No Brasil o regime democrático esteve sempre em risco dada a especificidade da formação social brasileira marcada pela resistência de sua classe dominante em incorporar a população trabalhadora na vida política, tramando golpes sempre que pressente o risco da participação das massas nas decisões políticas. Daí o caráter espúrio de nossa democracia alternando a forma restrita, quando o jogo democrático é formalmente assegurado, com a forma excludente em que a denominação “democracia” aparece como eufemismo de ditadura. É assim que em nossa república transitamos de uma democracia ultra restrita com eleições a bico de pena na República Velha (1889-1930) para o sufrágio universal com a admissão do voto das mulheres em 1932, seguido da modernização do Estado Novo (1937-1945) sucedido pela democracia restrita de caráter populista (1945-1964) que, quando ameaçava ampliar-se, foi cortada por um golpe militar justificado pela defesa da democracia que, de fato, excluiu deliberada e sistematicamente os setores populares do jogo político. Vivemos, então, 21 anos de ditadura militar (1964-1985), situação que vitimou também outros países da América Latina. Esses foram golpes de força que recorreram às Forças Armadas com o apoio da CIA, a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, o que, aliás, foi confirmado pelo então embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon que afirmou, em entrevista: “Era uma ação da CIA. Um dos objetivos seria suprir literatura sobre a economia liberal, para contestar a enorme quantidade de literatura de esquerda”.

Agora a estratégia mudou na direção da desestabilização seguida de destituição, por via parlamentar, de governos populares. Essa iniciativa vem sendo posta em prática em diferentes países, especialmente naqueles em que os Estados Unidos têm interesses econômicos ou politicamente estratégicos. Daí as mobilizações ocorridas em países como a Tunísia, Egito, Líbia (a chamada “primavera árabe”), assim como na Rússia e Ucrânia. Na América do Sul, após o Paraguai, os alvos imediatos são o Brasil e a Venezuela, não por acaso dotados de grandes reservas de petróleo, esboçando-se movimento semelhante na Bolívia e no Equador, sendo que na Argentina a vitória da direita nas eleições tornou desnecessário o recurso ao golpe jurídico-parlamentar.

É nesse contexto que ocorreu no Brasil, em 31 de agosto de 2016, o golpe mediante o qual o Senado Federal destituiu Dilma Rousseff da presidência da República. Ao desrespeitar a Constituição depondo uma presidenta que não cometeu crime algum, quebrou-se a institucionalidade democrática. Sem crime a presidenta, na vigência do regime democrático, só poderia ser julgada pelo próprio povo no exercício de sua soberania.

O julgamento no Senado Federal teve todos os ingredientes de uma farsa montada para dar a impressão de que se tratava de um ato que respeitava as regras do jogo do Estado Democrático de Direito, assegurando a ampla defesa da acusada. De fato, ela compareceu às 9:00 horas na sessão de seu julgamento no dia 29 de agosto, apresentou seu depoimento por 45 minutos e permaneceu até pouco antes da meia-noite respondendo a todas as perguntas dos senadores esclarecendo todos os fatos e provando tecnicamente a inexistência do crime de responsabilidade a ela imputado, embora isso nem fosse necessário, pois, como se sabe, juridicamente o ônus da prova cabe aos acusadores. Estes, todavia, em nenhum momento chegaram a apresentar qualquer prova. Ao contrário, vários dos senadores afirmaram explicitamente que não se tratava de crime de responsabilidade, mas que iriam votar a favor do impeachment “pelo bem do Brasil” alegando que a crise econômica teria sido provocada pelo governo da presidenta. Chegaram, ainda, a afirmar que o impedimento da presidenta era “exigido pelas ruas”. Ora, como registrou a repórter Luiza Villaméa numa reportagem da Revista Brasileiros (n. 109, agosto de 2016, p. 26-38), as manifestações pró-impeachment foram organizadas por entidades financiadas com recursos americanos, o que é eloquentemente ilustrado com o caso de Kim Patroca Kataquiri, que se tornou colunista da Folha de S.Paulo. Ele acabou por largar o curso de Economia na Universidade Federal do ABC “para se dedicar integralmente ao Movimento Brasil Livre (MBL)” (p.29). E o que é o MBL? “É um movimento derivado do Estudantes pela Liberdade (EPL), a filial brasileira da americana Students for Liberty, financiado pela Atlas Network” (idem). Enfim, todos os institutos e movimentos que vêm se mobilizando tendo em vista golpear a democracia no Brasil recebem recursos de fontes como o “Cato Institute e o Charles Koch Foudation, vinculadas à família Koch, uma das mais ricas do mundo, com vastos interesses no setor petrolífero” (idem).   

Fazendo ouvidos moucos a todos os argumentos apresentados, a maioria qualificada dos senadores consumou a usurpação da soberania popular na qual se baseia o regime político democrático. O clima de farsa foi tal que, apesar da desfaçatez dos acusadores, certo constrangimento não deixou de se manifestar, o que levou vários senadores a não aprovar a perda do direito de exercer funções públicas por 8 anos, pena também prevista na Constituição para os casos em que, de fato, tivesse havido o crime de responsabilidade. Resta, agora, a resistência ativa de todos os inconformados com as injustiças para buscar restabelecer a institucionalidade democrática a duras penas conquistada após 21 anos de ditadura militar.

A atual conjuntura se constitui, pois, num momento grave que estamos vivendo no qual o tema dos desafios educacionais da democracia pode ser considerado como uma rua de mão dupla. Ou seja, a educação é desafiada duplamente: por um lado, cabe-lhe resistir, exercendo o direito de desobediência civil, às iniciativas de seu próprio abastardamento por parte de um governo que se instaurou por meio da quebra do Estado Democrático de Direito. Por outro lado, cumpre lutar para assegurar às novas gerações uma formação sólida que lhes possibilite o pleno exercício da cidadania tendo em vista não apenas a restauração da democracia formal, mas avançando para sua transformação em democracia real.

Dermeval Saviani é Professor Emérito da UNICAMP e Pesquisador Emérito do CNPq.