Sob o aspecto jurídico-constitucional, é importante diferenciar “crise institucional” de “crise sistêmica”. A “crise institucional” é uma crise das instituições do Estado e que se soluciona pela regular aplicação das normas já previstas na Constituição Federal (ou seja, uma crise sob a Constituição). A “crise institucional” pode ser grave, mas nunca prejudica a Constituição em si (no final, a “regra do jogo” é respeitada). Diferente e mais perigosa é a “crise sistêmica”, que é quando alguma instituição do Estado (ou mais de uma) passa a atuar fora dos limites estabelecidos pela Constituição e os demais não conseguem reenquadrá-la, colocando-se em dúvida a própria eficácia das normas constitucionais de organização do Estado (ou seja, é uma crise sobre a Constituição).

De 1988 para cá, o Brasil viveu diversas “crise institucionais” (impeachment de Collor, escândalos de FHC, mensalão etc), nas quais os Três Poderes do Estado se debateram entre si ou debateram-se com outras forças da sociedade (algumas progressistas e outras reacionárias), mas, no fim, a Constituição Federal sempre prevaleceu. Isso aconteceu porque os diversos atores institucionais e sociais reconheceram que a Constituição Federal não é apenas um documento formal (“uma simples folha de papel”, como diria Ferdinand Lassale), mas sim um conjunto de instituições que garantem a estabilidade social do Brasil e, com isso, permitem o avanço e o desenvolvimento. Até então, todas as forças em disputa divergiam quanto o significado de “avanço e desenvolvimento”, mas todas concordavam que a ordem constitucional seria a melhor maneira de buscar tais objetivos.

O problema da crise iniciada em 2014 é que, em um determinado momento, a “crise institucional” (disputa entre a Presidenta Dilma e a Câmara dos Deputados) rapidamente transformou-se em “crise sistêmica”. A caixa de pandora abriu-se no momento em que Eduardo Cunha (então Presidente da Câmara) decidiu promover um impeachment sem fundamentação jurídica e, o mais grave, foi apoiado pela conivência do Supremo Tribunal Federal (responsável por omissão). A partir de então, todas as instituições sentiram-se legitimadas para também descumprir a Constituição.

Curiosamente, o Congresso Nacional foi a primeira vítima, e logo passou a sofrer ataques do próprio STF, com violações gravíssimas das imunidades parlamentares (com prisões de parlamentares e afastamentos “cautelares” de mandato) e agressões abertas à autonomia político-administrativa das duas casas legislativas (afastamento de Eduardo Cunha e tentativa de afastamento de Renan Calheiros).

O Executivo não passou incólume, de modo que hoje qualquer juiz de primeira instância sente-se legitimado a barrar nomeação de ministros e a suspender decisões administrativas com fundamentos meramente políticos (ninguém nega que o Judiciário é legítimo para avaliar a legalidade dos atos do Poder Público, mas tais decisões devem ter fundamentos estritamente JURÍDICOS e nunca POLÍTICOS).

O problema de uma “crise sistêmica” é que dela surge um “jogo sem regras”. Mas enganam-se o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal se acreditam que passarão ilesos pela crise: o ex-Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, já tornou-se alvo de ataques. A mesma condução coercitiva que leva Lula, também poderá levar Sérgio Moro. O mesmo MP que investe contra parlamentares, também poderá investir contra juízes. Os mesmos juízes que condenam sem provas, também poderão ser condenados sem provas por seus adversários.

Uma “crise sistêmica” pode se encerrar de duas maneiras: (i) pela ruptura final da constituição vigente e com o estabelecimento de um novo pacto; ou (ii) pela reafirmação da constituição vigente. Mas não sejamos ingênuos, pois o “novo pacto” a ser proposto para encerrar a crise iniciada em 2014 não será progressista, muito pelo contrário: será o pacto das medidas de austeridade (onde os pobres não cabem no orçamento do Estado), será o pacto do punitivismo penal, e será o pacto pelo qual as instituições não-eleitas (o Judiciário e o Ministério Público, por exemplo) passarão a ter hierarquia sobre as instituições eleitas.

Sendo assim, para os setores progressistas, a melhor solução para a presente crise é a defesa intransigente da Constituição Federal de 1988. Não há necessidade de reformas, emendas ou de uma nova constituição, basta a reafirmação das normas constitucionais já existentes. Não será uma tarefa fácil, pois o gênio não será convencido a voltar para dentro da garrafa, ele terá que ser empurrado! Mas lembremo-nos que, em tempos de Golpe, defender a Constituição é uma atitude revolucionária!

*MARCIO ORTIZ MEINBERG é advogado e Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP.