A Revolução Francesa de 1789 abriu as portas para o predomínio do pensamento burguês em escala global. Antes da magnífica revolução na França, a burguesia – e o capitalismo, sua estrutura fundamental baseada na super exploração da força-de-trabalho através da produção de mercadorias a serem vendidas em âmbito local/nacional e mundial – debatiam-se com as antigas estruturas herdadas da sociedade feudal/medieval.

Antes dos episódios revolucionários na França, a herança medieval vinha sendo questionada e modificada lentamente, pela própria ascensão da burguesia nos séculos anteriores. Notadamente, na Inglaterra com as vitórias burguesas nas revoluções do século 17 e a implantação do parlamentarismo, tirando das mãos dos reis ingleses parte significativa do seu até então grande poder, o chamado Absolutismo Monárquico, assentado no “direito divino”, e no predomínio social e político da nobreza e do clero católico, as revoluções inglesas resultaram num acordo entre a burguesia e a nobreza, preservando a monarquia como sistema, os títulos e propriedades da nobreza, que, de resto, duram até hoje e instituindo o parlamentarismo como forma de governo, que passou às mãos dos representantes políticos dos banqueiros e donos de manufaturas, burgueses, portanto.

A Revolução Francesa, por seu lado, não deixou pedra sobre pedra do mundo feudal/medieval! No período compreendido entre o início da Revolução – 1789 – e o fim do período Napoleônico (1815), o povo francês, tendo a burguesia como condutora fundamental daquele processo, demoliu impiedosamente as estruturas jurídicas, políticas e culturais da velha nobreza e do carcomido e corrupto clero católico. Na fase mais radical da Revolução – o período dos jacobinos liderados por Robespierre – a nobreza e o clero foram sumariamente extintos da França. O clero retornou após o fim do governo jacobino (1794) mas a nobreza só teria algum tipo de retorno ao fim do período napoleônico, ainda assim, por pouco tempo.

A partir da Revolução Francesa e seus desdobramentos na Europa e boa parte do “mundo ocidental” e mais além, ao longo dos séculos 19 e 20 a burguesia estabeleceu o seu predomínio cultural, jurídico, político, institucional e, acima de tudo, econômico, conjugando o comércio internacional, a revolução industrial iniciada na Inglaterra no mesmo período da Revolução Francesa e a ocupação sem piedade da África e Ásia na segunda metade do século 19, o chamado neocolonialismo. Nosso mundo, o do século 21, é o resultado – em quase todos os campos – daquela revolução. Somos herdeiros das instituições, conceitos e estrutura econômica resultantes dela. Somos herdeiros dos seus avanços, sem dúvida. Mas também dos imensos limites que as instituições burguesas criaram para que ela pudesse se manter comandando as nações.

Cabe ainda registrar que a Revolução Francesa não traçou um caminho em linha reta para o predomínio burguês sobre o mundo. Ao contrário, ele foi sinuoso, complexo, repleto de idas e vindas, de contrarrevoluções que buscavam impedir a burguesia de ter o controle total sobre as diversas estruturas da França, do restante da Europa e mais além. No caso especificamente francês, a Revolução foi derrotada por um tempo, em função da articulação dos países absolutistas e da Inglaterra, – a “Santa Aliança” – que derrotaram Napoleão e impuseram aos franceses o retorno de uma monarquia capenga que tentou retomar os preceitos absolutistas, processo que durou até 1848 quando, por uma nova revolução, instalou-se definitivamente a República.

Como estamos falando de revoluções, cumpre ainda dizer que todas elas – em especial a de 1789 – na França e nos demais países e especialmente na Rússia, objeto central deste texto – foram profundamente violentas, regadas pelo sangue das forças em luta. Revoluções são assim, gostemos ou não. Quando Marx afirmou que “a violência é a parteira da História” ele apenas fez uma constatação bem óbvia e não uma profissão de fé, um apego à violência, como querem os antimarxistas que tentam esconder o real movimento da história.

Se a Revolução Francesa é o marco fundante do capitalismo como sistema integral – econômico, institucional e com suas subjetividades fundamentais – a Revolução Russa de 1917 é o marco fundante de outro sistema, o Socialismo. E assim como ocorreu no caso francês, a revolução na Rússia, seus desdobramentos internos e externos, abriram as portas para um novo tipo de sociedade, que, evidentemente, está ainda longe de ser implantada em escala global, posto que vivenciamos apenas um século desde a sua eclosão, a ser comemorada ainda em outubro/novembro deste ano.

A Revolução Socialista na Rússia, tendo como inspiração ideológica o pensamento socialista elaborado no século 19, especialmente o marxismo como fonte teórica fundamental, e incrementado por Lênin, grande teórico marxista e condutor da revolução nos seus primeiros anos, passou por fases intensas, duras, de terríveis confrontações nacionais e internacionais, até o ponto da sua estagnação nos anos 1960, declínio nos 1970/80 e fim em 1991 e a restauração capitalista que se seguiu na Rússia e nos demais países que compuseram o “Bloco Socialista” no Leste Europeu pós 2ª Guerra Mundial. Isso significou o fim do socialismo como preconizaram os ideólogos a serviço do grande capital? Não.

Assim como a derrota francesa em 1815 e a restauração monárquica que lhe seguiu – e a perseguição em escala continental a todos os que promoviam as “ideias francesas”, não significaram o fim do capitalismo e das instituições burguesas criadas pela Revolução de 1789, que, de modo geral, se instalaram a posteriori e são dominantes no mundo hoje. Como já assinalado acima, os ideólogos do Absolutismo também proclamaram o fim de tudo o que a Revolução Francesa significava. Enganaram-se redondamente.

A experiência socialista na Rússia, a construção de uma União Soviética, de uma Internacional Comunista, a tentativa de espalhar aquela revolução pela Europa e para o mundo, as lutas trabalhistas ao longo do século 20 e ainda hoje, as guerras de libertação na África e Ásia contra o colonialismo europeu pós 2ª Guerra, a própria derrota do nazifascismo, a construção de um bloco de nações “socialistas”, as revoluções socialistas na China e Cuba, e a própria formação do Estado de Bem Estar Social na Europa do pós guerra, todos esses e outros fenômenos não nominados aqui, estiveram – e ainda estão – relacionados diretamente com o início, desenvolvimento, declínio e fim do socialismo na velha Rússia. Inclusive diversos avanços tecnológicos, como o desenvolvimento do uso de satélites e sistemas de propulsão de foguetes.

De uma nação destruída pela 1ª Guerra, herdeira de uma tradição secular de obscurantismo, opressão e poder monocrático, à condição de grande potência global emparelhada com os EUA na segunda metade do século 20, a Rússia vivenciou saltos gigantescos de desenvolvimento econômico e padrão de vida do seu povo sob o Socialismo. Inclusive outros avanços civilizacionais como, por exemplo, a profunda participação da mulher em todos os campos da vida. Fenômenos como a erradicação da miséria e do analfabetismo, a criação de um grande parque industrial e em tecnologias inovadoras para a época são legados impossíveis de negar para quem se dedica a estudar com um mínimo de seriedade aquela fase da história.

Impossíveis de negar também são suas contradições, seus limites, suas distorções, especialmente no aspecto da democratização do poder político, que ficou muito concentrado nas mãos do Estado, fundido com o Partido Comunista. Autoritarismo, corrupção, privilégios a uma elite que controlava o Estado, repressão política disseminada contra os que pensavam de modo distinto, afastaram parte significativa da massa popular do efetivo exercício do poder político preconizado pelos primeiros teóricos do socialismo. A “democracia popular” tornou-se um lema vazio de sentido. Evidente que esses fenômenos negativos – como os positivos anteriormente apontados – precisam ser interpretados à luz da história russa, das próprias características seculares daquela cultura e, de modo muito especial, olhando as relações internacionais da URSS e sua confrontação com o “mundo capitalista” liderado pelos EUA no âmbito da Guerra Fria e do cerco de morte que a burguesia em escala global estabeleceu contra o socialismo e contra a URSS em especial.

A construção e o fim do socialismo na URSS jamais poderão ser analisados buscando identificar os problemas apenas no âmbito das suas relações internas, como, de resto, para qualquer tipo de nação ou sistema econômico e social registrados ao longo da história.

A URSS viveu uma prolongada guerra de vida e morte com as potências capitalistas desde o seu início. Basta lembrar que já em 1918 o primeiro- ministro francês, George Clemenceau, promoveu junto com a Inglaterra a política de “Cordão Sanitário” contra a jovem revolução, exortando o seu isolamento econômico em relação ao resto da Europa e a agressão militar direta, pela qual a Rússia foi invadida impiedosamente por tropas inglesas, holandesas, estadunidenses e japonesas, aliadas aos “russos brancos”, resultando numa sangrenta “guerra civil” que custou mais de seis milhões de vidas. Tudo isso para tentar evitar que o “germe do comunismo” se espalhasse pela Europa e pelo mundo, sempre conforme dizia o político francês defensor do grande capital predatório.

Sociedades sob ataque externo – em qualquer circunstância histórica – buscam se defender para sobreviver. São obrigadas a se fecharem e se voltam contra as forças internas aliadas de quem tenta destruí-las. Esse fenômeno, em qualquer sociedade, insisto nisso, gera distorções, muitas vezes profundas e as críticas justas são confundidas com contrarrevolução. Na Revolução Francesa, criticar o governo Jacobino era tomado como defesa do Absolutismo. Criticar Napoleão, idem. Mas a lógica vale, por exemplo, para a guerra revolucionária de independência das 13 Colônias Americanas contra a Inglaterra, processo que fundou os Estados Unidos da América.

O fenômeno do “isolamento” das nações socialistas, o “fechamento da URSS para o mundo – o caso cubano é bem expressivo disso – é muito mais o resultado do cerco econômico e político que lhes foram impostos do que uma “natural tendência ao isolamento”. O isolamento – alimentado pelo cerco externo – e a repressão interna tornam-se instrumentos de defesa, o que não retira a necessidade de compreender melhor a insuficiente construção de uma democracia efetivamente de massas no caso da URSS, notadamente a partir da consolidação da revolução sob o poder do Partido Comunista.

No centenário do início daquela revolução, historiadores, sociólogos, cientistas políticos, movimentos sociais e trabalhistas, e, óbvio, os próceres do grande capital, se debruçarão para buscar os sentidos, significados e lições daquele grande fenômeno. Muitos tirarão lições, aprendizados. Outros buscarão colocar novas pás de cal sobre ela e maldizendo a busca pela construção de uma sociedade mais justa. Seja como for, teremos um ano de grande debate de ideias. Levando em consideração a profunda crise que assola o capitalismo mundial – e o Brasil em particular – o avanço das ideias retrógradas, um certo renascimento de aspectos do fascismo e as saídas de caráter neoliberal que a própria burguesia aponta para a crise criada por ela mesma, o Centenário da Revolução Russa ganhará ainda maior significância.

Estudá-la, debatê-la será, portanto, uma tarefa de grande relevância. Porque ela foi o primeiro sopro de possibilidade concreta de construir uma sociedade mais justa. Se considerarmos o mundo que temos hoje, no qual sessenta bilionários em escala global têm mais riquezas do que mais da metade da população mundial, o que os revolucionários russos se propuseram a fazer continua atualíssimo!