Inúmeros autores marxistas, de tendências diversas, negaram que a questão da construção de partido de vanguarda do proletariado tenha se constituído como um dos problemas centrais da agenda teórico-política de Marx e Engels. O francês George Sorel, em A decomposição do Marxismo (1908), escreveu: “o marxismo difere notadamente do blanquismo no que diz respeito à noção de Partido, que era capital na concepção dos revolucionários clássicos, pois retomou a noção de classe.”. Harold Laski, expoente teórico do trabalhismo inglês, no seu prefácio ao Manifesto do Partido Comunista (1947) seguiu pela mesma trilha: “A ideia de um partido comunista à parte coube à Revolução Russa; isso não ocorreu nem a Marx nem a Engels.”.

A representante da ala esquerda do comunismo italiano, Rossana Rosanda, num interessante artigo publicado em Il Manifesto (1969), também colocou sua pedra nessa construção teórica: “Se em Marx não existe uma teoria de Partido é porque em sua teoria da revolução não existe necessidade dela.”. Até um autor marxista contemporâneo muito sério, Ralph Milliband, desposou esta opinião. Em Marxismo e Política, publicado originalmente em 1976, afirmou: “nem Marx nem Engels tinham uma opinião sobremodo exaltada do ‘partido’ como expressão privilegiada dos propósitos e reivindicações políticos da classe trabalhadora.”.

 

Primeira edição do Manifesto Comunista

Apesar dos matizes diferentes, esses autores têm em comum a compreensão de que o principal objetivo de Marx e Engels teria sido a afirmar a capacidade de “autoemancipação do proletariado”. Nisso eles não estavam totalmente errados, mas do que eles não se deram conta é que o problema da emancipação do proletariado estava intimamente relacionado à sua capacidade de construir um partido político independente e de vanguarda. Uma coisa estava ligada a outra.   

A tese que minimiza a preocupação de Marx e Engels quanto ao problema da construção de um partido de vanguarda foi construída a partir de citações esparsas e descontextualizadas extraídas da obra dos dois autores alemães. A maior parte delas expressa em cartas redigidas após as derrotas das revoluções de 1848-1849 e da crise (e fechamento) da Liga dos Comunistas. Nesses escritos datados chegaram a afirmar, apressadamente, que não pertenceriam mais a nenhum partido. Isso mostra que nem mesmo grandes revolucionários estão imunes às frustrações que nascem depois da derrota de uma revolução. Mas, como dizem, não podemos tomar alguns galhos pela floresta toda.

Avaliação mais equilibrada nos foi apresentada por Monty Johnstone no artigo Marx, Engels e o conceito de Partido (1967), no qual esclarece que “O conceito de partido proletário ocupa uma posição central no pensamento e na atividade política de Marx e Engels”, embora “em nenhuma parte os autores do Manifesto do Partido Comunista apresentam de forma sistemática uma teoria do partido proletário, sua natureza e suas características, pelo menos não mais do que o fazem a respeito das classes sociais e do Estado.”. Esta compreensão parece ser a mais adequada.

A construção do conceito de Partido em Marx e Engels estava ligada a algumas descobertas anteriores. Eram elas: 1ª) o papel estratégico do proletariado na luta pela emancipação humana; 2ª) a centralidade da luta de classes no campo político; 3ª) a necessidade da tomada do poder político das mãos da burguesia como condição primária à construção do socialismo. 

O protagonismo operário

Marx e Engels iniciaram a sua parceria teórica e política em agosto de 1844, quando, em Paris, começaram a escrever A Sagrada Família. Nela, desenvolveram as teses sobre o papel revolucionário do proletariado moderno e a necessidade histórica da revolução comunista, já esboçadas pelo jovem Marx na sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843). Entre outras coisas, afirmaram: “Não se trata do que este ou aquele proletário, ou inclusive o proletariado em seu conjunto, possam apresentar-se como meta. Trata-se de o que o proletariado é e o que está obrigado historicamente a fazer, de acordo com o seu ser.”.

Logo em seguida, os dois amigos resolveram expor de maneira mais sistemática suas novas concepções (o materialismohistórico), que se contrapunham ao idealismo da escola neo-hegeliana. O trabalho conjunto, que tomou a forma de dois grossos volumes, estaria pronto em 1846 e se chamou A Ideologia Alemã. Ali escreveram: “No capitalismo surge uma classe condenada a suportar todos os inconvenientes da sociedade sem gozar de suas vantagens (…) e disso nasce a consciência de que é necessária uma revolução radical.”. A missão histórica colocada para essa nova classe deveria ser a conquista do poder político das mãos da burguesia e a gradual expropriação dos meios de produção, abrindo assim o caminho para a sociedade sem classes, a sociedade comunista. O livro não encontrou editor e ficou sem publicação na época. Marx, com bom humor, afirmou: “abandonamos então o manuscrito à crítica roedora dos ratos.”.

Lembramos apenas que o proletariado moderno – trabalhadores da grande indústria – ainda era algo recente e concentrado em pouquíssimas cidades. O caso inglês se constituía numa exceção à regra. A grande maioria dos operários europeus e estadunidenses se compunha de artesãos em pequenas oficinas. Em certo sentido, as teses marxianas eram premonitórias ao apreenderem tendências que só se consolidariam décadas mais tarde.

 

Revolta dos operários de Lyon em 1831

No entanto, o proletariado nascente já tinha mostrado toda a sua força nas insurreições dos tecelões de Lyon (França) em 1831 e 1834, e na Silésia (Alemanha) em 1844. As maiores demonstrações de organização e de politização do proletariado haviam sido dadas pelo movimento cartista na Inglaterra. No ano de 1842, milhões de trabalhadores se declararam em greve geral em defesa da Carta do Povo, através da qual exigiam direitos políticos e sociais; e asua principal reivindicação era o sufrágio universal.

Qualquer observador atento poderia dar-se conta do nascimento de uma nova força social, destinada a cumprir um papel destacado na história moderna. Até um ideólogo burguês como Monfalcon, testemunha dessas rebeliões operárias, constataria aterrorizado: “Uma das próximas consequências fatais desses eventos será que os operários (…) se converterão numa classe política (…) e se apresentarão homens que dirão aos operários ‘vosso suor só beneficia aos ricos; os fabricantes são seus inimigos naturais. Queixais de que sois desgraçados e, entretanto, sois os mais numerosos e os mais forte. Uni-vos!’”. Na década seguinte, um manifesto, escrito por dois jovens alemães ainda desconhecidos, estamparia a temida conclamação “Proletários de todos os países, uni-vos!”. O grande medo de Montfalcon acabou se concretizando.

 

Movimento cartista inglês

Os primeiros passos do partido operário independente 

Marx e Engels pensavam que a futura revolução social e o partido proletariado que surgiria dela deveriam ter um caráter internacional – no mínimo europeu. Naquela época, eles não eram os únicos a pensar dessa maneira. Desde a Revolução Francesa – e da guerra que se seguiu – ganhou corpo entre os democratas mais avançados a ideia de que a próxima revolução deveria ser continental. Esta compreensão se transferiu para o movimento operário e socialista nascente.

Por isso mesmo, os primeiros anos da década de 1840 iriam pegar os jovens proscritos Marx e Engels envolvidos, de corpo e alma, no processo de formação dos Comitês de Correspondência Comunista. Estes foram organizados na Bélgica, em Paris e Londres. Existia um ativo intercâmbio entre as diversas organizações operárias e revolucionárias. Em Londres os principais membros do Comitê eram vinculados à Liga dos Justos e ao movimento cartista.

Segundo Marx, os comitês teriam por objetivo estabelecer “o contato dos socialistas alemães com os socialistas franceses e ingleses; manter os estrangeiros atualizados acerca dos movimentos socialistas que se desencadearão na Alemanha, assim como informar os alemães na Alemanha acerca do progresso do socialismo na França e Inglaterra. Deste modo, poderão revelar-se as diferenças de opinião, e, através de um intercâmbio de ideias, chegar-se a uma crítica imparcial.”. Em outras palavras: se pretendia realizar um vasto trabalho de propaganda  democrática e socialista e, assim, preparar o terreno para a próxima revolução popular que já se anunciava. Todos acreditavam ser a propaganda a condição essencial para se constituir o embrião de um partido operário e revolucionário internacional.

O cérebro e o coração deste embrião de organização internacional era Marx, que se encontrava refugiado na cidade de Bruxelas. Em torno de suas ideias foi se aglutinando e se constituindo um Partido Operário independente e internacional. Até aquele momento o conceito Partido se confundia com o de “corrente de opinião”. Não haviam se constituído os grandes partidos modernos, com programas, estatutos e máquinas administrativas numa escala nacional. Partido ainda era um termo com sentido muito fluído.

Marx e Engels travaram importantes embates políticos e teóricos com outras personalidades e correntes socialistas. O primeiro deles foi contra Weitling, que era operário autodidata e um dos elementos mais ativos da Liga dos Justos. Em 1842 ele havia publicado Garantias da harmonia e da liberdade, saudado por Marx como “uma estreia literária inigualável e brilhante dos operários alemães.”.

Weitling anunciara a iminente chegada do comunismo e defendia, contra os reformistas, que este só poderia ser conquistado pela luta sem trégua entre os oprimidos e os opressores. Mas, ao contrário de Marx, não compreendia o papel especial a ser desempenhado pelo proletariado. Defendeu que o elemento mais revolucionário da sociedade capitalista eram “as classes marginais” (o lumpemproletariado) e chegou mesmo a apresentar um plano detalhado de revolução social. Este se resumia à formação de um exército de miseráveis e à deflagração de uma guerra de guerrilhas contra a ordem existente. O plano foi recusado pela maioria dos membros da Liga dos Justos que o consideraram irrealista.

Ele também não compreendia a necessidade de uma etapa democrático-burguesa na revolução alemã e a aliança política com os liberal-democratas burgueses e pequeno-burgueses contra os junkers (aristocratas agrários). Algum tempo depois escreveria O Evangelho do pobre pecador, revelando uma visão religiosa do socialismo. Desfazendo-se de sua antiga perspectiva revolucionária, passou a preconizar o projeto utópico-reformista de constituição de colônias comunistas à parte da sociedade capitalista.

Outros adversários de Marx e Engels foram os “verdadeiros socialistas”. Como Weitling, estes negavam a necessidade do desenvolvimento do capitalismo alemão e achavam possível pular essa etapa do desenvolvimento social. Ao concentrarem suas críticas à burguesia liberal-democrática, faziam indiretamente o jogo da aristocracia agrário-feudal alemã. Esta estratégia, aparentemente de esquerda, era combatida tenazmente pelos fundadores do socialismo científico.

Os “socialistas verdadeiros” rejeitavam a luta revolucionária e pregavam uma espécie de “religião do amor”. A luta de classes seria fruto de uma incompreensão que poderia ser superada na fraternidade entre todos os homens. Um de seus principais adeptos, Kriege, viajou para os Estados Unidos e, em nome da corrente comunista europeia, passou a predicar o novo evangelho. Apregoou a pequena propriedade como o caminho natural para o seu comunismo. Como resposta, Marx fez aprovar no Comitê de Bruxelas o documento Circular contra Kriege. Nele se afirmava: “A ideia de converter todos os homens em proprietários privados é absolutamente irreal e, mais ainda reacionária.”. Em breve, Kriege e os “socialistas verdadeiros” sairiam de circulação, engolidos pelas revoluções populares que varreriam a Europa a partir de 1848.

A última grande luta teórica e política, antes da elaboração do Manifesto do Partido Comunista, foi travada contra Pierre-Joseph Proudhon. Em 1840, este havia publicado a sua principal obra,O que é a Propriedade?, na qual afirmava:“a propriedade é um roubo”. As ideias radicais e generosas desse socialista francês chamaram a atenção dos jovens Marx e Engels, que estavam acertando suas contas com a filosofia idealista alemã e aderindo ao comunismo. 

Em A Sagrada Família (1844) ainda se referiram a ele de maneira bastante positiva. Escreveram: “A obra de Proudhon, O que é a propriedade?, é tão importante para a economia política moderna quanto a obra de Sieyés, O que é o terceiro Estado?, para a política moderna.”. Por isso, em maio de 1846, Marx convidou-o para fazer parte do Comitê de Correspondência na França. Ele se recusou, mostrando graves divergências quanto às propostas revolucionárias que apontavam para a expropriação integral da burguesia.

Na sua carta-resposta Proudhon afirmou: “Talvez o senhor ainda conserve a opinião de que nenhuma reforma é hoje possível sem um golpe de mão, sem o que outrora se chamava revolução (…). Prefiro queimar a Propriedade em fogo lento, ao invés de lhe dar uma nova força, fazendo com os proprietários uma noite de São Bartolomeu (…). Nossos proletários têm tão grande sede de ciência que seria mal recebido aquele que só lhes tivesse a oferecer sangue como bebida.”. A propriedade que combatia Proudhon era a grande propriedade e não a propriedade dos meios de produção em geral. A pequena propriedade era a base sobre a qual procurava assentar o seu projeto de sociedade comunista.

As coisas se complicaram ainda mais quando, em outubro de 1846, Proudhon publicou o polêmico Sistema de Contradições Econômicas ou Filosofia da Miséria. Marx escreveria indignado: “O senhor Proudhon é da cabeça aos pés, filósofo, economista da pequenaburguesia”. O livro era uma espécie de radicalização das posições reformistas anteriores. Em certas passagens apresentava mesmo posições abertamente conservadoras.

Proudhon, por exemplo, condenava os sindicatos e as greves como inúteis e prejudiciais à sociedade. Os aumentos nos salários, ocasionados pelas greves, apenas causariam o reajuste dos preços que, por sua vez, aumentaria a penúria da classe operária. Escreveu ele: “A greve dos operários é ilegal. E não somente o Código Penal que o afirma, é o sistema econômico (…). Que os operários empreendam, através de coalizões, violência contra o monopólio, eis o que a sociedade não pode permitir.”. Em outra passagem afirmou: “É impossível que as greves seguidas de uma elevação de salários não conduzam a um encarecimento geral: isto é tão certo como dois e dois são quatro.”. Marx respondeu ironicamente: “negamos todas estas assertivas, exceto que dois e dois são quatro.”.

Ele, então, se colocou na tarefa de responder ponto por ponto a todas as teses equivocadas ali apresentadas. Nascia assim o livro A Miséria da Filosofia, publicado em julho de 1847. Esta foi a primeira obra pública na qual foram apresentados, ainda que de maneira polêmica, os fundamentos do materialismo histórico e de sua crítica à economia política burguesa. Ao contrário de Proudhon, Marx reforçou a importância de os operários se organizarem em sindicatos e realizarem greves para aumentar salários e diminuir a jornada de trabalho, reduzindo a exploração do trabalho. Afirmava que a consciência sindical era um estágio necessário para a transformação do proletariado de “classe em si” em “classe para si”.

Esclareceu Marx: “A formação dessas greves, coalizões e dos sindicatos caminha simultaneamente com as lutas políticas dos trabalhadores, que hoje constituem um grande partido político, sob a denominação de cartistas (…). As condições econômicas, inicialmente, transformaram a massa do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interesses comuns. Esta massa, pois, é já, face ao capital, uma classe, mas ainda não o é para si mesma. Na luta, de que assinalamos algumas fases, esta massa reúne-se, se constitui em classe para si mesma. Os interesses que defende se tornam interesses de classe. Mas a luta entre as classes é uma luta política.”. Para ele, seria através da luta política que os trabalhadores se constituiriam em classe no sentido forte da palavra, ou “uma classe para si”. Portanto, esta seria uma forma superior da luta de classes. Decorre, dessas duas constatações, uma terceira: o partido político seria uma forma superior de organização do proletariado, por ser um meio privilegiado para se travar o combate pela conquista e preservação do poder político.

A Liga Comunista

A Liga Comunista foi uma continuação da Liga dos Justos. Esta última foi criada por artesões alemães emigrados em 1836. O centro político da organização era Paris, mas foram criadas seções secretas na Alemanha. Depois de participar de uma revolta blanquista (1839), uma parte dos seus dirigentes foi aprisionada e outra teve que fugir de Paris rumo à cidade de Londres, onde havia mais liberdade política.

Engels foi o primeiro a entrar em contato com os membros Liga dos Justos, quando da sua estadia na Inglaterraentre 1842 e 1844. Ele ficou bastante impressionado e afirmou que tinham sido os primeiros proletários revolucionários que havia conhecido. Mesmo assim, não se convenceu em aderir ao grupo,pois suas concepções eram bastante diferentes naquele momento. A Liga ainda compartilhava algumas ideias utópicas sobre o socialismo.

No final de 1846 a direção da Liga propôs a convocação de um congresso com todas as suas seções. O principal objetivo era a elaboração de um novo programa socialista e dos estatutos, mais adequados às suas recentes experiências. As posições teóricas e políticas de Marx e Engels haviam chamado a sua atenção. Por isso, eles foram convocados para ajudar nesse processo de reorganização.

Então, no dia 2 de junho de 1847, teve início aquele que foi o último congresso da Liga dos Justos e o primeiro da Liga dos Comunistas. Uma “carta circular” justificou a alteração do nome: “Nós nos distinguimos não por propugnar a justiça em geral (…), mas sim por repudiar o regime social existente e a propriedade privada, propugnamos a comunidade de bens, somos comunistas.”. A divisa também foi alterada para se adequar aos novos princípios adotados. Em lugar de “Todos os homens são irmãos” lia-se agora “Proletários de todos os países, uni-vos!”.

O segundo congresso da Liga iniciou-se em 29 de novembro. Marx elegeu-se delegado por Bruxelas e Engels por Paris. Foi a assembleia mais expressiva do movimento operário internacional até aquele momento. Estavam presentes representantes da Alemanha, França, Inglaterra, Suíça e Bélgica. O primeiro parágrafo dos novos estatutos dizia: “O objetivo da Liga é o derrubamento da burguesia, a dominação do proletariado, a superação da velha sociedade burguesa que repousa sobre oposições de classes e a fundação de uma sociedade sem classes e sem propriedade privada.”. Este era um divisor de águas em relação a todas as organizações pequeno-burguesas reformistas ou revolucionárias.

Marx recebeu o encargo de elaborar o programa definitivo da organização. Ele se chamaria Manifesto do Partido Comunista e viria a público em janeiro de 1848, poucos dias antes de eclosão da revolução na França que derrubou o rei Louis Felipe. Em seguida, iniciou-se uma onda revolucionária que galvanizou toda a Europa e ficou conhecida como Primavera dos Povos.

Na segunda parte do Manifesto do Partido Comunista, intitulada Proletários e Comunistas, Marx e Engels procuraram expor a dialética que envolvia a complexa relação entre o partido e a classe. Nela afirmavam: “Os comunistas não formam um partido à parte, oposto aos outros partidos operários. Não têm interesses que o separem do proletário em geral (…). Os comunistas só se distinguem dos outros partidos operários em dois pontos: 1º) Nas diversas lutas nacionais dos proletários, destacam e fazem prevalecer os interesses comuns do proletariado, independentemente da nacionalidade; 2º) Nas diferentes fases por que passa a luta entre os proletários e burgueses, representam, sempre e em toda parte, os interesses do movimento em seu conjunto.”.

Praticamente, continua o texto, “os comunistas constituem a fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fraca que impulsiona as demais; teoricamente tem sobre o resto do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições da marcha e dos fins gerais do movimento proletário.”. Neste trecho, Marx e Engels definem claramente o papel de vanguarda do Partido Comunista. Segundo eles, o Partido Comunista faz parte da classe – é um partido do proletariado –, mas, ao mesmo tempo, não se confunde integralmente com ela, pois representa sua vanguarda organizada.

Além de terem elaborado uma concepção de Partido e uma estratégica revolucionária, os autores do Manifesto buscaram delinear as formas de organização que este partido deveria assumir visando a realizar suas tarefas. Ou seja, eles buscaram, também, nos legar elementos para a construção de uma teoria da organização política proletária.

As mudanças estatutárias eram essenciais na transformação da Liga de uma seita conspirativa (blanquista) numa verdadeira organização política, revolucionária com influência de massas. Para isso, foram retiradas dos estatutos todas as excrescências comuns às sociedades secretas da época, como os rituais místicos de ingresso, juramentos, concentração excessiva de poderes nos líderes. O congresso anual, composto de delegados eleitos democraticamente nas comunidades e regiões, se transformou no órgão máximo da organização. As direções centrais passaram a ser eleitas nesses congressos e seus membros poderiam ser destituídos a qualquer momento pela vontade de sua comunidade. Os órgãos inferiores deveriam se subordinar aos órgãos superiores.

A Liga dos Comunistas era uma organização bastante democrática e, ao mesmo tempo, centralizada. Em muitos países ela era clandestina. Para despistar a polícia e poderem se ligar às massas, seus membros criaram associações culturais operárias legais onde pudessem atuar mais abertamente. Marx e Engels abominavam a ideia de que a Liga se transformasse numa seita, isolada dos trabalhadores e da grande política.

Muitos dos princípios norteadores da nova organização permaneceriam na tradição do movimento socialista e comunista: um partido do proletariado, de vanguarda, internacionalista e voltado para a ruptura com o capitalismo. Deixou-nos, também, a proposta de um partido que fosse, ao mesmo tempo, democrático e centralizado.

As derrotas das revoluções populares de 1848, resultado das vacilações burguesa e pequeno-burguesa, levaram Marx e Engels a pleitearem com mais força a necessidade de constituição de partidos operários independentes. Na Mensagem do Comitê Central da Liga dos Comunistas (1850), escreveram: “A fim de estar em condições de opor-se energicamente aos democratas pequeno-burgueses, é preciso, sobretudo, que os operários estejam organizados de modo independente e centralizados através de seus clubes (…) e, na primeira oportunidade, o Comitê Central (da Liga) se transferirá para a Alemanha, convocará imediatamente um Congresso, perante o qual proporá as medidas necessárias para a centralização dos clubes sob a direção de um organismo estabelecido no centro principal do movimento.”.

Continuaram eles: “Ao lado dos candidatos burgueses democráticos, que figurem em toda parte candidatos operários, escolhidos na medida do possível dentre os membros da Liga, e que para o seu triunfo se ponham em jogo todos os meios disponíveis. Mesmo que não exista esperança alguma de vitória, os operários devem apresentar candidatos próprios para conservar independência, fazer uma avaliação de força e demonstrar abertamente a todo mundo sua posição revolucionária e os pontos de vista do partido.”.  

A Liga dos Comunistas foi duramente perseguida após a derrota da revolução alemã. Contra ela, instaurou-se o processo de Colônia, no qual vários dirigentes foram condenados a longos anos de prisão. Assim, não havia mais condições de mantê-la funcionando e, em 1852, foi dissolvida. Marx afirmou: “a Liga dissolveu-se, por minha iniciativa, declarando que a sua continuação (…) já não corresponde à situação vigente.”. Começaria então um novo capítulo do complexo processo de constituição dos partidos socialistas no mundo. Marx e Engels continuariam à frente dele.

 

Na segunda parte deste ensaio trataremos do papel desempenhado por Marx e Engels na construção das duas primeiras internacionais e dos grandes partidos socialistas, que marcariam fortemente a vida política da Europa no final do século XIX e início do século XX. E, também, disponibilizaremos a bibliografia utilizada neste trabalho.

 

* Este texto é um dos capítulos do livro Linhas Vermelhas: marxismo e dilemas da revolução.

** Augusto César Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e dilemas da revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e a Editora Anita Garibaldi.