e prever. O paradoxo da poupança é o mais conhecido: se todos os agentes buscarem poupar ao mesmo tempo, a queda de suas receitas frustra seus objetivos e pode provocar falências e até crises financeiras.

A recente adesão neoclássica à doutrina da austeridade expansionista mostra que pouco se aprendeu com a complexidade da crise financeira. No Brasil, a ideia de que o aumento da poupança pública animaria o gasto privado e geraria crescimento da arrecadação tributária estava na base da expectativa de mercado que a economia cresceria 0,8% em 2015, depois que Joaquim Levy anunciou seu programa. Já Levy previu que seu programa geraria uma “recessão de um trimestre”, antes de persistir em um esforço fiscal que foi o dobro do que propusera, com resultados desastrosos.

Não há receita simples para o economista do século 21, mas Keynes propunha combinar os talentos complexos do “matemático, historiador, estadista e filósofo (na medida certa). Deve entender os aspectos simbólicos e falar com palavras correntes. Deve ser capaz de integrar o particular quando se refere ao geral e tocar o abstrato e o concreto com o mesmo voo do pensamento. Deve estudar o presente à luz do passado e tendo em vista o futuro. Nenhuma parte da natureza do homem deve ficar fora da sua análise. Deve ser simultaneamente desinteressado e pragmático: estar fora da realidade e ser incorruptível como um artista, estando embora, noutras ocasiões, tão perto da terra como um político”.

Talvez seja uma receita para o economista do século 21, avessa aos que insistem em imitar os cientistas naturais dos séculos 17 a 19.

LUIZ GONZAGA BELLUZZO é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS é professor associado do Instituto de Economia da Unicamp.