A dispersão da erva daninha neoliberal, adubada pelo pós-modernismo agroambiental

Foi grande o estardalhaço causado pelo documentário “O veneno está na mesa”, dirigido pelo cineasta Silvio Tendler[1]. Um documentário emblemático para se entender como parte da esquerda brasileira aderiu ao debate raso sobre assuntos profundos.

Tanto a primeira quanto a segunda parte, lançadas em 2011 e 2014, respectivamente, conseguiram sensibilizar expressiva parte da população, sobretudo setores da classe média, em torno da grave questão que aflige milhões de brasileiros relacionada ao uso indiscriminado de insumos

A abordagem (ou a “pegada”) da obra, assim como a narrativa dada ao tema pelos mais diversos movimentos sociais ligados às temáticas agrária/agrícola e ambiental, se destaca por focar o debate no produto químico, denominado pejorativamente como “veneno”, do que propriamente dar centralidade ao nó górdio do imbróglio: a ausência ou insuficiência do Estado Nacional em praticamente todos os segmentos das atividades agropecuária brasileira.

Nesse sentido, muita atenção é dada ao caso de um agricultor que se intoxicou respirando os gases liberados pelas sementes tratadas por um inseticida ao abrir inadvertidamente a tampa de uma semeadora, e nenhum destaque é oferecido ao público sobre a omissão do Estado em capacitar ou fiscalizar o trabalhador rural no manejo correto dos defensivos químicos.

Em outras palavras, é como se um cidadão qualquer tivesse acesso a um tipo de medicamento tarja preta sem prescrição médica e, ao invés de se cobrar maior controle por parte do Estado na liberação e fiscalização no uso deste medicamento, focássemos todas as energias em exigir um mundo livre de drogas.

Curiosamente, campanhas contra o uso de insumos químicos, denominados depreciativamente como agrotóxicos, são lideradas pelos mais diversos e ecléticos setores da sociedade, abarcando, no espectro político, desde a pequena-burguesia até a esquerda proclamada mais revolucionária.

Assim, é comum se ver tanto no programa matinal da Globo, apresentado por Ana Maria Braga[2], quanto em um encontro de movimentos sociais, as mesmas bandeiras em defesa de um projeto extremamente conservador baseado na tríade: propriedade privada da terra, trabalho de tipo familiar patriarcal e agricultura sem “veneno”.

A crítica ao Estado Mínimo passa ao largo da análise de todos estes grupos, absortos em suas crenças medievais de uma agricultura guiada pelos astros, simpatias e outras benzeduras; assim como para os neoliberais, crentes na eficiência de um pretenso livre mercado.

No mundo real, assistimos ao encolhimento do Estado Nacional, a incorporação de empresas brasileiras pelas gigantes do setor, o protecionismo da agricultura pelos governos estrangeiros e a completa desnacionalização das cadeias produtivas ligadas ao agro brasileiro, atingindo em cheio desde o mais humilde camponês ao mais abonado empresário rural (invariavelmente tachado como latifundiário).

Mas há também outro grave fenômeno, pouco mencionado, que, em nome do receituário neoliberal – levado à cabo sobretudo a partir da década de 1980 -, ousou varrer do mapa toda uma incipiente tentativa de consolidação da política nacional de assistência técnica e extensão rural (Ater), institucionalizado pelo Sistema Brasileiro de Extensão Rural (Siber), ainda no início da década de 1960: a “privatização” da extensão rural no Brasil.

A extensão rural no Brasil: da popularização do conhecimento à propaganda mercantil

Na disputa ideológica sobre modelos de agricultura, hoje polarizada entre o agronegócio e a agricultura familiar, surgem “dados” dos mais diversos, extraídos das mais variadas fontes e que, não raras vezes, carecem de rigor científico.

De um lado, os apologistas do agronegócio, restritamente como produtor de commodities, apartado das questões sociais e ambientais. Destacam-se como os novos fisiocratas, advogando o retorno do Brasil vocacionado a “celeiro do mundo” e as atividades do setor primário como o motor da economia nacional, tal como nos anos áureos do ciclo do café.

Do lado oposto, os romanceiros de uma agricultura tida como tradicional, propagandeada como parceira da natureza (como se possível fosse), fundamentada no trabalho familiar tipicamente patriarcal, na sedentariedade da população rural e no apego à terra (características duramente criticadas por Lênin[3]). A urbanização acelerada que o país vivenciou parece ter despertado o sonho do retorno às épocas de um país essencialmente agrícola em que se praticava a agricultura na base da enxada.

Ocorre que, ambos os lados, são vítimas históricas da ausência de uma política nacional de desenvolvimento capaz de patrocinar um Estado Nacional forte, comprometido com os interesses da nação. Submetidos meramente às vontades do “Deus-mercado”, representado pelo capital internacional, todos saem perdendo.

O exemplo do uso indiscriminado de insumos químicos utilizado neste artigo é emblemático para demonstrar este prejuízo comum e conjunto. Tanto o agronegócio torna-se refém da assistência técnica privada oferecida pelos representantes das chamadas revendas, ou seja, porta-vozes indiretos das grandes multinacionais que promovem uma agricultura extremamente dependente de pacotes tecnológicos específicos, como também o pequeno agricultor, que se vê abandonado pelo Estado, incapaz de lhe dar suporte técnico na condução de sua atividade.

Dessa forma, assistimos os movimentos sociais adotarem a velha tática ludista[4], ou seja, ao invés de combaterem a apropriação da atividade agropecuária brasileira por meia dúzia de gigantes do setor privado e ao esfacelamento do Estado Nacional, centralizam suas ações em queimar campos experimentais de transgênicos ou em campanhas por uma alimentação sem “agrotóxicos”.

Em contrapartida, representantes da agricultura empresarial, organizada em distintas esferas (destacadamente no Congresso Nacional, através de uma bancada ruralista composta por mais de 220 deputados e 20 senadores), também cerram fileiras contra um falso inimigo, elegendo os movimentos sociais como alvo central de uma disputa em que quem sai ganhando são as multinacionais estrangeiras.

O maniqueísmo cego, descolado de um Projeto de Nação, impede os dois lados, sem negar a luta de classes existentes, de somarem esforços em uma frente nacional antineoliberal, resgatando a soberania alimentar e promovendo o desenvolvimento dos diversos ramos agropecuários da moribunda indústria nacional.

Há muita diferença da linha de pesquisa de um transgênico desenvolvido por uma Bayer de outro desenvolvido pela Embrapa, assim também, como nos ensina a sabedoria popular, que a diferença entre o veneno e o remédio é a dose.

Mas para o agricultor diferenciar entre um e outro, é fundamental o resgate do papel do extensionista rural, patrocinado pelo Estado Nacional, que, sobretudo após a escalada do neoliberalismo em nosso país, desde os anos 1980, foi drasticamente diminuído. Em seu lugar, foi ganhando espaço a figura do assistente técnico privado, comprometido com a sua meta mensal de venda e com os interesses dos acionistas de sua empresa.

Assim sendo, extrapola no uso de insumos químicos tanto o capacitado empresário rural, iludido com a publicidade mercantil; quanto o pequeno produtor, desinstruído tecnicamente e desamparado pelo poder público.

Se mesmo aos trancos e barrancos a Embrapa, uma instituição pública de pesquisa criada em 1973, vem cumprindo importante papel para “viabilizar soluções de pesquisa, desenvolvimento e inovação para a sustentabilidade da agricultura, em benefício da sociedade brasileira”[5], a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater), instituída em 1975, não teve a mesma sorte.

Concebida para trabalhar de forma integrada com a Embrapa e todas as instituições estaduais envolvidas em assistência técnica e extensão rural (Ater) e pesquisa agropecuária, levando ao produtor rural o conhecimento produzido, a Embrater foi morta e enterrada pelos neoliberais no governo do presidente Fernando Collor de Mello, em 1990[6].

Na esteira das políticas do Estado Mínimo, todas as estruturas governamentais de assistência técnica e extensão rural estaduais (Emater e congêneres), também sofreram sucessivos cortes no orçamento até chegarem à atual situação de total sucateamento destes importantes instrumentos que formavam o Sistema Brasileiro de Assistência Técnica e Extensão Rural (Sibrater).

Sem um trabalho estratégico de divulgação e popularização das novas tecnologias, geradas pelas pesquisas desenvolvidas pela Embrapa, universidades e outras instituições públicas de pesquisa agropecuária do país, fundamentais ao desenvolvimento rural, assistimos ao pequeno agricultor desamparado em lidar com as inovações tecnológicas e o grande produtor refém dos pacotes enfiados goela abaixo pelos representantes das multinacionais dos mais diversos setores.

O quadro é ainda mais trágico quando essas tecnologias são desenvolvidas nas matrizes dessas multinacionais, que abocanharam quase toda a indústria nacional ligada às atividades agropecuárias, apenas reproduzindo no Brasil seus experimentos de adaptação aos nossos climas. Em outras palavras: pouco se produz de ciência agrária no país pelas empresas estrangeiras, mas importa-se tecnologia pronta e acabada produzida fora, nas sedes destas multis.

Germinação e senescência do esforço nacional em ciência, tecnologia e inovação agropecuária

Em que pese o Brasil ter inaugurado sua primeira instituição de ensino superior apenas em 1808, ou seja, 308 anos após seu “descobrimento”, e as primeiras universidades surgirem apenas no século passado, o país logrou consolidar um vigoroso sistema nacional de educação, ciência e tecnologia (com destaque para as ciências agrárias), sobretudo a partir da década de 1960, com a inauguração da pós-graduação brasileira.

Não por acaso, o primeiro programa de pós-graduação do país tenha sido o de Fitotecnia, na Universidade Federal de Viçosa[7], em razão do grande esforço nacional em desenvolver a pesquisa autóctone em agropecuária, levando em conta, principalmente, as distintas peculiaridades edafoclimáticas (precipitação, temperatura, solos, relevo, fotoperíodo, umidade do ar, etc.) de um país de dimensão territorial continental como o Brasil.

O primeiro curso de graduação em Engenharia Florestal foi criado em 1960 (Viçosa/MG), o de Zootecnia em 1966 (Uruguaiana/RS) e o de Engenharia Agrícola apenas em 1973 (Pelotas/RS), mesmo ano da fundação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa.

A Embrapa nasce, portanto, nesse mesmo esforço do Estado Nacional em viabilizar, o que é hoje a missão institucional da empresa, “soluções de pesquisa, desenvolvimento e inovação para a sustentabilidade da agricultura, em benefício da sociedade brasileira”[8].

Toda essa estrutura de pesquisa, básica e aplicada, inaugurada a partir de então, permitiu ao Brasil impulsionar suas atividades agropecuárias, até aquele momento relegadas a ações isoladas e pontuais.

A ocupação dos cerrados, por exemplo, não teria sido possível sem a constituição desse Sistema Nacional de C&T, desenvolvido pelo Estado, que ousou promover os estudos focados nas necessidades locais, tais como o desenvolvimento de cultivares adaptados aos seus solos ácidos e técnicas eficientes na correção dessa acidez com o uso do calcário.

O avanço da fronteira agrícola brasileira rumo ao Centro-Oeste a partir dos anos 1970, foi resultado direto deste Projeto Nacional de Desenvolvimento que incorporou esta extensa área ao mapa da produção agropecuária, sendo hoje a região que se destaca com os melhores índices médios de produtividade em diversas culturas em todo o território nacional.

A partir de 1975, passou a haver crescimento acentuado da produtividade agropecuária. Para a média dos grãos, o indicador passou de um valor médio de 1.500 kg/ha para 3.000 kg/ha em 2007[9]. Com relação à pecuária de corte, o rebanho bovino brasileiro saltou de 78 milhões de cabeças no fim dos anos 70 para mais de 205 milhões de animais na atualidade. Em ambos os casos, o papel da Embrapa e das universidades e institutos de pesquisas públicas foram determinantes.

Entretanto, desde fins da década de 1990, assistimos parte significativa das pesquisas sobre biotecnologia agrícola e quase todas as atividades de comercialização serem realizadas por multinacionais estrangeiras, ao contrário do que ocorreu com as pesquisas que impulsionaram a Revolução Verde, sobretudo a partir dos anos de 1960 e 1970, protagonizadas por instituições públicas e empresas privadas brasileiras.

Pior, assistimos ao desmonte deste sistema nacional de ciência e tecnologia – erguido às duras penas-, cujos profissionais mais capacitados são vorazmente disputados por estas empresas em troca de melhores remunerações e estruturas de trabalho, sem a mínima resistência de setores nacionalistas e patrióticos. Não seria nenhum exagero dizer que muitos laboratórios públicos de maior destaque só se mantêm como “puxadinhos” destas multinacionais, atendendo aos seus interesses de mercado.

Importante destacar que a atuação de empresas multinacionais no campo brasileiro não é algo recente. Pelo contrário, nos remete ao período colonial. Um bom exemplo desta atuação é o caso da Companhia das Índias Ocidentais (empresa multinacional de capital misto) que teve concessão da metrópole para atuar no país ainda no século XVII. Entretanto, o apartheid tecnológico entre as empresas multinacionais de um lado, e a pesquisa pública e privada nacional de outro, se consolida somente a partir da escalada do neoliberalismo em nosso país.

No período em que se configurou a Revolução Verde, o Estado brasileiro não vivia sob os auspícios do neoliberalismo. Ainda que o papel das multinacionais tenha sido expressivo, as nações tiveram papel importante na definição deste fenômeno que ajudou a configurar o que hoje entendemos como a terceira etapa da revolução industrial em todo mundo.

O processo que podemos chamar de desnacionalização da pesquisa agropecuária no Brasil vem com carga a partir dos anos 1990. Um caso emblemático é o da Agroceres, empresa brasileira pioneira em genética vegetal e a primeira a comercializar semente de milho híbrido no Brasil que, desde 1997, pertence à multinacional Monsanto (hoje Bayer).

Poucos países do mundo foram tão expostos aos interesses das multinacionais em tão pouco tempo como Brasil. A partir da chegada do vendaval neoliberal que ousou a varrer os campos brasileiros, acordos como o da Rodada Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt, da sigla em inglês), iniciado em 1986 e finalizado em 1993, liberalizou por completo a entrada de grandes grupos multinacionais ao país que começaram a redesenhar a pesquisa agropecuária brasileira, de modo a atender seus interesses privados e comerciais.

De acordo com Mazzali[10], “com esse novo ambiente, mutável e incerto, da atuação do Estado brasileiro, as empresas agrícolas traçaram novas estratégias. Além da atuação frouxa do Estado Brasileiro, as empresas agrícolas de deparavam também com o intenso ritmo das mudanças tecnológicas (biotecnologia, microeletrônica e Pesquisa e Desenvolvimento) …”.

Esse hiato, deixado pelo Estado brasileiro, num cenário de intensas mudanças no âmbito da terceira revolução tecnológica (e agora na chamada Revolução 4.0 ou quarta revolução industrial), foi ocupado avidamente pelas multinacionais que, hoje, usam as estruturas públicas de pesquisa (sobretudo Embrapa e universidades) para desenvolverem suas pesquisas básicas por meio de convênios e parcerias; ao mesmo tempo em que lideram as inovações tecnológicas no campo, exercendo o papel de grande indutora da modernização conservadora que assistimos hoje.

O desbaste da indústria nacional de insumos agropecuários

Um dos efeitos da chamada modernização agropecuária nos diversos países do mundo é a transição da produção autárquica – na qual todos os insumos eram oriundos da própria unidade rural – para sistemas mais complexos em que insumos são adquiridos externamente pelos agricultores. Fertilizantes, tratores, máquinas, implementos, eletricidade, agroquímicos, crédito, seguro, embalagens, combustíveis passam a ser recebidos do setor a montante, da indústria e do setor de serviços, transformando a agropecuária em mais um elo dentro de uma cadeia mais extensa.

Historicamente, no caso do ciclo da cana-de-açúcar no Brasil colonial, por exemplo, os principais insumos externos eram as máquinas do engenho e a aquisição de mão-de-obra por meio da instituição escravocrata. Todo o resto era praticamente produzido nos arredores da propriedade rural. Da mesma forma, no início do ciclo do café, durante o Império, pouca coisa era adquirida externamente à propriedade. Hoje, qualquer que seja a cultura produzida em larga escala, consome uma variedade de insumos que é parte significante da planilha de custos.

No Brasil, a modernização agropecuária se deu dentro do modelo centro-periferia que rege as relações de inserção internacional dos países em desenvolvimento. Como nos demais setores industriais, boa parte da indústria de insumos agropecuários que foi se instalando no Brasil tinha (e ainda tem) como origem e controle a Europa e os EUA (posteriormente também o Japão). As variações do modelo de substituição de importação que foram adotadas pelo país desde a Revolução de 1930 dialogaram em maior ou menor intensidade com a origem do capital da indústria e alguma tentativa de construção de um capitalismo de capital brasileiro.

Algumas iniciativas empresarias merecem destaque, como a constituição da CBT – Companhia Brasileira de Tratores, em 1959, com fábrica em São Carlos, no interior de São Paulo, e cuja falência se deu logo após o tumultuado processo de abertura dos anos Collor, nos anos 90. Neste setor, o que há hoje, basicamente em consonância com a concentração oligopolista no mundo, é o controle da produção de tratores por poucas empresas transnacionais instaladas no Brasil, restando de capital nacional, a Agrale, de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, com cerca de 3% do mercado nacional de tratores de rodas.

A participação relevante de empresas nacionais no setor de insumos agropecuários foram, no entanto, exceção neste universo, especialmente nos setores de maior intensidade de capital e de tecnologia em que sempre predominaram as estrangeiras. Em alguns casos, as transnacionais faziam boa parte dos processos no país, enquanto que em outros, boa parte dos insumos críticos para seus processos industriais continuou a ser importada. De toda sorte, a regra era que a pesquisa e desenvolvimento era concentrada nos países centrais onde estavam instaladas suas matrizes.

Neste sentido, a desorganizada abertura econômica e comercial dos anos 90, na esteira do avanço do neoliberalismo, acelerou o processo de desnacionalização com a venda de empresas nacionais para empresas transnacionais. No setor de sementes, que até a edição da lei de proteção de cultivares em 1997 se concentrava em sementes de milho nos quais a proteção à propriedade intelectual se por impossibilidade técnica de se reproduzir o material híbrido, a desnacionalização foi quase que total, sendo a venda da Agroceres, citada anteriormente, um dos marcos desse processo.

Em que pese a tentativa de reorganização do Estado a partir dos anos 2000, com o fortalecimento da capacidade de planejamento, o setor de insumos agropecuários não foi um dos setores mais destacados dentro da renascente política industrial. Note-se que uma vez que a agropecuária é um dos setores da economia brasileira mais dinâmicos e integrados ao comércio internacional, com fluxo constante de divisas, algumas oportunidades para a atração de investimentos externos (nos insumos que são importados) e para o fortalecimento de empresas nacionais são notáveis. Porém, muito do foco da política industrial foi e é em setores nos quais o Estado tem ampla capacidade de aquisição, tais como a indústria naval, com as embarcações adquiridas pelo setor de petróleo e gás e como os insumos farmacêuticos para o Sistema Único de Saúde.

Aparentemente, a devida crítica a dependência excessiva da exportação de commodities agropecuárias, acaba por levar muitos dos estrategistas da política industrial brasileira a subestimar a capacidade do setor de insumos agropecuários. Se é verdade que em alguns subsetores a concentração fabril mundial é tal que a capacidade de produção no Brasil, quanto mais por empresas de capital nacional, é duvidosa, em outros subsetores há oportunidades abertas. Um dos exemplos de setor de insumos agropecuários em franco crescimento é o controle biológico de pragas, que tinha na empresa brasileira Bug, de Piracicaba, no Estado de São Paulo, um grande destaque, sendo, inclusive, mencionada na revista estadunidense Fast Company, como uma das empresas mais inovadoras do mundo[11]. Assim como ocorrera com a Allelyx (empresa de biotecnologia para a cana-de-açúcar), a Bug foi vendida a um grupo estrangeiro[12].

É preciso, no entanto, cautela, para a avaliação da política industrial possível. Alguns setores de insumos agropecuários alcançaram concentração tal que não é factível que o Brasil possa ter empresas locais para concorrer, neste momento, com os líderes do setor. Nestes casos, o que parece mais adequado é favorecer a instalação das empresas no país e tentar atrair seus centros de pesquisa e desenvolvimento para a formação de capital intelectual no país. Em outros casos, como parece ser o caso do controle biológico de pragas, de alguns serviços do uso de internet das coisas (IoT), avançar no fortalecimento de programas de start-ups para as empresas entrantes e fornecer capital de longo-prazo para empresas estabelecidas, via bancos de fomento, com dispositivo legal para controle da venda, pode fazer algum sentido numa estratégia nacional de desenvolvimento.

Assim, pode-se dizer que o setor de insumos agropecuários chegou ao Brasil sob a égide de empresas transnacionais num processo de modernização da agricultura, ensaiou um aumento de autonomia com o período de industrialização desde a Revolução de 1930 e, especialmente, por meio do II Plano Nacional de Desenvolvimento, no fim dos anos 70. Todavia, a tentativa de ter algum controle nacional foi restringida pelo avanço do neoliberalismo dos anos 90, com a mal estruturada abertura dos anos Collor, e seus posteriores desdobramentos.

Processamento, agroindústria e distribuição: uma agenda incompleta do pós-porteira   

Na organização da cadeia de produção agropecuária, após a produção primária (o que é conhecido como “dentro da porteira”) existe o setor de processamento e/ou distribuição da produção agrícola. No setor de exportação de commodities, como soja, açúcar, suco de laranja, café, entre outros, que rendem importantes divisas ao país, a predominância das empresas transnacionais no controle dos fluxos é notável. Se foi dito que o setor de petróleo era oligopolizado por ter somente 7 grandes empresas no mundo, o que veio a ser conhecido como as “7 irmãs”, no caso do comércio internacional de grão existem 4 grandes empresas no mundo que controlam esse fluxo: Cargill, ADM, Bunge, Louis Dreyfus, conhecidas como “ABCD”[13]. São essas mesmas empresas transnacionais as responsáveis pela maior parte das exportações brasileiras de soja.

No caso do setor de proteína animal, no qual a indústria da carne é o principal componente, a situação é um pouco mais complexa. Inicialmente, a instalação de frigoríficos no país se deu com o avanço de empresas estrangeiras como a Swift, de Chicago. Durante os anos 2000, utilizando-se o paradigma do Estado Logístico, o Brasil fortaleceu sua indústria de proteína animal e transformou Marfrig, JBS e BRF (Sadia-Perdigão) em grandes players internacionais do setor e tais empresas passaram até mesmo a adquirir possíveis concorrentes de outros países. Com tal movimento, o Brasil passou a conseguir extrair mais resultado econômico da cadeia exportadora por meio do controle de um setor cada vez mais oligopolista.

Todavia, esse avanço do capitalismo brasileiro no setor de proteína animal não passou incólume pela onda conservadora que culminou com o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff em 2016. Setores da elite da burocracia estatal que aparentemente não têm apreço por um projeto nacional autônomo passaram a atacar as empresas nacionais de carne, inviabilizando muitas de suas atividades. Se é verdade que ilícitos devem ser investigados e combatidos, por outro lado, também é verdade que existem diversas formas de travar tal combate com o mínimo de fragilização de empresas nacionais na competição internacional.

A desastrada comunicação inicial sobre os resultados da Operação Carne Fraca, que inicialmente uniu os achados de grave risco à saúde pública com o grande número de impropriedades formais encontrados, é um dos exemplos dessa espetacularização das ações policiais e do Ministério Público. Tal erro de comunicação repercutiu não só internamente causando um alarme desnecessário aos consumidores, mas foi utilizado de forma proposital para que os países importadores protecionistas fechassem seus mercados e, também, para que os países concorrentes (os quais quando investigam ilícitos no setor o reportam de forma mais profissional e focados na mitigação de risco) utilizassem isso como forma de denigrir a imagem do produto brasileiro. Milhares de brasileiros que trabalham neste setor acabaram desempregados. A tentativa de autonomia do Brasil neste setor está ainda sob ameaça.

No setor de produção e exportação de suco de laranja convivem empresas de capital nacional como Citrosuco e Cutrale, com o avanço de estrangeiras como a Louis Dreyfus. No caso do açúcar, também existem empresas de capital nacional e de capital estrangeiro disputando a produção do produto, mas um avanço crescente das empresas estrangeiras nas exportações.

O controle desnacionalizado não é somente uma realidade na exportação de produtos agropecuários. O processamento para consumo interno tem participação importante de empresas estrangeiras. Na indústria de alimentos, especialmente nos produtos de consumo direto mais elaborados, marcas de propriedade das estrangeiras Unilever e Nestlé são cada vez mais predominantes. Em alguns setores como sorvetes e chocolates esse predomínio estrangeiro é quase que total. No setor de bebidas, as grandes empresas estadunidenses Coca-Cola e Pepsi passaram a adquirir, com ímpeto cada vez maior, empresas nacionais de produtos como chás (compra da Mate Leão pela Coca-Cola), água de coco (compra da Amacoco, dona da marca Kero Coco, pela Pepsi) e refrigerantes regionais (compra do Guaraná Jesus pela Coca-Cola), ampliando a concentração no setor e a desnacionalização.

Em que pese a existência ainda de importantes empresas de capital nacional no setor de processamento e distribuição de alimentos, a realidade da concentração mundial (em empresas oriundas dos países centrais do capitalismo) ameaça desnacionalizar ainda mais a alimentação do país.

É importante um debate sério sobre o apoio dos bancos de desenvolvimento e capital estatal em empresas nacionais de destaque, uma vez que os ataques neoliberais (apoiados muitas vezes só por políticos liberais-conservadores, mas também por setores da esquerda sem qualquer preocupação da questão nacional) questionam a legitimidade de tais políticas de fortalecimento do controle nacional das empresas. A emergência de países que tiveram uma política de bem definida de fortalecimento das empresas nacionais (não sem exigência de contrapartida de desempenho, especialmente no comércio exterior) como Coréia do Sul, Japão e China deve ser um importante balizador para tal diálogo.    

 

*Luciano Rezende Moreira. Professor do Instituto Federal Fluminense. Membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil e presidente da Seção Mineira da Fundação Maurício Grabois.

**Luiz Rodrigues Gonçalves Rodrigues de Souza. Engenheiro agrônomo (ESALQ/USP) e pós-graduado em Relações Internacionais (UnB). Membro de carreira de Gestão Pública do Governo Federal em atuação na área de negociação internacional para acesso dos produtos agropecuários brasileiros a mercados externos.

[1]  Documentário dirigido por Silvio Tendler, cujo primeiro filme foi lançado em julho de 2011 e o segundo em abril de 2014. As duas obras integram, juntamente com o documentário “Agricultura Tamanho Família”, uma “Trilogia da Terra”, com denúncias contundentes ao uso de “agrotóxicos” no Brasil. 

[2] A mais recente campanha do programa, ainda que de forma indireta, foi contra o chamado Projeto de Lei do Veneno Ver: https://anamariabraga.globo.com/acorda-menina/noticias/organicos-pl-do-veneno-saude-no-brasil. 

[3] Duas obras, em especial, merecem destaque pelas duras críticas feitas por Lênin aos que, segundo ele, têm “ingênuas ilusões sobre a possibilidade de o camponês viver do trabalho de suas próprias mãos” e pela crítica “a maior sedentariedade da população” e “o maior apego à terra”: “Programa Agrário da Social Democracia” e “Capitalismo e Agricultura nos Estados Unidos da América”.

[4] Ludismo foi um movimento de trabalhadores ingleses, liderado por Ned Ludd (daí o nome do movimento), que predominou no início do século XIX, nos primórdios da Revolução Industrial, e que se notabilizou pela destruição de máquinas como forma de protesto.

[5] Missão institucional da Embrapa. Fonte: https://www.embrapa.br/missao-visao-e-valores.

[6] Embora o processo de extinção da Embrater tenha se iniciado no Governo Sarney, foi no governo Collor (1990-1992) que ela se concretizou, no âmbito de uma brutal redução no apoio financeiro e técnico federal às Emater estaduais.

[7] Em março de 1961, foi inaugurado, na então Universidade Rural do Estado de Minas Gerais (UREMG), hoje Universidade Federal de Viçosa (UFV), o primeiro curso de pós-graduação, no Brasil, no modelo norte-americano do Master of Science. Fonte: http://www.rbep.inep.gov.br/index.php/rbep/article/view/1277/1251.

[8] Missão Institucional da Embrapa. Fonte: https://www.embrapa.br/missao-visao-e-valores.

[9] Fonte: https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/153552/1/Evolucao-da-producao.pdf.

[10] MAZZALI, Leonel. O processo recente de reorganização agroindustrial: do complexo à organização “em rede”. São Paulo: Unesp, 2000.

[11] https://www.fastcompany.com/company/bug-agentes-biologicos

[12] https://www.valor.com.br/agro/5230141/koppert-fecha-compra-da-bug

[13] https://www.ft.com/content/dc1a8b88-1fd7-11e3-aa36-00144feab7de