O golpe de 2016 no Brasil, deflagrado por forças atávicas da sociedade nacional com evidente apoio estrangeiro, solapou as bases políticas sobre as quais o pacto constitucional de 1988 se assentava. Desde o golpe (de natureza e vinculação parlamentar, judicial, empresarial e midiática), tanto o Estado democrático de direito, qunato o embrionário Estado de proteção e promoção social até então em construção vêm sofrendo desmonte abrangente, profundo e veloz.

Neste sentido, a recuperação da soberania popular deve ter como ponto de partida o enfrentamento contra o Estado de exceção levado a cabo desde o governo Temer, com a cumplicidade dos três poderes; e a linha de chegada deve mirar a construção das condições objetivas para um novo poder constituinte para o país.

Para tanto, é fundamental compreender que a disputa pelo poder estatal e seus fundamentos constitucionais é incontornável. O programa do golpe, com a destruição do setor público da economia e a violação dos direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988, vem relançando as bases para um Estado neoliberal no Brasil, inteiramente consagrado à quebra da soberania nacional e à concentração das rendas e riquezas em um país já escandalosamente desigual do ponto de vista social, além de anacronicamente patriarcal e discriminatório. Portanto, a necessária refundação do Estado brasileiro, com base na soberania popular, visa exatamente retomar e aprofundar – em um sentido estrutural e histórico – as conquistas inseparáveis da liberdade e da igualdade. A democracia brasileira só pode se reafirmar historicamente com a superação das desigualdades estruturais ainda presentes nos planos econômico, social, territorial, de gênero e inter-racial.

Esse desiderato passa pela desmercantilização da política como negócio. O conflito entre aqueles que querem dominar e concentrar riquezas e aqueles que buscam a liberdade e a igualdade está no centro da disputa pelo poder. Uma república democrática é exatamente aquela que se apoia ativamente na vontade – livre e plural – das maiorias e subordina os órgãos do Estado, inclusive os aparelhos de justiça e coerção, para a garantia dos direitos e deveres formados democraticamente. A defesa da República e da Democracia deve estar sempre acompanhada da vigília contra os poderes corporativos e arbitrários, o privatismo e os privilégios, pois estes se voltam historicamente contra as classes trabalhadoras, os setores populares, os setores progressistas e a esquerda política.

No caso do Brasil, a Constituição de 1988 trouxe inequívocos avanços. O pacto social firmado naquele momento permitiu, em certa medida, a construção das bases para um Estado de bem-estar social no país. Entretanto, a Carta Cidadã não deixou de ser impactada pela forma como se deu a transição democrática, desde o fim da ditadura militar, revelando alguns limites, como a permanência de elementos autoritários e conservadores impressos na própria ossatura do Estado e nas práticas de governo.

A questão de fundo é que a Constituição Federal não foi capaz de institucionalizar, em uma dinâmica democrática, as disputas entre dois projetos políticos antagônicos. De um lado, coloca-se novamente em pauta – por setores conservadores da sociedade, dos agentes políticos, da própria burocracia, do empresariado e da mídia oligopolizada – o caminho neoliberal, de orientação antinacional, privatista e concentradora, e que desde 2016 vem promovendo retrocessos institucionais em áreas críticas da regulação econômica, social e política do país.

De outro lado, permanece como possibilidade – defendida por setores do campo progressista, dentro e fora das estruturas de governo – a via da expansão ou universalização integral dos direitos humanos, econômicos, sociais, civis, políticos, culturais e ambientais, tais quais os promulgados – e apenas parcialmente efetivados – pela CF-1988. Todavia, é preciso ter claro que as bases materiais e as condições políticas para a efetivação de tais direitos precisam ser reconstruídas no país para a sua real consecução.

Na dinâmica neoliberal, atores econômicos buscam a captura das instituições de representação política do Estado, de modo a viabilizar a transformação de seus interesses em decisões públicas, com vistas a favorecer os interesses empresariais. Um jogo desequilibrado, que induz a um cenário em que, por suas influências, grandes grupos empresariais controlam mecanismos da dinâmica democrática, exercendo uma dominação onde o interesse geral da população perde expressão, tanto em termos econômicos quanto de cidadania.

O capitalismo neoliberal torna disfuncional a democracia representativa. Não por outra razão, o Estado de exceção que se instaurou no Brasil a partir do governo Temer tem levado ao limite certas distorções entre os três poderes constitucionais. Sorrateiramente, o presidencialismo de coalização vai se transformando em um semiparlamentarismo de balcão.

De outro ângulo, a ascensão do ativismo judicial nos coloca diante de um tempo em que o retorno a lógicas autoritárias, pelas quais as regras são aplicadas de acordo com o perfil político do destinatário da decisão do magistrado ou de tribunais, e em que se admite o uso de expedientes em desconformidade com normas e princípios constitucionais estabelecidos.

Sendo assim, a retomada de um projeto democrático de desenvolvimento para o país passa necessariamente pela construção de novos marcos democráticos, envolvendo não apenas as esferas do Poder Executivo e as Políticas Públicas, mas integrando a totalidade das instituições do Estado nesse percurso.

Esta refundação democrática exige um conjunto de reformas fundamentais, a saber:

• Reforma Política: refundação democrática de organizações e novos mecanismos de representação e deliberação coletivas.

• Reforma do Estado: republicanização e democratização das estruturas e formas de funcionamento dos aparatos governamentais, com planejamento governamental participativo, gestão pública democrática, controles burocráticos do Estado voltados para a transparência dos processos decisórios, efetividade das ações públicas e institucionalização da participação social em todas as etapas do circuito de políticas públicas.

• Reforma Administrativa: combate aos privilégios, à injustiça e à corrupção.

• Reforma Tributária: progressiva na arrecadação e redistributiva no gasto.

Reforma Política

A retomada da trajetória democrática apenas se dará com:

1) a restauração (em condições institucionais mais adequadas) da máxima soberania popular por meio do voto direto e regular ao longo do tempo; e

2) a instauração de novos instrumentos capazes de aperfeiçoar a representação política e estimular a participação social. Para tanto, propõem-se reformas estruturais de democratização dos sistemas representativo, participativo e deliberativo direto, tais como:

• Sistema representativo: medidas para uma reforma político-partidária que impliquem maior convergência entre representação parlamentar e representados, bem como maior alinhamento ideológico e programático entre partidos e eleitores. Neste campo, o financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais é primordial.

• Sistema participativo: medidas que impliquem maior institucionalização, ativação e responsividade dos conselhos, conferências, audiências e ouvidorias públicas, fóruns de discussão e grupos de trabalho na interface entre Estado, políticas públicas e sociedade civil. Tais instâncias podem e precisam avançar qualitativamente como espaços de deliberação sobre questões estratégicas e diretrizes de políticas públicas.

• Sistema deliberativo: medidas que impliquem maior disseminação, uso e responsabilização dos instrumentos e mecanismos diretos de democratização das decisões coletivas, tais como o referendo, o plebiscito e as proposições legislativas de iniciativa popular. Esta ampliação da prerrogativa de convocação de plebiscitos, referendos e consultas populares deve incorporar também a introdução do veto popular, de modo a ratificar a soberania popular como espaço decisório cotidiano e de última instância em torno de questões cruciais para a sociedade brasileira.

Reforma Administrativa

Urge promover a refundação do Estado brasileiro, apontando diretrizes a embasar um projeto de reforma dos poderes estatais que os façam avançar na substantivação das virtudes republicanas e dos valores democráticos como âncoras essenciais ao processo de desenvolvimento nacional, tais como:

• Medidas para conferir mais e melhor transparência dos processos decisórios intragovernamentais e nas relações entre entes estatais e privados, bem como sobre resultados intermediários e finais dos atos de governo e das políticas públicas de modo geral. Este é um dos principais campos de atuação republicana contra a visão moralista e punitivista de combate à corrupção no país.

• Medidas para estimular mais participação social e melhor controle público sobre os poderes da União (Executivo, Legislativo, Judiciário) e Ministério Público. O empoderamento social no âmbito de conselhos e outras instâncias de compartilhamento de poder no âmbito dos três poderes constitucionais (e Ministério Público) é condição fundamental para o reequilíbrio de poder e valorização da esfera pública no país.

• Medidas para promover desconcentração econômica, mais democratização e melhor controle social sobre os meios de comunicação (públicos e privados) em operação no país. Sem uma mídia plural e ativa, responsável por mais e melhores informações ao conjunto da população e tomadores de decisões, a democracia não pode se realizar plenamente.

• Medidas de recuperação e ativação das capacidades estatais de planejamento governamental e de coordenação estratégica dos investimentos e demais decisões das empresas estatais. Neste particular, é preciso compatibilizar a sustentabilidade empresarial de longo prazo com a função social pública das estatais, já que a eficiência microeconômica de curto prazo não pode estar acima da eficácia macroeconômica e da efetividade social no médio e longo prazos.

• Medidas de minimização do impacto da porta giratória e das porosidades entre Estado e mercado por meio da regulamentação das atividades de lobby e advocacy.

• Medidas de profissionalização e valorização da ocupação no (e do) serviço público, tais que uma verdadeira política de recursos humanos para o setor público brasileiro – que leve em consideração de modo articulado e orgânico as etapas de seleção, capacitação, alocação, remuneração, progressão e aposentação – esteja ancorada e inspirada pelos valores e princípios da república, da democracia e do desenvolvimento nacional.

Reforma Tributária

A Reforma Tributária deve ser ampla, contemplando a totalidade das atuais anomalias, a partir das seguintes diretrizes gerais:

• A Reforma Tributária deve ser pensada na perspectiva do desenvolvimento econômico e social do país.

• Ela deve estar adequada ao propósito de fortalecer o Estado de Bem-estar Social, preservando e diversificando as fontes para o financiamento da proteção social, em função do seu potencial como instrumento de redução das desigualdades e promotora do crescimento econômico e do desenvolvimento nacional.

• Deve avançar no sentido de promover a sua progressividade pela ampliação da tributação direta, que incide sobre a renda e o patrimônio das camadas mais ricas da população, ao mesmo tempo em que reduz a tributação indireta que incide sobre o consumo.

• A Reforma Tributária deve restabelecer as bases do equilíbrio federativo, deve aperfeiçoar e resgatar o papel da tributação sobre o comércio internacional como instrumento de política de desenvolvimento, e deve considerar a tributação ambiental.

• Ela deve fomentar ações que resultem em aumento da arrecadação, pela revisão das renúncias fiscais e aperfeiçoamento dos instrumentos de combate à sonegação e à evasão.

A refundação democrática do Estado deve ancorar a Administração Pública em novas bases, assentadas no aprofundamento permanente da soberania popular, na defesa diuturna da vontade geral da população, no combate sem tréguas às desigualdades de toda ordem e na busca incessante pela formação de uma opinião pública livre e plural. Sem descuidar de manter e aprofundar os direitos de cidadania conquistados em 1988, só assim poderemos enfrentar os sobressaltos e rupturas institucionais que, de tempos em tempos, colocam o país nas mãos de governos ilegítimos, ilegais e impopulares.

(*)Doutor em economia pelo IE-Unicamp, desde 1997 é técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea. Atualmente exerce a função de presidente da Afipea-Sindical.
Título original: Outra Reforma Administrativa é possível e necessária: bases para a refundação democrática do Estado no Brasil