Era um fim de noite daqueles agitados na redação do “Jornal do Brasil”. Ano de 1990. Muitos jornalistas já arrumavam as malas para embarcar rumo à Copa do Mundo na Itália. Um deles, o mais especial de todos, acabava de ajeitar a mesa e se despedir dos amigos. Levantou-se e começou a caminhar em direção ao corredor que dava para o elevador. Caminhava com dificuldade. Muita dificuldade. Esbaforido. A respiração não era mais a mesma. Faltava-lhe ar até para falar. O enfisema pulmonar, adquirido pelos muitos anos do vício do cigarro, dava sinais de vencê-lo. Em companhia de uma “fera” do jornalismo, o brilhante Marcos de Castro, apoiava-se no ombro de outro jornalista, que vivia ali seus primeiros anos de profissão. Os dois o aconselhavam a não fazer aquela viagem. Temiam pelo pior. Que ele não voltasse. Mas não tinha jeito. A decisão já estava tomada. A resposta vinha sempre pronta.

– Se eu tiver que morrer, vou morrer aqui, lá, em qualquer lugar. Um dia, vamos todos morrer, não é? Então, se for esta a hora, eu prefiro morrer fazendo o que eu gosto – disse, dando aquele breve sorriso conhecido por muitos.

Agradeceu pela preocupação, entrou no elevador e despediu-se com seu cumprimento característico – levando a mão à testa para um breve movimento para a frente. Repetia, de forma carinhosa, o gesto de sentido dos militares que tanto combateu. João Alves Jobim Saldanha, o João Saldanha, despediu-se para não mais voltar. Morreu em Roma em 12 de julho, quatro dias após o fim da Copa do Mundo, aos 73 anos.

Acabava ali a trajetória de um homem único. Foi jornalista, comentarista, técnico de futebol e, sempre, um militante político – era comunista de “carteirinha”. Como treinador, foi campeão carioca em 1957 pelo Botafogo, do qual era torcedor ferrenho. Anos depois, classificou a seleção brasileira para a Copa de 1970 – e saiu antes do Mundial, envolto em polêmica. Ícone de uma época, Saldanha também se destacou fora de campo por suas posições políticas.

Morreu do jeito que sempre levou a vida. Visceral até a última gota. Não foi à toa que outro gênio, o também jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, lhe dera o apelido de “João Sem Medo”. João, aliás, tinha afinidade com outro gênio: era primo do maestro Tom Jobim. Foi com valentia e genialidade que conquistou a empatia do público. Personalidade forte, João era sempre transparente nos seus comentários. Mudava de “casa”, mas não mudava o estilo. Fosse na “Última Hora” (dos tempos de Samuel Wainer, brilhante jornalista e dono do jornal), fosse em “O Globo” ou no “Jornal do Brasil”. Fosse na revista “Placar”, nas rádios Guanabara (atual Bandeirantes), Rádio Globo (onde viveu seu auge) e Tupi. Fosse nas TVs Rio, Globo e Manchete (sua última casa), era firme em suas posições. Amante do futebol-arte, criticava quem fosse: técnicos, jogadores, dirigentes. Como se dizia à época, João não tinha “papas na língua”.
 
 

 

De pavio curto, João Saldanha criticava de jogadores a técnicos e a ditadura militar: como técnico, peitou o presidente Médici (Foto: Agência Estado)

Sempre carismático

“Vem aí o comentarista que o Brasil inteiro consagrou!!!” era a frase dita a plenos pulmões nas ondas do rádio por Waldyr Amaral e Jorge Cury, os maiores locutores da época, ambos da Rádio Globo, para anunciar a chegada de João para falar ao microfone. Ainda havia uma pequena vinheta na qual a chamada soava como música o saudando: “Joãaaaao Saldanha!” E lá vinha ele. Sempre começava o papo com o torcedor com uma saudação: “Meus amigos…” Os radinhos de pilha ecoavam no Maracanã com os seus comentários. O povo o ouvia atentamente. Culto e inteligentíssimo, João era dotado de um enorme carisma e fluência verbal muito informal e particular para se comunicar, fosse com o público classe A ou com o geraldino (torcedor que frequentava a geral, mais humilde).
Na verdade, Saldanha dominava todos os meios de comunicação. Tinha o dom da palavra na TV quando participava das mesas-redondas (principalmente a da Facit, pioneira no gênero nos anos 60, comandada pelo ex-locutor e comentarista Luiz Mendes, com presença de outros grandes nomes como Nelson Rodrigues). Era também comum, muito comum, na redação do JB, tanto na Avenida Rio Branco como nos tempos da Avenida Brasil, 500, vê-lo liderar por várias vezes uma resenha em meio ao trabalho com gente da qualidade de Oldemário Touguinhó, Sandro Moreyra, Armando Nogueira, Vicente Senna e João Máximo. Era uma verdadeira seleção de jornalistas que discutia ali os temas mais palpitantes do dia. Não demorava muito para os mais jovens os cercarem para ouvir as histórias. E quantas histórias. Valiam mais que uma faculdade de jornalismo.
 
Peitando o presidente-general

Uma das maiores histórias, sem dúvida, João viveu nos tempos da ditadura militar, quando ele era o técnico da seleção brasileira. A polêmica começou quando o então presidente, o general Emílio Garrastazu Médici, certa vez pediu a convocação do atacante Dario, do Atlético Mineiro. O Dadá Maravilha, hoje também comentarista. O João Sem Medo não só recusou-se a chamar o atacante como não deixou o presidente sem resposta.

– Nem eu escalo o Ministério e nem o presidente escala time. Você tá vendo que nós nos entendemos muito bem – disse, sorrindo, em entrevista para a TV.

Há quem garanta que essa resposta teria soado como afronta e sido decisiva para a queda de João na Seleção. O então treinador classificara em 1969 o Brasil para o Mundial no México com uma campanha espetacular nas eliminatórias. A Seleção, com Tostão e Pelé fazendo dupla de área – foi ele quem bancou os dois juntos -, goleava os adversários de forma inapelável. Mas as “feras” do João, como ele chamava seus comandados, passavam por momento turbulento meses antes da Copa, com alguns resultados negativos. A pressão sobre o treinador cresceu principalmente após a derrota para o Bangu por 1 a 0 em um jogo-treino. Para muitos, foi o suficiente para a Presidência da República pressionar pela queda de João a então Confederação Brasileira de Desportos (CBD, hoje CBF). Então, a entidade era presidida por outro João, o Havelange, que escolhera Saldanha à época numa tentativa de resgatar o orgulho nacional após o fiasco da Copa de 1966 e diminuir a pressão da imprensa.
 
Até hoje, o episódio da saída de João gera dúvidas e discussões. Há quem ache que Médici não gostara da ousadia de João ao negar-lhe o pedido por Dario, aliado ao fato da preocupação de ver o Brasil tricampeão mundial sob o comando de um “comunista”. Saldanha era filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), e seria insuportável e péssimo para os militares e a ditadura vê-lo colhendo os louros do título. Mas há também quem diga que, apesar dos méritos de João à frente do comando da Seleção, com ele o Brasil não teria sido tricampeão.
Com um esquema muito ofensivo, o 4-2-4, com dois jogadores no meio de campo – Piazza e Gerson – e quatro atacantes, sendo dois pontas abertos pelos lados (Edu e Rogério ou Jairzinho) e dois pontas de lança (Tostão e Pelé) -, a defesa ficava muito vulnerável. Após a saída de João e a entrada de Zagallo, em meio a uma recusa de Dino Sani de assumir o cargo, o esquema mudou para o 4-3-3, entrando Rivellino como falso ponta-esquerda para voltar e ajudar o meio-campo, e com Clodoaldo na cabeça de área, deslocando Piazza para a zaga. A Seleção jogou o futebol dos sonhos cantado em prosa e verso até hoje, o tricampeonato veio. E Dario foi convocado.
  
João Sem Medo com armas em punho

Durante o período de pressão sobre João Saldanha, o então treinador do Brasil acabou também protagonista de outra polêmica. Um dos seus maiores críticos era o técnico do Flamengo à época, o ex-goleiro Yustrich. Apelidado de “Homão”, pelo seu tamanho e temperamento bruto e exageradamente disciplinador, ele criticara João nos meios de comunicação após uma derrota da Seleção para o Paraguai. As duras palavras de Yustrich o irritaram, e o João Sem Medo entrou em ação novamente. Com um revólver calibre 38 em punho, foi atrás de Yustrich para tomar satisfações na concentração do clube, em São Conrado, dando tiros para o alto. “Cadê o canalha?”, gritara João ao chegar. Mas Yustrich já não estava mais lá. Teria pulado o muro.

Esse temperamento intempestivo de João com arma em punho já havia sido exposto antes, nos tempos de jornalista. Foi depois da final do Campeonato Carioca de 1967, em que o Botafogo derrotou o Bangu por 2 a 1 e sagrou-se campeão. Segundo relatos de João no programa “Roda Viva”, da TV Cultura, nos anos 1980, ele fizera comentário no qual teria achado estranho o comportamento do goleiro alvinegro Manga. Saldanha recebera informações de que, durante a semana da decisão, o arqueiro teria sido alvo de tentativa de suborno por parte do então presidente do Bangu, Castor de Andrade. O problema é que Castor era mais do que manda-chuva do Bangu: era um dos “capos” da contravenção do Rio de Janeiro, especialmente do jogo do bicho. João teria achado Manga tenso durante a final e cogitou até a hipótese de o jogador ter sido coagido. Mas o comentário teria chegado ao goleiro de forma distorcida. Manga achou que Saldanha o teria acusado de ter se vendido.

– Não sei se corromperam (o Manga) ou não em dinheiro, mas com ameaça de morte foi de uma forma visível. Ele estava aterrorizado. Se estou lá (no Botafogo), não deixo ele jogar – contou Saldanha no “Roda Viva”, da TV Cultura, anos depois.
 
Porém, na época, o goleiro respondeu que se Saldanha estivesse presente na festa do título, no Botafogo, que ele “veria sangue”. Avisado por amigos de que o próprio Castor lhe armaria uma emboscada com seguranças para segurá-lo enquanto Manga lhe desferiria um soco – essa é a versão de João -, o jornalista levou duas armas de calibre 38 para se defender. Ao chegar ao local, assim que viu o goleiro, tomou a iniciativa: foi em sua direção e deu dois tiros para o chão, entre as pernas do goleiro, apenas para assustá-lo. Depois fez mais um disparo, para uma das câmeras de TV posicionadas para filmar a agressão da qual seria vítima.

– Vai sair sangue, mas é o teu, seu filho… Dei dois tiros, mas sem muita vontade, nem de errar nem de acertar. A minha intenção era a seguinte: ele vai correr para onde? Vocês imaginavam onde estavam as câmeras e os seguranças. Aí eu dava um tiro na bunda. Mas ele correu para o outro lado, onde estavam as mulheres e as crianças. Eu não sou pistoleiro, não dei – contou Saldanha.

Manga saiu correndo em disparada, teria pulado um muro de três metros de altura, e a história virou uma das mais contadas sobre o polêmico jornalista.
 
Frasista de causos, campeão, comunista

De temperamento polêmico, alternando acidez com ironia fina nos comentários, João Saldanha tinha um lado também bem-humorado que arrebanhava fãs. Criava ou tornava populares frases impactantes. “Se macumba ganhasse jogo, o Campeonato Baiano terminava empatado” era uma delas. “Se concentração ganhasse jogo, o time do presídio não perdia uma”, era outra. Até hoje fica difícil dizer de quem era a autoria, se dele ou de Neném Prancha, um ex-jogador que depois se tornou roupeiro, massagista e olheiro do Botafogo, do qual ficou amigo.

Saldanha gostava também de alternar seus comentários com humor e polêmica. Certa vez, num programa de TV, foi à rua entrevistar populares na tentativa de provar uma teoria sua a respeito do uso da cabeleira black power, mania entre os jogadores nos anos 1960 e 1970 – o Furacão Jairzinho, tricampeão mundial em 1970, era um dos adeptos do corte. No vídeo, o comentarista usou um dos populares para tentar convencer que o cabelo alto poderia atrapalhar o atleta na hora de cabecear para o gol. E explicava:

– Olha aqui. É isso aí (passando a mão no cabelo). Amaciou a bola, ela é até capaz de parar aqui. Agora, que ele ande assim na rua eu acho bacana, acho legal, entendeu? Agora, no meu time não joga não – dizia João.
 
Mas, ao contrário do que se poderia supor, Saldanha tinha bom relacionamento com os jogadores. Chegara a ser um deles, vindo do futebol de praia. Tentou a sorte no Botafogo, sem sucesso. Nascido em Alegrete, interior gaúcho, foi criado no Paraná e tornou-se carioca de coração. De uma família que viveu o conflito gaúcho entre maragatos e chimangos, formou-se em Direito para depois estudar Jornalismo. Não demorou para filiar-se ao Partido Comunista Brasileiro, no qual em 1985 saiu como candidato a vice-prefeito do Rio na chapa liderada por Marcelo Cerqueira nas primeiras eleições diretas após o fim da ditadura militar, que muito combateu.

Saldanha já mostrava espírito de liderança quando fora convidado a treinar o Botafogo em 1957. Mesmo sem experiência no cargo, teve pulso e tato para comandar Garrincha, Didi e Nilton Santos. O time sagrou-se campeão carioca com um goleada por 6 a 2 sobre o Fluminense na final, e no ano seguinte os três craques juntaram-se a Pelé para conduzir a Seleção ao primeiro campeonato mundial, em 1958, na Suécia.

Por falar em Copa do Mundo, João sempre contava em suas histórias que teria assistido a todas. Aliás, ele era um belo contador de causos. Afirmava também com convicção e riqueza de detalhes que, como jornalista, cobriu a Guerra da Coreia (entre 1950 e 1953); desembarcou na Normandia com Montgomery (Segunda Guerra Mundial) e fez a grande marcha com Mao Tsé-Tung na China comunista (entre 1934 e 1935). Fazia tudo parecer verdade. O que mais importava naquelas horas, na verdade, era o seu jeito de contar.

No mundo terreno da bola, portava-se como crítico voraz da europeização do futebol brasileiro, do qual defendia de forma ferrenha o talento do craque, que nos tempos de técnico chamava de “fera”. O que não o impedia de criticá-los.

– Hoje tem uma porção de gente que tá jogando pelo contrato em dólar e não para o time – disse, certa vez, em tempos nos quais as propostas do exterior começavam a levar os grandes jogadores.
 
João fez um livro (“Os Subterrâneos do Futebol”) e foi tema de vários, entre eles a biografia “João Saldanha – Uma Vida em Jogo”, de André Iki Siqueira, além do recente documentário “João Saldanha”, também de André Iki Siqueira em parceria com Beto Macedo. Mas outra visão boa acerca da sua personalidade vem de um tricampeão mundial em 1970. Tostão foi o artilheiro do Brasil nas eliminatórias, e junto com Pelé a grande “fera” de Saldanha, que contrariou parte da imprensa na época ao insistir com os dois craques no ataque. Ao completar 70 anos, em entrevista ao GloboEsporte.com, destacou a importância do brilhante comentarista e treinador em sua vida.

– Eu já o admirava como jornalista, comunista, o seu jeito de falar, escrever, suas posições políticas. E eu tive uma convivência com ele muito boa. Quando chegou na Seleção, foi a pessoa que mais me valorizou. Eu até falo no livro que uma vez eu fiquei pensando… Será que ele gostava tanto assim do meu futebol ou ele também me admirava porque uma vez eu dei uma entrevista na época da ditadura criticando a ditadura, que tolhia os direitos humanos, a liberdade de expressão, e o João Saldanha gostou demais disso? Quando chegou na Seleção ele me chamou e perguntou: “O que te incomoda?” Eu respondi: “O que me incomoda é que as pessoas acham que eu tenho que ser reserva do Pelé e acho que podemos jogar juntos, por que não?” Aí ele falou assim: “De agora em diante você vai ser titular absoluto. Pode jogar mal quantas vezes quiser que você não sai do time.” Isso me deu uma confiança muito grande, o meu melhor momento que tive na Seleção foi nas eliminatórias da Copa de 70 com o Saldanha.

Esse foi o “João Sem Medo” como treinador, jornalista e político. Definitivamente, o comentarista que o Brasil inteiro consagrou.