Agradeço pelo convite, ao qual eu não poderia recusar por duas razões: primeiro porque a Fundação Maurício Grabois é parceira há muitos anos, da Fundação Perseu Abramo. E temos feito muitas coisas interessantes juntos. E a segunda razão é o tema deste debate. É um tema fundamental discutir o golpe, fazê-lo a quente, neste momento em que ainda temos o enfrentamento em curso, não estamos discutindo o passado, não estamos debatendo a história. Estamos fazendo a história neste exato momento e parece fundamental. Tanto assim que eu estava agora mesmo na atividade “Mulheres com Dilma” – na Casa de Portugal, lotada – e a rua encheu. Foram obrigados a fechar a avenida Liberdade porque nosso povo tomou conta dela, principalmente as mulheres de luta. Colocaram um telão. Quando saí de lá, a coisa ainda estava esquentando, aumentando a presença. Faço esse registro porque acho importante. Mesmo assim fiz questão de vir porque também considero essa outra dimensão dessa luta – a da reflexão e debate – fundamental.

De qualquer maneira, vocês me deram uma tarefa difícil, porque não será fácil falar depois de Luís Fernandes. Primeiro porque não tenho grande desacordo com o que ele disse. Então, talvez a minha fala aqui seja até ociosa. Segundo, porque não falarei com tanta propriedade. A minha expectativa é de que minha intervenção possa ser, no mínimo, complementar e útil de alguma maneira.

Quero iniciar também registrando o acerto, no meu modo de ver, de iniciar esse debate sobre o Golpe do Brasil, causas, objetivos e resistências falando da ofensiva do imperialismo no mundo e na América Latina. Toda vez que a gente fala de um fenômeno histórico dessa complexidade, como o golpe que se tenta implementar neste momento no país, sempre alguém lembra daquela analogia com a queda de um avião. Quer dizer, um fato de tal complexidade sempre é multicausal, sempre tem várias causas envolvidas: as falhas humanas, os problemas técnicos, as condições atmosféricas etc.

Valendo-me dessa analogia, o que estamos discutindo aqui seriam as “condições atmosféricas” do golpe. Ao analisar o contexto internacional, Luís Fernandes descreveu muito bem o momento em que nós vivemos, nessa ordem política internacional. E eu acho que é importante entender como a gente chegou a essa situação, remontar processos históricos, as transformações históricas muito significativas que ocorreram no último quarto do século passado. Aqui eu me refiro à crise do capitalismo da década de 1970, que colocou fim aos chamados 30 anos gloriosos de crescimento do capitalismo no pós-guerra. E que, como todos sabem, resultou no advento deste padrão de acumulação a que chamamos hoje de neoliberalismo.

Como vocês sabem, as crises do capitalismo são cíclicas. Essa, dos anos 1970, também foi uma crise de superacumulação. Naquele momento, como em vários outros, para tentar reverter a tendência de queda da taxa de lucro, o capital buscou fazê-lo aumentando a sua capacidade de explorar a força de trabalho. Então recorreu à superexploração da força de trabalho e também à ampliação dos mercados por dois mecanismos: 1) abrindo à exploração do mercado setores que, historicamente, eram considerados estratégicos e, portanto, estavam sob exploração do Estado, dos poderes públicos. Aqui, me refiro à comunicação, aos transportes, mas também à educação, à saúde, à previdência. Assim, o neoliberalismo buscou ampliar os seus mercados, invadindo essas áreas que, historicamente, havia muito tempo e quase como consenso internacional, estavam sob exploração do poder público. E o outro mecanismo será a expansão territorial dos mercados, abarcando territórios que vão se incorporar plenamente ao capitalismo a partir da derrota das tentativas de implantação do socialismo, que vou aqui chamar simplificadamente de “socialismo do tipo soviético”, só para facilitar a identificação.

Em síntese, portanto: com o fim daquele padrão de acumulação urdido no pós-guerra, a implantação do neoliberalismo representará maior exploração da força de trabalho, mais desregulamentação, mais privatizações e a ampliação do capitalismo para áreas novas, territórios novos que vão se abrindo ao mercado a partir da derrota das experiências socialistas de tipo soviético. Aliás, nunca devemos esquecer que a própria implementação desta forma de capitalismo, desse liberalismo mais radical, só foi possível também por essa derrota das experiências do tipo soviéticas.

Nunca é demais lembrar que essa derrota, obviamente, enfraqueceu muito a capacidade de resistência da esquerda. Colocou uma crise sobre a esquerda mundial, sobre a capacidade de resistência dos trabalhadores e também acabou com aquela ordem bipolar, que caracterizava o período anterior. Esse é o segundo fato importante que transformou a geopolítica internacional, configurando, por um breve momento, uma ordem unipolar, tendo como seu centro os Estados Unidos da América. Esses dois processos vão ser, no entanto, bastante contraditórios – claro, dialeticamente contraditórios. Porque, neste momento, vai haver uma hegemonia talvez sem precedentes do capitalismo em âmbito internacional. Lembrando que, em um determinado momento da história, tivemos o capitalismo convivendo com formas pré-capitalistas, e depois convivendo com esse campo soviético e, finalmente nesse momento – refiro-me ao final das décadas de 1980 e 1990 –, o capitalismo parecia ter vencido a batalha?. Alguns falaram até em “fim da história”. Mas o que ocorreu foi que o capitalismo obteve uma hegemonia sem precedentes. 

Obviamente, essa hegemonia vai acirrar as contradições intrínsecas do capitalismo. A ampliação da exploração da força de trabalho e a sua capacidade de desestruturar, dissolver a coesão social que tinha sido mais ou menos armada no pós-guerra nos países centrais, gerará, evidentemente, insatisfações. Os problemas irão se intensificar. Ao mesmo tempo, a ordem unipolar também será repleta de contradições, porque os Estados Unidos vão se tornar essa nação, esse polo único no mundo, justamente no momento em que sua economia já está em relativo declínio – o dinamismo da economia nos EUA já apresenta claros sinais de declínio, com seus déficits sendo crescentemente financiados graças à conversão do dólar em moeda padrão internacional, que foi uma das transformações que ocorreram na ordem econômica internacional, como todos se lembram, quando houve a ruptura unilateral do acordo de Breton Woods.

E não só a economia tem esse relativo declínio. O seu poder político também, principalmente a sua capacidade de exercer hegemonia através do chamado soft power. Depois da Guerra do Vietnã, isso fica evidente. Cada vez mais o país é obrigado a recorrer ao hard power. Cada vez mais se enfraquece aquela ideia dos Estados Unidos que salvam o mundo, graças a planos de recuperação econômica. E cada vez mais eles intervêm com mãos de ferro em vários países, utilizando vários pretextos e desculpas após o fim do campo soviético, já que a “ameaça comunista” não podia mais servir de motivo. Tais pretextos sempre foram mobilizados de forma absolutamente seletiva, como todos sabem: a “democracia”, o “mundo civilizado” etc. Todos aqui conhecem bem esses falsos argumentos invocados.

Interessante lembrar que, na década de 1990, quando a ordem unipolar começa a ser contestada, muitos previam que os Estados Unidos, como polo, iam ser contrarrestados pela União Europeia – que, inclusive, vai se consolidar nesse momento muito em função desse objetivo, sob o comando da Alemanha, na expectativa de se converter em polo alternativo. Também o Japão chegou a ser considerado uma ameaça ao poder norte-americano. No entanto, como sabemos, não foi isso que aconteceu. Do ponto de vista econômico, já foi dito aqui, a China surge como o grande rival. E do ponto de vista geopolítico, é importante sempre lembrar da recuperação ou da restauração da capacidade da Rússia de se manter como um polo de disputa, como polo importante, que exerce o seu poder geopolítico.

Como esse processo não se deu sem contradições, essas contradições vão gerar um certo rearranjo, no final do século XX e início do século XXI. Se lembrarmos das décadas de 1980 e 1990, o neoliberalismo aparecia como uma coisa quase incontestável. Tanto assim que Margaret Thatcher forjará a frase “não há alternativa”. Mas depois dessa aparente paralisia, dessa dificuldade de enfrentamento, os movimentos alter-mundistas vão começar a ganhar peso, ganhar força. Seattle, em 1999, é um marco importante. O Fórum Social Mundial de 2001 também, ao, de alguma forma, rearticular esse campo, contestando a ideia de que não havia alternativa – inclusive, cunhando como resposta e palavra de ordem a ideia de que “um outro mundo é possível”. 

Então, essa hegemonia inconteste do neoliberalismo se enfraquece. Já no final dos anos 2000, a perversidade do sistema era vivenciada por amplos setores sociais no mundo todo. Da mesma forma, como eu disse, a ordem unipolar começa a ser contestada por outros polos, que vão se fortalecendo. Esses dois fenômenos são importantes para aquilo que vai acontecer aqui, na nossa região do mundo, e que Luís Fernandes já chamou de “viragem”. Tanto a contestação crescente ao neoliberalismo como esse declínio relativo da hegemonia estadunidense e a necessidade que aquele país teve de se ocupar com outros fronts de batalha, principalmente no Oriente Médio, vão ser importantes para gerar a possibilidade dessa viragem política que acontecerá aqui na América Latina nos anos 2000. 

Na realidade, esse processo começa em 1998, com Chávez e, depois, há uma espécie de efeito dominó, no qual a maior parte dos países latino-americanos e caribenhos passa a ser dirigida por forças de esquerda, as mesmas forças que tinham lutado contra as ditaduras militares e que depois tinham se colocado contra o neoliberalismo. Essas forças vão gradualmente ascender aos governos centrais desses países pela via eleitoral. Nós já tínhamos Cuba, resultado de um outro processo. Isso, inclusive, vai fortalecer Cuba nesse momento.

Então, na ordem internacional, há na América Latina um processo crescente de ascensão de forças populares, progressistas e de esquerda aos governos centrais. Para este público, acho desnecessário dizer o quanto esse ?processo foi importante para os povos da região. Com diferenças, especificidades, maior ou menor ênfase nos aspectos políticos ou nos aspectos econômicos, e ainda que sem transformar estruturalmente essas sociedades – acho que isso é importante que se diga, não as transformamos estruturalmente –, ainda assim, houve uma mudança importante. Em todos esses países, buscou-se implementar um projeto nacional autônomo, articulado regionalmente, com soberania, com alguma participação popular, um projeto de desenvolvimento com maior distribuição de renda, maior democracia e maior inclusão de setores historicamente desfavorecidos. Foi um processo importante, inconcluso, mas muito importante para a região. E no caso brasileiro, isso possibilitou que o Brasil se convertesse efetivamente como um global player, um sujeito político internacionalmente importante. 

Isso não é ufanismo. Estivemos, nessa segunda-feira, em uma conferência com o Celso Amorim. Ele disse, naquele momento, que era verdade: o Brasil era chamado a opinar sobre todas as questões relevantes e todos os países ouviam o que dizia, se interessavam pelo que o Brasil tinha a dizer. Lembrando que foi uma voz importante para as articulações Sul-Sul. E mesmo o grupo BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul] talvez não teria sido possível se o Brasil não tivesse colocado isso na sua agenda como uma das prioridades.

De fato, o Brasil passa a ter um papel importante em âmbito internacional. Acho importante frisar isso, porque o “complexo de vira-lata” instrumentalizado pela nossa mídia, pela nossa direita, muitas vezes cega a população. Isso é um fato. O Brasil teve um papel fundamental em todo esse processo em curso, nesse “equilíbrio instável” da ordem internacional e na luta pela democratização, multipolarização e multilaterização das relações internacionais. Inclusive conseguimos vitórias importantes em organismos como a OMC [Organização Mundial do Comércio], mostrando que era possível também um país emergente, um país não desenvolvido, utilizar esses organismos a seu favor?.

Isso ocorreu, é importante que se diga, no momento em que o sistema econômico capitalista havia entrado em uma outra fase – muito curta, é verdade – de crescimento. Um período depois da instabilidade do final do século passado. Esse crescimento foi impulsionado, em grande medida, pelo dinamismo da economia chinesa, mas também foi possibilitado por uma intensa sobrefinanceirização da economia. Todo mundo sabe onde essa sobrefinanceirização da economia nos levou à tal bolha que começou a estourar em 2007, explodiu em 2008 e jogou a economia internacional numa crise profunda, que muitos disseram ser comparável ou até maior do que a crise de 1929. O certo é que é uma crise muito profunda porque, como a de 1929, atingiu em cheio os países centrais.

Essa crise ainda está longe de ser superada. O que está em curso nesse momento – e acho que este é o ponto – é justamente uma disputa sobre qual será a saída desta crise. Existe uma disputa entre os Estados nacionais e entre as classes por qual vai ser esta saída. Interessante observar que essa crise, claramente, foi provocada pelas características neoliberais do atual padrão de acumulação. Tudo que a originou tem a ver com as próprias características intrínsecas do padrão neoliberal de acumulação. Por isso, muitos acreditaram que 2008 anunciaria o fim do neoliberalismo. Lembram Nicolas Sarkozy – que está acima de qualquer suspeita – defendendo a regulação dos mercados? 

Se pegarmos os discursos daquele momento, vamos ver que muita gente acreditou que ali assistiríamos à derrota do neoliberalismo e a uma viragem keynesiana progressista, na economia e na política internacional. No entanto, os fatos ocorridos depois infelizmente negaram essa hipótese. Bós estamos assistindo no momento – insisto, isso ainda está em disputa –  a um avanço e a uma radicalização do padrão neoliberal de acumulação. Porque, mais uma vez, o capital vai buscar sair da crise a partir de uma superexploração ainda maior da força de trabalho e de uma transferência ainda maior do patrimônio público para o setor privado.

É a isso que nós estamos assistindo, na Europa, por exemplo, nos países do sul, de forma escancarada. Importante que se diga que isso vai corroer frontalmente as bases daquilo que os socialdemocratas gostam de chamar de “coesão social”?, que seria aquela “costura” da sociedade nos Estados de Bem-Estar Social, que faria com que, aparentemente, os conflitos de classes desaparecessem ou, pelo menos, que fossem amenizados. Isso vai colocar em xeque completamente essa visão e qualquer coesão social vai ser esgarçada. E a consequência disso, como em outros momentos da história, é o crescimento do pensamento, das ideias, dos votos e do apoio social à direita e à extrema-direita. Nós estamos vendo isso na Europa e também nos Estados Unidos, com Donald Trump. Vimos isso agora, com o Brexit. Embora se possa discutir se é bom ou não sair da União Europeia, claramente ali foi um voto majoritariamente xenófobo, influenciado por um nacionalismo de direita. 

Portanto, temos como contrafenômeno desse processo esse crescimento das ideias, dos valores, do apoio e dos votos da direita no mundo. E aqui na América Latina não é diferente. Aliás, para quem tem alguma dúvida de que os capitalistas estão buscando aumentar a exploração da força de trabalho para enfrentar a crise, basta ver o projeto que a CNI [Confederação Nacional das Indústrias] apresentou hoje em reunião com Temer, no qual se fala, com muita tranquilidade, por exemplo, em passar de 44 horas para 80 horas semanais de trabalho, entre outras coisas, como as mudanças na Previdência etc. É explícito que isso é aumentar a exploração da força de trabalho – a força de trabalho absoluta, sequer a relativa.

Por outro lado, se em cada país o capitalismo busca rearranjar as coisas, radicalizando as formas liberais de contratação, as privatizações etc., em termos geopolíticos e geoeconômicos mundiais, quando estamos analisando o imperialismo, é importante que se diga que essa crise vai gerar tanto a necessidade quanto a oportunidade para que os Estados Unidos retomem fortemente sua ofensiva no que se refere à capacidade de incidirem sobre a ordem econômica e política internacional. Não sem contradições, mas a crise gerará, repetimos, essa necessidade e essa possibilidade. Basta ver que Obama vai retomar, em alguns casos, a ideia do soft power. Aqui na América Latina, por exemplo, há a iniciativa de aproximação diplomática com Cuba. E também as iniciativas no Iraque.

E ainda, o governo estadunidense vai impulsionar algo que talvez seja o elemento fundamental dessa nova ordem econômica internacional, que são os chamados “tratados de nova geração”: o TPP [sigla em inglês para Acordo de Associação Transpacífico], o TTIP [sigla em inglês para Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento], o TISA [sigla em inglês para Acordo sobre Comércio de Serviços]. Esses tratados são muito piores do que o modelo Alca [Área de Livre Comércio das Américas]. Eles são uma radicalização desse tipo de acordo internacional que, basicamente, vão transferir soberania dos Estados nacionais para as empresas transnacionais. Soberania jurídica, inclusive. Com a aprovação deles, os Estados nacionais não conseguirão mais ter políticas autônomas, porque esses tratados preveem? que qualquer descumprimento dos acordos ou desavenças entre as partes sejam julgados em tribunais internacionais específicos, cujos integrantes podem inclusive ser indicados pelas empresas transnacionais. Então, nós estamos diante de uma grande ameaça. E esses tratados estão sendo fortemente impulsionados pelos Estados Unidos, que são os seus principais patrocinadores.

Além de tudo, esses tratados esvaziam aqueles organismos nos quais, conforme eu disse há pouco, países como o Brasil começaram a conseguir algumas vitórias. A OMC [Organização Mundial do Comércio] fica totalmente esvaziada, porque mesmo que não se adira ao tratado, aqueles que fazem parte dele chegarão à OMC já com um acordo firmado e os outros ficarão isolados.

A essa altura, podemos nos perguntar: Mas e o golpe? O que é que tudo isso tem a ver com o golpe no Brasil? 

Tem tudo a ver. Por quê?

Porque com todas as suas limitações, a existência de governos de esquerda, progressistas e populares na América Latina é um obstáculo para esta reorganização neoliberal da economia e para essa retomada da liderança estadunidense. É um estorvo, é um problema. Claro que não é nenhuma novidade, não é de agora que eles estão incomodados com a nossa existência. Só que a crise torna o que era talvez um incômodo em uma intolerância. Não é mais possível tolerar que nós atrapalhemos essa reorganização internacional.

Não que não tivesse havido tentativa de desestabilização antes – na Venezuela, por exemplo, ou mesmo do Brasil, se pensarmos na AP [Ação Penal] 470. O problema é que a crise econômica internacional também nos afeta e ela vai gerar o elemento que faltava para essa verdadeira contraofensiva da direita na América Latina e no Caribe a que nós estamos assistindo: uma perda relativa de apoio popular dos governos da região. Este também é um elemento importante. Ou seja, a crise nos afeta de duas maneiras. Primeiro, ela aumenta a necessidade dos países centrais e das empresas transnacionais de derrubar esses governos. Segundo, a partir do momento em que a crise afeta todos os países – vide Argentina, Venezuela e o Brasil –, ela também aumenta a possibilidade de minar, em grande medida, o apoio popular que esses governos tinham?.

Também não é novidade que o imperialismo busca intervir de várias formas nas políticas internas dos países quando isso se torna necessário. Aliás, é uma das características do imperialismo, senão não seria imperialismo, senão não haveria a ideia de império. Qual é então a novidade deste golpe a que assistimos? Em 1964, por exemplo, tinha-se aquela imagem do golpe militar, da intervenção de militares, sempre algo que a torna essa imagem muito mais nítida. Neste caso, contraditoriamente, o que se instrumentaliza para dar o golpe – e isso aconteceu em Honduras, no Paraguai e está acontecendo no Brasil também – são as próprias instituições do chamado Estado Democrático de Direito. Porque, notem, em tese seriam pilares do tal Estado Democrático de Direito o Poder Judiciário, o Poder Legislativo, os meios de comunicação. Só que justamente esses poderes é que estão sendo instrumentalizados para dar o golpe. E isso, evidentemente, tem a ver com a questão da composição social, com a composição de classe desses poderes. 

E este é um dos problemas. Ao se falar em Estado Democrático de Direito, se elide o fato de que tanto o setor judiciário, quanto o sistema legislativo, quanto o nosso sistema de comunicação não são nada democráticos. São em si mesmos antidemocráticos e nós poderíamos aqui discutir depois o porquê, as causas disso. Mas acho que aqui todo mundo sabe. O nosso Judiciário não é democrático, nosso sistema de comunicação não é democrático. E o nosso sistema legislativo, em função do nosso sistema político-eleitoral, também está muito longe de ser democrático, já que estão ali eleitos os que detêm poder financeiro.

Essa é novidade, por isso que essa ideia de que houve um golpe é importante. Por isso, repetir isso é importante. E acho que essa narrativa a gente vem ganhando. Até pouco tempo, essa ideia de que tudo transcorria muito bem, de acordo com as instituições do Estado Democrático de Direito, inclusive no exterior, era a moeda corrente. Hoje, a ideia de que “há algo de podre no reino do Brasil” é muito forte. É forte no exterior. E acho que é assim também, crescentemente, em setores sociais mais amplos aqui no país. 

Para concluir, acho importante primeiro ter em mente um pouco disso que Luís Fernandes já disse: lembrarmos o que está em jogo, no caso da ordem internacional. José Serra, que é o ministro usurpador, por todas as suas declarações já deixou clara a intenção de voltar a ser sócio desses interesses imperialistas e poderosos no mundo. E Isso inclui algo que é importantíssimo: a entrega das nossas riquezas, não só das reservas de petróleo do Pré-sal, mas também da riqueza imaterial – educação, saúde, pesquisas – para a exploração do capital internacional. E já há vários projetos de lei, neste momento, sendo discutidos e aprovados no Parlamento brasileiro??. Vejam que não se trata de nenhuma “teoria da conspiração” infundada.

A se consolidar essa tendência, nós passaremos de uma política externa altiva e ativa para uma política externa submissa e passiva. E é esse o lugar em que eles pretendem colocar o Brasil nessa nova ordem internacional. Isso está acontecendo, eu concluo, em vários países da América Latina. Não se trata de um fenômeno isolado. Mas por que no caso brasileiro é ainda mais grave?

Na Argentina tais mudanças políticas também estão acontecendo, mas pelo menos lá houve uma vitória eleitoral da direita. Aqui não. Nós estamos assistindo à implementação de um programa radical de direita sem nenhum mandato popular. Esse é o golpe.

Além disso, por todas as razões que nós dissemos antes, o Brasil é efetivamente o garantidor desse processo latino-americano. Se se consuma o golpe no Brasil, cairão esses governos todos que ainda não caíram, que não perderam eleições, e as forças políticas de esquerda perderão força, se enfraquecerão. Qualquer projeto de integração regional soberana, autônoma, não subordinada aos Estados Unidos, sem o Brasil, perde a sua viabilidade. E inclusive essas articulações como a dos BRICS perdem a sua potência.

Então, não é pouca coisa o Brasil sofrer este golpe. O impacto disso não é pequeno para a esquerda, para esse processo progressista internacional e também para a democratização da ordem econômica e política internacional. E quem diz isso não somos nós, os “ufanistas brasileiros”. Basta conversar com qualquer companheiro nosso latino-americano ou da esquerda mundial e eles dirão a mesma coisa. Por isso é importante que se compreenda que esse golpe no Brasil não é um fato histórico isolado. Não é uma idiossincrasia da nossa sociedade. Não é o resultado de excessos cometidos por indivíduos, embora esses indivíduos cometam seus excessos. É na verdade um processo que guarda relações com essa crise e essa reestruturação da ordem política e econômica internacional. As consequências disso para a luta dos trabalhadores, para todos os setores historicamente desfavorecidos, no Brasil e na América Latina como um todo, são grandes, muito grandes. E é por isso, que não vai se dar sem luta, não vai se dar sem contradições. Esse é o processo que está em curso neste momento. Então, não é hora de simplesmente constatarmos isso. É hora de entender o que se passa, para se organizar, lutar e vencer.

* Iole Ilíada é geógrafa e vice-presidenta da Fundação Perseu Abramo.