“O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética… o que me preocupa é o silêncio dos bons”

Martin Luther King

 

O Brasil e o mundo têm enfrentado uma conjuntura adversa nos últimos anos, com o retorno de atos totalitários, recheados de ódio e intolerância. Alvo direto da política (ultra)neoliberal do desgoverno golpista, a Uerj, em particular, vive um momento de grave ataque à sua autonomia, com salários atrasados, bandejão fechado e ausência de investimentos. Não bastasse toda essa violência, na noite do dia 25 de outubro de 2017, durante a Conferência de encerramento do Seminário “100 anos de Revolução Bolchevique: História e Memória”, um grupo de inspiração fascista invadiu o espaço acadêmico de debates, no auditório da Pós-Graduação em História Política da Uerj, para fazer culto à ditadura e hostilizar os presentes. O ato constituiu uma dupla violência, à História e à Memória.

Com métodos de intimidação, os vândalos buscavam desencorajar iniciativas de debates ou reflexões sobre temas que talvez nem conheçam. Eles portavam blusas defendendo uma intervenção militar no Brasil.1 Paradoxalmente, escondiam os rostos para as fotos, ao mesmo tempo em que eles mesmos filmavam e tiravam fotos. Por que se escondiam? O que temiam? Diz o dito popular “quem não deve não teme”. Durante a Conferência da professora titular em História Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos, especialista em América Latina, um deles levantou a voz e acusou-a de “doutrinação comunista”. Visivelmente alterado e com gestos de intimidação, o grupo tentou tumultuar o evento. O sistema de segurança da Universidade funcionou e atuou exemplarmente. Dezenas de estudantes que estavam em salas e nos corredores correram para o local, em solidariedade ao evento.

A Uerj resistiu e enfrentou os fascistas neoliberais, dando uma aula de cidadania e educação. Avessos ao diálogo, os insignificantes não tiveram alternativa senão sair por onde entraram, envergonhados. A coordenação do evento, militantes e entidades dos movimentos sociais repudiaram veementemente a agressão a que foram submetidos os participantes da conferência de encerramento e a própria Uerj como instituição. A comunidade interna da Uerj e a sociedade civil organizada reprovaram com tanta justiça aquele impropério que os baderneiros retiraram da internet os vídeos que eles mesmos postaram.

Entre tantos caminhos que podem ser trilhados para tratar desse infortúnio, o melhor talvez seja transformá-lo em material didático e fonte de pesquisa para alimentar as finalidades precípuas que têm as Universidades, o ensino, a pesquisa e a extensão. Esse caminho pedagógico possibilita várias interpretações. Propomos, assim, abordar o fato como parte de uma estratégia política maior, cujo catalisador é o ódio de classe.

Utilizemos a metáfora de um palco teatral. O cenário completo só pode ser visto ao se abrirem totalmente as cortinas. Entendendo-se assim essa violência contra a Universidade não pode ser vista descolada das agressões de que a sociedade brasileira vem sendo vítima. Ela não é uma manifestação isolada, mas uma ação articulada, que possui sua vertente na intolerância religiosa, na violência contra LGBT, nos atentados em escolas etc.

Por que a Uerj? Por que a Uerj resiste. A Universidade do Estado do Rio de Janeiro possui um dos melhores Hospitais da América Latina (HUPE), uma das melhores escolas (Cap), divide com outras universidades os primeiros lugares entre os cursos oferecidos. O ódio alimentado contra a Uerj, porém, tem um sentido: nossa universidade assumiu lugar de destaque nas melhorias socioeconômicas da população, com o pioneirismo das ações afirmativas que instituíram a verdadeira igualdade entre os desiguais. A Uerj tem povo, da periferia, da Baixada, do interior. É do povo que eles têm medo. A mobilidade das classes que compunham a base da pirâmide social, com o respectivo movimento inverso de camadas superiores, encontrou nas elites uma reação jamais vista na história do Brasil. O sentimento de raiva dos ricos cresceu e veio sendo disseminado em mensagens subliminares ou mesmo diretas, supostamente despretensiosas.2

As recorrentes crises que envolvem a segurança pública não podem estar ausentes de nenhuma análise sobre a realidade brasileira. A construção do mito das classes perigosas (Coimbra, 2001) criminaliza a pobreza, divide a sociedade e impõe uma ideologia do medo. A violência mais uma vez é transformada num espetáculo (Debord, 2003) no qual as pessoas viram elementos secundários de uma suposta “política de segurança” militarizada, como ensaio patético de uma ordem que já ruiu outrora, mas cujos germes foram mantidos.

Desde as “jornadas de junho” de 2013, tem havido um movimento crescente de incitação ao ódio, como arma política da classe dominante contra os pobres. O resultado das eleições de 2014 aumentou o ódio e a intolerância daqueles que não sabem conviver com a ordem democrática, mesmo em sua feição burguesa. Entre os absurdos, após o pleito de 2014 os descontentes com as urnas revitalizaram ideias separatistas. O alvo do preconceito eram os nordestinos. Seguidas vezes temos reações contra homossexuais, negros, pobres, mulheres, religiosos. Projetos como Escola sem Partido somam-se às aberrações da direita para manter a população inculta e apática diante da exploração que sofre.

Ao abrirmos as “cortinas do passado”, podemos encontrar inúmeros exemplos. O historiador José Honório Rodrigues, lembrou que “Os liberais no império, derrotados nas urnas e afastados do poder, foram se tornando além de indignados, intolerantes” (1965, p.11). Insatisfeitos ainda os liberais, completou Rodrigues, eles “construíram uma concepção conspiratória da história que considerava indispensável a intervenção do ódio, da intriga, da impiedade, do ressentimento, da intolerância, da intransigência” (idem).

Mesmo com o advento da República (a Nova), a mentalidade “antipovo” persistiu. Apoiado por imensa maioria da população, Getúlio Vargas, a partir de 1950, enfrentou uma dura oposição. Dentre as medidas de impacto, o ministro do Trabalho, João Goulart, havia concedido 100% de aumento nos salários, o que causou revolta nas elites e parcela dos militares. Conspirações de direita, capitaneadas pela UDN, levaram Vagas ao suicídio em 1954. Os golpistas tentaram, então, impedir as eleições de 1955 e, derrotados pelo povo e pela ação preventiva do Marechal Lott, ainda investiram contra a posse de Juscelino Kubitschek na Presidência da República.

Em 1961, os inimigos da democracia conspiraram contra a posse de João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros. Mais uma vez, foram derrotados pela Campanha Popular da Legalidade, iniciada pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola.3 Jango tinha os trabalhadores do campo e da cidade ao seu lado. As reformas de base anunciadas por Goulart em 13 de março de 1964 colocariam o Brasil na liderança econômica entre os países da América Latina. Era um programa democrático-popular. O caminho apontado pelo governo Goulart objetivava tirar o Brasil da condição de dependente do imperialismo norte-americano. O projeto de nação do governo Jango incorporava o povo, ainda que dentro da ordem burguesa.

A conspiração de 1954 reorganizou-se, desferindo o golpe civil-militar de 1º de abril de 1964 cujos agentes foram a CIA, empresários e militares. Somente com tanques nas ruas e propagandas mentirosas os golpistas conseguiram chegar ao poder, impondo a ditadura. O programa de governo do regime ditatorial afastava o povo do desenvolvimento econômico. O lema era: “primeiro deixar o bolo crescer para depois distribuir”. Jamais vimos esse bolo.

Do ponto de vista do conteúdo, as manifestações de intolerância resgatam a paranoia anticomunista disseminada, convenientemente, pelo imperialismo norte-americano desde a Guerra Fria.4 Pode-se dizer que a pregação do “antitudo” é um instrumento retórico que tende a cooptar adeptos numa conjuntura demasiadamente caótica. Nesse sentido, o golpe de 2016, mais uma vez contra o povo, foi fundamental para instaurar um clima de confusão na política, objetivando desviar o foco das questões mais relevantes. Com o poder nas mãos, a elite econômica sabota o processo democrático com truques ilusionistas de um caos promovido por ela mesma.

A questão principal continua sendo a disputa de projetos para o Brasil e a clareza de identificar quem é quem. A política brasileira foi bipolarizada. Há os que querem escravizar o povo, retirar direitos, com a desculpa, inclusive, da defesa da “ordem” e da “justiça social”. Existem, por outro lado, os que pretendem utilizar as contradições do capital para incorporar a população ao desenvolvimento econômico, ampliar os direitos e as políticas públicas.

As Universidades, como espaço do debate e da construção do pensamento crítico e autônomo, são o lugar privilegiado de discussão desses projetos. Impedir esse debate é o verdadeiro sentido dos ataques, tanto dos desgovernos quanto dos bandoleiros (a serviço do sistema). As instituições de ensino superior, porém, não se calarão nem se curvarão diante das ameaças à liberdade. Ao contrário, devem movimentar-se, alegrar-se, conscientizar. Afinal, foram elas que resistiram bravamente à ditadura.

Mitigar a violência que a sociedade sofreu e sofre, em qualquer nível, poderia ser interpretado como medo, covardia ou cumplicidade. A história não absolverá nenhum deles.

 

*Alberto Dias Mendes é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política (Uerj), técnico universitário II (Uerj) e professor assistente (FGS).

 

1 Sobre a questão militar no Brasil, ver: DREIFUSS, René Armand; DULCI, Otávio Soares. “As Forças Armadas e a política”. In: SORJ, Bernardo; ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de (orgs.). Sociedade e política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983; CARVALHO, José Murilo de. “Vargas e os militares: aprendiz de feiticeiro”. In: Forças Armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p.102-117; e SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2ed., 1968.
2 Ver VELASCO E CRUZ, Sebastião; KAYSEL, André; CODAS, Gustavo (orgs.). Direita volver! O retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2015.
3 DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de Classe. Petrópolis: Vozes, 2ed., 1981.
4 Ver: TOTA, Antonio Pedro. “Vendo tudo vermelho: paranoia e anticomunismo”. In: Os americanos. São Paulo: Contexto, 2009, p.175-229.

 

Publicado em Le Monde Diplomatique