“Divide et impera”: O extensionismo de Maquiavel ou A Arte da Guerra no campo minado brasileiro

Dividir para reinar, dividir para conquistar ou dividir para imperar. Desde o imperador romano César a máxima “Divide et impera”, do latim, inspira conquistadores a manterem o poder através da fragmentação de seus domínios. É um princípio básico da política, narrado desde Sun Tzu em seu clássico “A Arte da Guerra”, até Maquiavel, em seu magistral “O Príncipe”.

A política neoliberal em curso no Brasil, enquanto projeto político, parece ter tido êxitos em minar o campo brasileiro com artefatos que implodiram a agricultura brasileira em dois segmentos aparentemente inconciliáveis: agronegócio e agricultura familiar.

A questão agrária e agrícola brasileira na atualidade vem sendo polarizada, entre esses dois conceitos formulados com o advento do neoliberalismo (coincidentemente ou não). Conceitos ocos, vazios, que mais parecem palavras-de-ordem de militantes de direita e de esquerda, ao sabor de sua polissemia, ao deleite do identitarismo agrário/ambiental em curso no Brasil e no mundo.

Sem entrar na discussão sobre os diversos significados entre um e outro modelo, foi-se construindo, no imaginário popular, dois blocos de agricultores brasileiros separados não mais pela propriedade dos meios de produção, mas por uma escala totalmente arbitrária (modulo fiscal) e pela forma de produção (mercantil ou natural).

De um lado, os apologistas do agronegócio, restritamente como produtor de commodities, apartados das questões sociais, ambientais e nacionais. Destacam-se como os novos fisiocratas[1], advogando o retorno do Brasil vocacionado a “celeiro do mundo” e as atividades do setor primário como o motor da economia nacional – tal como nos anos áureos do ciclo do café -, e subalternos aos interesses estrangeiros.

Do lado oposto, os romanceiros de uma agricultura concebida como tradicional, propagandeada como parceira da natureza, fundamentada no trabalho familiar tipicamente patriarcal, na sedentariedade da população rural e no apego à terra (características duramente criticadas por V. I. Lênin)[2].

São dois lados de uma mesma moeda. Ambos vítimas históricas da ausência de uma projeto nacional de desenvolvimento patrocinado pelo Estado Nacional, comprometido com os interesses da nação. Submetidos meramente às vontades do “Deus-mercado”, representado pelo capital internacional, todos saem perdendo.

O exemplo do uso indiscriminado de insumos químicos é emblemático para demonstrar este prejuízo comum e conjunto. Tanto o chamado agronegócio torna-se refém da assistência técnica privada oferecida pelos representantes das revendas comerciais, ou seja, porta-vozes indiretos das grandes multinacionais que promovem uma agricultura extremamente dependente de seus pacotes tecnológicos específicos, como também o pequeno agricultor, que se vê abandonado pelo Estado, incapaz de lhe oferecer uma assistência técnica rural na condução eficiente de sua atividade agropecuária.

Dessa forma, assistimos os movimentos sociais adotarem uma tática obscurantista e sectária. Em vezde combaterem a apropriação da atividade agropecuária brasileira por meia dúzia de gigantes do setor privado estrangeiro e de se oporem ao esfacelamento do Estado Nacional, centralizam suas ações em botar fogo em experimentos de transgênicos ou o de propagandear uma agricultura medieval nos moldes do movimento “antivacina”[3].

De igual modo obtuso, representantes da agricultura empresarial, organizada em distintas esferas (destacadamente no Congresso Nacional, através de uma bancada ruralista composta por mais de 220 deputados e 20 senadores), também cerram fileiras contra um falso inimigo, elegendo os movimentos sociais como alvo central de uma disputa em que, quem sai ganhando, são, tão-somente, as multinacionais estrangeiras.

O maniqueísmo cego, descolado de um Projeto de Nação, impede esses dois personagens (criados pelo identitarismo agrário e ambiental), de somarem esforços em uma frente nacional antineoliberal, resgatando a soberania alimentar e promovendo o desenvolvimento dos diversos ramos agropecuários da moribunda indústria nacional. Não há diálogo, pois não há extensão e comunicação rural.

Há muita diferença da linha de pesquisa de um transgênico desenvolvido por uma multinacional estrangeira como a Bayer de outro desenvolvido por uma empresa pública nacional como a Embrapa, assim também, como nos ensina a sabedoria popular, que a diferença entre o veneno e o remédio é a dose.

Mas para o agricultor diferenciar entre um e outro, é fundamental o resgate do papel do extensionista rural, financiado pelo Estado. Resgatar a extensão rural no Brasil que, sobretudo após a escalada do neoliberalismo no Brasil, desde os anos 1980, foi drasticamente precarizada. Em seu lugar, foi ganhando espaço a figura do assistente técnico privado, comprometido com a sua meta mensal de venda e com os interesses dos acionistas de sua empresa.

O objetivo desse artigo é, portanto, demonstrar a importância da Assistência Técnica e da Extensão Rural (ATER) no desenvolvimento de uma agricultura soberana, sustentável e produtiva para a imensa maioria dos brasileiros, superando a dicotomia entre grande e pequena produção, de modo a evidenciar como o processo de precarização desses serviços, garantidos pela Constituição de 1988, atinge a todos, mesmo que em diferenciadas intensidades e escalas.

Rockefeller e a versão brasileira da “Marcha para o Oeste”

O conceito de extensão rural é, também, tema controverso. Mas, no geral, há certo consenso no que diz respeito à sua missão de difusão de tecnologias e intercâmbio de conhecimentos com os agricultores de forma a aprimorar suas habilidades, capacitando-os às diversas atividades agropecuárias.

Está relacionado à assistência técnica prestada aos agricultores rurais, embora esse conceito específico tenha o caráter mais aplicado e pontual do que a extensão rural propriamente dita, que se configura como um processo educacional mais abrangente.

A assistência técnica e a extensão rural (ATER), em conjunto, são serviços fundamentais no processo de desenvolvimento rural e da atividade agropecuária no país, pois formam um instrumento de comunicação das novas tecnologias existentes, geradas pela pesquisa, bem como a difusão de outros conhecimentos (PEIXOTO, 2008).

De acordo com Alves et al. (2016), “a extensão rural é um elo importante da cadeia de inovação na agropecuária. Sua função é conectar os resultados da pesquisa com a adoção de conhecimentos e tecnologias pelos produtores rurais, pequenos, médios ou grandes”.

Ainda segundo esses autores, a extensão rural, “em muitos casos, para pequenos produtores, é necessário prover pacotes tecnológicos, devido ao seu baixo nível de capacitação” (ALVES et al., 2016).

Certamente essa é uma visão que concebe a Extensão Rural simplesmente como difusora de tecnologia, vinculada a uma propaganda da técnica agrícola, bem sincronizada com o modelo estadunidense que serviu de modelo adotado pelo Brasil na primeira metade do século passado.

Por sua vez, uma outra corrente prefere adotar o termo “comunicação rural” justamente por defender uma “mudança paradigmática da transferência em si para a troca de saberes, que traz novos olhares para velhos problemas” (DUARTE & SOARES, 2011). Assim, surgem novos conceitos como “comunicação comunitária”, “comunicação participativa e desenvolvimento local, integrado e sustentável”, “comunicação e redes solidárias”, “comunicação e ecologia no campo”, “educação ambiental”, “comunicação nas organizações rurais”, entre outros.

Como Extensão Rural é o termo mais consagrado na literatura latino-americana e popularizado nas ciências agrárias em geral, será esse o termo adotado para se referir a todo e qualquer processo de difusão do conhecimento produzido nas universidades e institutos de pesquisa (público e privado) levado aos produtores rurais. Pode-se e deve-se discutir os métodos de extensão, mas jamais pôr em dúvida a importância da promoção dessas trocas de saberes entre os conhecimentos científicos, empírico e tácito.

Uma das primeiras experiências de extensão rural no Brasil, tal como a conhecemos hoje, veio dos Estados Unidos, a partir da aprovação, no ano de 1914, da lei batizada como Smith Lever” que tinha como objetivo o de “adelantar la difusión de informaciones útiles y prácticas sobre los temas que tratan la agricultura y la economía doméstica y propagar su aplicación en la población de los Estados Unidos, en coordinación con las escuelas superiores de cada estado.[4]”

Este serviço prestado pelo Estado, em tese, tinha o propósito de incentivar a aplicação das inovações científicas na agricultura, oferecer assistência técnica direcionada a combater doenças, pragas e deficiência nutricional de plantas, promover a correção e fertilização de solos, melhorar a dieta familiar, incentivar as chamadas boas práticas de manejo, difundir a economia doméstica, entre tantas outras iniciativas.

O serviço de extensão, portanto, se configura como uma instituição de ensino, uma associação entre os governos e o homem do campo para proporcionar serviços e educação com o objetivo de atender as necessidades destes trabalhadores rurais, historicamente desassistidos pelo Estado.

No Brasil, a Extensão Rural é inaugurada seguindo as mesmas premissas que nortearam o modelo estadunidense. De acordo com Oliveira (2011):

O início da Extensão Rural no Brasil é fruto da zona de influência norte-americana sobre a América Latina no pós-guerra aliado ao projeto vitorioso da fração de classe dominante agrária brasileira. A primeira experiência do extensionismo surgiu em 1948 numa fazenda em Santa Rita do Passa Quatro em São Paulo de responsabilidade da American International Association (AIA) instituição de Nelson Rockfeller” (OLIVEIRA, 2011).

A AIA, conhecida no Brasil como Associação Americana Internacional de Fomento Econômico e Social era, de acordo com Tota (2014), em seu livro intitulado “O amigo americano: Nelson Rockefeller e o Brasil”, uma “associação organizada com o propósito de promover o autodesenvolvimento e um padrão de vida em sintonia com a compreensão e cooperação dos povos […] Para isso […] é preciso atuar nos campos da agricultura, do uso da terra e sua conservação […] e outros setores” (TOTA, 2014).

Juntamente com a AIA, foi criada outra organização denominada Ibec (International Basic Economy Corporation). Enquanto a AIA era, estatutariamente, sem fins lucrativos, a Ibec visava ser lucrativa em vários empreendimentos que seriam implementados no Brasil.

Tota (2014) cita ainda que, no registro da empresa em Nova Iorque, o funcionário responsável achou estranho um fato, digamos, inusitado, assim narrado: “alguma coisa diferente no mundo dos negócios: era uma corporação com uma ideologia política, aparentemente dedicada menos a obter lucros do que a propagar ideias – no caso o fervor anticomunista”.

Sobre o anticomunismo de Rockefeller, é relatado neste livro que ele “tinha raízes profundas. Uma, mais evidente, era sua proeminência na aristocracia plutocrática americana” (TOTA, 2014).

Nelson Rockefeller, assim como toda sua família, eram anticomunistas fervorosos. Donos de uma das maiores fortunas do mundo e considerado um dos clãs mais importantes da história dos Estados Unidos que construiu seu império no ramo do petróleo, fundando a poderosa Standard Oil.

No Brasil, a Standard Oil é conhecida como Esso e era muito popular por seu pioneirismo em patrocinar um programa jornalístico no país, o Repórter Esso. Foi o primeiro noticiário do Brasil que ‘não se limitava a ler as notícias recortadas dos jornais, pois as matérias eram enviadas por uma agência internacional de notícias sob o controle dos Estados Unidos”[5]. No Brasil profundo, milhões de brasileiros eram informados sobre o que acontecia no país e no mundo por esse programa veiculado pela rádio e pela televisão.

Obviamente, sua pauta seguia o ponto de vista de seu patrocinador. Os Rockefeller levavam muito a sério a “luta de ideias” e a empresa criou também o Prêmio Esso de Jornalismo, adulando os profissionais de imprensa alinhados com seu anti-comunismo.

No Brasil rural, desassistido de energia elétrica, a Esso era conhecida também pelo querosene da marca Jacaré, que acendia a maioria das lamparinas das famílias brasileiras e cuja lata era utilizada para várias finalidades domésticas, inclusive para o armazenamento de alimentos.

 

Figura 1: Propaganda de lançamento do programa “Repórter Esso”, famoso jornal radiofônico que levantou o famoso bordão “Testemunha ocular da história”, financiando pela empresa estadunidense do mesmo nome. Fonte: https://www.propagandashistoricas.com.br/2019/04/reporter-esso.html

Oliveira (2011) ressalta as similaridades da ocupação do oeste americano com o projeto extensionista (e expansionista) proposto por Rockefeller através da AIA. 

“O sonho da versão brasileira da “marcha para o Oeste” no interior do Brasil foi bem sucedido, pois o extensionismo contribuiu para o desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro. Contudo, cabe aqui a pergunta: qual o projeto de desenvolvimento nacional se coadunava o projeto norte-americano? Devemos sempre lembrar que as iniciativas estadunidenses não eram realizadas sem o respaldo da classe dominante local. Nesse sentido, as iniciativas de Rockefeller encontraram um campo fértil no patronato brasileiro” (OLIVEIRA, 2011).

Rockefeller e seus aliados políticos no Brasil tinham claro a importância de se difundir valores compatíveis com o liberalismo econômico à maioria do povo brasileiro que, na época, era predominantemente rural. A extensão rural era peça chave nesse propósito.

Não é o caso de se questionar o caráter ideológico das estruturas do Estado burguês, mas da influência de um país qualquer em sua política interna. Sobre esse aspecto, Louis Althusser – importante teórico marxista – criou a expressão Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) justamente para categorizar um conjunto de instituições, públicas ou privadas, que agem de modo a legitimar ideologicamente as relações de produção burguesas. Uma coisa, como alerta Althusser, “é agir por leis e decretos no aparelho de Estado (repressivo), outra é “agir” por intermediário da ideologia dominante nos aparatos ideológicos do Estado (ALTHUSSER, 1983).

Como exemplos de AIE temos o sistema educacional, igrejas (religiões), a família, o sistema político, a cultura, o sistema legal e o informacional. A extensão se encaixa como AIE do Estado tanto no item educacional quanto no informacional.

Importante ter em conta essa influência recebida de agentes externos que influenciaram (e continuam influenciando) decisivamente o modelo agrícola adotado no Brasil. A ocupação do cerrado brasileiro, por exemplo, guarda muitas similitudes – respeitando as devidas proporções e contextos históricos -, com o espirito de desbravamento típico da “Grande Marcha para o Oeste” ocorrida no século XIX nos Estados Unidos, tanto por suas características físico-ambientais semelhantes, quanto pela questão ideológica de um velado “Destino Manifesto” por parte de migrantes do sul e sudeste do Brasil que ocuparam o centro-oeste brasileiro.

Segundo Silva (2000), “a modernização da agricultura, aliada ao processo de expansão da fronteira agrícola ao cerrado, teve como fator característico a efetiva participação do Estado brasileiro”, influenciado pelo modelo estadunidense.  Esta autora ressalta que, um dos mais importantes aportes do Estado ao avanço da agricultura nessa região, foi justamente na promoção da extensão e da assistência técnica conforme cita a respeito Salim (1986):

 “… especificamente para áreas de cerrado, tem sido dada maior ênfase aos programas especiais, tornando-os o principal veículo de capitalização e tecnificação de sua agricultura. Utilizando-se desses instrumentos de ação, o Estado induz os produtores rurais a realizarem as ações esperadas, através das seguintes medidas: crédito rural orientado, assistência técnica seletiva, seguro contra riscos, incentivos fiscais etc.” (SALIM, 1986).

Importante ressaltar que o crédito rural orientado, o seguro contra riscos e outros incentivos fiscais citados acima, são atividades presentes desde a origem da extensão rural no Brasil sob a inspiração do modelo estadunidense. As Empresas de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) que sobrevivem hoje nos estados brasileiros, surge justamente a partir das Associações de Crédito e Assistência Rural – ACAR, criada final da década de 40, inspirada no “Farm Security Administration” e implantada primeiramente em Minas Gerais, onde recebeu financiamentos do governo mineiro e da Associação Internacional Americana da família Rockefeller (SILVA, 2000).

Extensão Rural no Brasil: “seu doutô me dê licença, pra minha história contá”

A linda canção imortalizada na voz do cantor e compositor Fagner, intitulada “Vaca Estrela e Boi Fubá”, é emblemática ao dar voz ao sertanejo. Nela, um retirante nordestino lamenta sua sorte ao ter que abandonar o torrão natal em busca da sobrevivência. A primeira estrofe, em particular, toca fundo a alma de quem a ouve: “Seu dotô me dê licença, pra minha história contá. Hoje eu tô na terra estranha, e é bem triste o meu pená. Mas já fui muito feliz, vivendo no meu lugá …”.

A história da extensão rural no Brasil tem muito a ver com essa música. Primeiro, pelo fato de ser uma instituição pública compromissada em oferecer serviços ao trabalhador rural com o intuito de garantir sua permanência “vivendo no (seu) lugá”, com qualidade de vida.

Segundo, por ser um canal direto de comunicação entre o “dotô” extensionista e o camponês que tem muita “história (pra) contá”. Nos remete àquilo que Paulo Freire se referia sobre a educação como comunicação, diálogo, na medida “em que não é transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados” (FREIRE, 1982). A extensão é, antes de tudo, essa comunicação entre saberes.

E, por último, a triste canção retrata também a atual situação da extensão rural pública brasileira. Se um dia ela viveu momentos “felizes”, hoje está completamente sucateada pelos governos neoliberais e “é bem triste o (seu) pená”.

Embora, em sua gênese, a extensão rural brasileira tenha sido influenciada e concebida seguindo o modelo empresarial estadunidense rockefelliano, é inegável a relevância desse serviço prestado pelo Estado brasileiro ao longo do tempo para o incremento da produção agrícola no país e, sobretudo, para a elevação do nível de vida do povo, desde a sua institucionalização na década de 1940.

Importante destacar que o extensionista rural, por muitas vezes, era o único representante do poder público ao qual o homem do campo tinha acesso e, por isso mesmo, era demandado em diversas outras empreitadas relacionadas ao acesso ao crédito e ao financiamento agrícola e assuntos diversos que não necessariamente estavam diretamente relacionadas com a agricultura.

Em “Memórias de um Extensionista Rural”, que retrata a vida de Paulo de Moraes Marques, o personagem central do livro lembra o seguinte: “Certa ocasião fui fazer uma reunião de planejamento com a comunidade de Jardim, em Garanhuns, onde trabalhava, e ouvi que a maior necessidade era: “aumento do barreiro para evitar falta d’água no verão” (CONCEIÇÃO, 2018). Essa passagem ilustra bem o papel que o profissional da extensão rural desempenhava, muitas vezes tendo que atuar não apenas como agrônomo. Não raramente, era ele quem desempenhava o papel de juiz de paz, de engenheiro civil, de assistente social, de enfermeiro, etc.

Mas o extensionista rural é, antes de tudo, um educador. Malograda algumas experiências influenciadas pelo modelo estadunidense de promoção de pacotes tecnológicos oriundos da “Revolução Verde”, quando adotou a postura de propagandista de empresas e de alguns governos autoritários de plantão (como na ditadura militar), o papel predominante do extensionista rural no país foi o de promover a “comunhão de ideias” no meio rural.

Hoje, todos os Estados da Federação possuem, em maior ou menor grau de organização e alcance, um órgão estadual de extensão rural e Assistência Técnica, conforme atesta a Associação Brasileira das Entidades Estaduais de Assistência Técnica e Extensão Rural (Asbraer).

As entidades que atuam na área de extensão, na maioria dos estados da Federação, levam o nome de Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural, as populares Emater. É assim em Minas Gerais, Distrito Federal, Ceará, Pará, Rio de Janeiro, Paraná, entre outros.

Mas há outros treze estados em que esses órgãos foram batizados com outros nomes, como é caso do Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper), a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri) ou o Instituto Agronômico de Pernambuco (IAP). Em síntese, são empresas voltadas para a extensão, ainda que algumas incorporem algumas atividades de pesquisa agropecuária voltadas às suas aptidões locais.

Essas empresas públicas foram umas das responsáveis pelo grande salto que o país presenciou em ver uma agricultura de traços marcadamente semi-feudais se transformar em umas das mais produtivas do mundo em menos de meio século. Mais que isso, foram essenciais para se elevar a educação e nível de compreensão sobre assuntos básicos relacionados à alimentação, saneamento, higiene pessoal, planejamento familiar e tantos outros temas ligados ao ambiente rural.

Seja na forma de visitas técnicas, reuniões, dias de campo, exposições entre tantos outros métodos, o extensionista rural brasileiro sempre cumpriu papel estratégico ao ser um dos mecanismos de implementação das políticas públicas voltadas à “melhoria do ambiente rural e para qualidade de vida das famílias do meio rural”, como atesta a Emater do Paraná[6], em uma de suas funções básicas.

Ainda que o país tenha vivido várias experiências isoladas de extensão rural, desenvolvidas desde a igreja católica com suas missões rurais e até pelo Partido Comunista do Brasil com suas associações de trabalhadores rurais, conhecidas como as ligas camponeses, a institucionalização efetiva de um serviço de assistência técnica e extensão rural no Brasil pelo Estado Nacional se dá “ao longo das décadas de 50 e 60, a partir da criação nos estados das associações de crédito e assistência rural (ACAR), coordenadas pela Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural (ABCAR), criada em 21/06/1956” (PEIXOTO, 2008).

 

Figura 2: Técnicos da Emater debatendo com produtores rurais de Brazlândia técnicas para economizar água. Foto: Toninho Tavares/Agência Brasília.

Um grande marco na extensão rural no Brasil se deu na década de 1970 quando, segundo Peixoto (2008), o Sistema Brasileiro de Extensão Rural começou a ser estatizado através da Lei nº 6.126, de 06 de novembro de 1974, “que autorizou o Poder Executivo a instituir a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater)”, uma empresa pública, vinculada ao Ministério da Agricultura.

A criação da Embrater ocorreu na mesma época da Embrapa, justamente para promover e garantir que a tecnologia desenvolvida por essa empresa de pesquisa pudesse chegar até ao produtor rural.

A Lei no 6.126, de 1974, que instituía a Embrater estabelecia, portanto, os objetivos, as fontes de recursos e a definição de sua integração com a Embrapa, autorizando-a a dar apoio financeiro às instituições estaduais oficiais que atuassem em ATER e pesquisa agropecuária (PEIXOTO, 2008). O parágrafo único do art. 5 da Lei 6.126/74, promovia a estatização das Associações de Crédito e Assistência Rural (Acar) ao estabelecer que:

“o apoio financeiro da EMBRATER dependerá, em cada caso, da absorção, pela Empresa estadual pertinente, do acervo físico, técnico e administrativo e dos encargos trabalhistas do órgão integrante do Sistema Brasileiro de Extensão Rural da respectiva Unidade da Federação, salvo deliberação em contrário da Associação de Crédito e Assistência Rural interessada”.

De acordo com Peixoto (2008), a Embrater aglutinou todas as estruturas das Acar existentes dos estados e, a partir daí, impulsionou-as a novo status, como empresas ou outras estruturas governamentais de assistência técnica e extensão rural (Emater). Nesse mesmo sentido, o Sistema Abcar (ou Siber) transformou-se no Sistema Brasileiro de Assistência Técnica e Extensão Rural (Sibrater).

Na década de 1980, com a escalada do neoliberalismo no país, todo esse sistema começou a sofrer com a falta de investimentos por parte dos governos que visavam claramente o seu desmonte para dar lugar espaço às consultas técnicas feitas pelas empresas privadas. Um sistema público de assistência ao produtor rural já não era mais prioridade na ótica dos governos neoliberais.

Nesse sentido, uma das primeiras iniciativas no governo no governo do presidente Fernando Collor de Mello, em 1990, foi a extinção da Embrater[7]. A extensão rural e a assistência técnica pública passa a ser encarada como atividade não essencial ao Estado e, a partir de então, os repasses federais para as empresas estaduais de ATER são interrompidos, ocasionando o sucateamento dessas empresas públicas, sendo que algumas chegaram a ser extintas e outras fundidas.

Visando reduzir custos, a coordenação do sistema brasileiro de ATER foi transferida para a Embrapa e a regulamentação e prestação de seus serviços circunscritas ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Nelson Rockeffeler, se vivo fosse, teria comemorado.

“Não existe almoço grátis”: a inanição da Extensão Rural no Brasil

“There is no free lunch” (ou, simplesmente, “não existe almoço grátis”, em português), é um ditado que remonta às décadas de 1930 e 1940 nos Estados Unidos mas foi popularizado entre os neoliberais a partir de 1975 quando, seu guru, o economista Milton Friedman, usou a expressão como título de um de seus livros.

Este é um daqueles mantras sagrados aos neoliberais. Diz respeito à uma visão mercadológica, que a tudo tenta precificar. Uma ideia fossilizada que prevalece em todos os seus raciocínios, nas mais diversas áreas. E com os serviços públicos de assistência técnica e extensão rural (ATER) não foram diferentes.

Assim, um país é concebido como se uma empresa privada fosse e, seu povo, tratado como empregados que devem fazer jus aos seus custos operacionais. Investimentos sociais são sempre tratados como custos operacionais que devem ter algum tipo de retorno financeiro imediato. 

Se desde os anos 1960 a “percepção da informação agrícola como um bem público, e sujeito a falhas de mercado, forneceu o argumento principal nos debates políticos” para justificar os investimentos do Estado em serviços públicos de extensão, a partir de 1980, com “a industrialização crescente da agricultura, consequentemente com uma ênfase aumentada no potencial para a provisão comercial destes serviços”, o neoliberalismo em voga patrocinou uma ofensiva de questionamentos sobre a natureza de bem público da extensão rural (PEIXOTO, 2008).

A partir do estabelecimento da corrente neoliberal no Brasil, a partir da década de 1980, “a existência da Embrater passou então a ser crescentemente ameaçada junto ao governo, no qual a ampla maioria dos gestores detinha a convicção de que a modernização agrícola havia sido bem-sucedida e que, portanto, a assistência técnica deveria limitar-se à prestação de serviços privados futuramente” (THOMSON et al., 2018). Ainda, de acordo com esses autores, esta visão tipicamente neoliberal atribuía ao Ministério da Agricultura priorizar seus recursos para programas de comercialização e crédito agrícola voltados aos produtores já integrados ao mercado.

Na esteira das políticas do Estado Mínimo, todas as estruturas governamentais de assistência técnica e extensão rural estaduais (Emater e congêneres), também sofreram sucessivos cortes no orçamento até chegarem à atual situação de total sucateamento destes importantes instrumentos que formavam o Sistema Brasileiro de Assistência Técnica e Extensão Rural (Sibrater).

 

Figura 3: Situação do escritório do EMATER em Barreiras, interior do Piauí retrata o descaso com a extensão rural no país. Fonte: https://blogdojosebonifacio.blogspot.com/. Acessado em 24/07/2020.

Toda uma longa e rica história de um serviço essencial no processo de desenvolvimento rural e da atividade agropecuária foi interrompida. A consolidação da assistência técnica e a da extensão rural no Brasil foi obra de gerações e demorou muito tempo para se enraizar por todo o território nacional, mas num curto intervalo de tempo viu todo esse processo ruir.

De acordo com Alex et al (2002), até o final da década de 1980, os investimentos públicos em extensão rural pareciam se manter estáveis, com exceção da África onde os recursos nesta área diminuíram. “A partir de então os ajustes estruturais, a redução de despesas públicas e a realocação de gastos, sugerem ter ocorrido uma redução substancial no financiamento da extensão”. E o Brasil foi um exemplo desta tendência.

Durante década de 1990 esse processo de ataque aos serviços público de ATER no país foram intensificados. Segundo Ruas et al (2006):

“Sob a orientação neoliberal baseada na teoria do Estado Mínimo, foi extinta, em 1990, a EMBRATER. Essa decisão teve como conseqüência o desmantelamento do Sistema Nacional de ATER (SIBRATER). Sem recursos federais para a manutenção dos serviços, e sem a orientação nacional, coube a cada estado encontrar alternativas de sobrevivência e qualificar a ação extensionista. As estratégias foram as mais diversas, incluindo processos de fusão das instituições de pesquisa e extensão, renegociação dos convênios com as prefeituras municipais ampliando a participação financeira dos municípios, redução do quadro de pessoal nas empresas, e, em alguns casos, a extinção de EMATERs nos estados (RUAS et al, 2006).

Com ampla participação da sociedade e movimentos sociais ligados ao tema (algo inédito na história do país), foi estabelecida as bases de uma política nacional de ATER, responsável por orientar sobre os serviços de Extensão Rural no Brasil por meio da efetivação da Lei 12.188, de 11 de janeiro de 2010.

Um exemplo do apagão da assistência técnica e da extensão rural no Brasil sob os governos liberais é o fato de que em apenas uma década de governos progressistas o o volume anual de investimento saltou de 56 milhões de reais para quase um bilhão de reais. Em 2013, no governo Dilma, foi criada a Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater), para atuar em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Em 2014, antes da onda golpista que assolou o país, a previsão do Ministério do Desenvolvimento Agrário era de que 800 mil agricultores familiares e assentados da reforma agrária fossem atendidos por programas de assistência técnica.

Infelizmente essa tentativa de soerguimento de uma política nacional extensionista foi fracassada e, desde 2016, a lógica neoliberal voltou com força máxima, deixando a cargo do mercado a tarefa de substituir a assistência técnica e a extensão rural públicas por consultorias privadas e propagandas das empresas de insumos agropecuários (a maioria estrangeira). O orçamento que chegou a quase um bilhão de reais no governo Dilma, chegou a R$ 118 milhões em 2019 e previsto para R$ 51 milhões em 2020.

Pode não haver almoço grátis para os trabalhadores (e, de fato, nunca houve), mas para outros setores como o Sistema S (um conjunto de entidades privadas vinculadas ao sistema sindical patronal responsável por aplicar recursos na formação profissional e na prestação de serviços sociais aos trabalhadores) o banquete é farto. Somente em 2019, o Sistema S arrecadou cerca de R$ 18 bilhões. O Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) é uma das entidades que compõem esse Sistema.

A missão institucional do Senar ou do Sebrae, por exemplo, nunca foi a de exercer assistência técnica ou extensão rural aos trabalhadores, embora há de se reconhecer seu exitoso trabalho complementar na capacitação dos mesmos. A ilusão neoliberal de transformar trabalhadores rurais em empreendedores à serviço do mercado é a grande panaceia de um governo patrocinado por uma elite empresarial antinacional e antipovo.

Não é preciso haver almoço grátis, desde que haja alimento saudável e de qualidade na mesa de todos os brasileiros acessível a todos. Para isso, é fundamental defender a retomada de um serviço nacional de assistência técnica e extensão rural capaz de atender às complexas necessidades do trabalhador rural é política estratégica para qualquer Nação que almeje se desvencilhar dos grilhões do pensamento colonial e neoliberal.

Qualquer Projeto de Nação soberano e democrático deve ter como objetivo libertar os produtores rurais das amarras que os prendem à propaganda mercantil cujo único interesse é aumentar as vendas de produtos e insumos que quase sempre são incompatíveis com os anseios dos agricultores, sejam eles grandes, médios ou pequenos.

*Luciano Rezende Moreira é Diretor de Temas Ecológicos e Ambientais da Fundação Maurício Grabois.

NOTAS:

[1] Fisiocracia é uma teoria econômica desenvolvida por um grupo de economistas franceses do século XVIII, que acreditavam que a riqueza das nações era derivada unicamente do valor de “terras agrícolas” ou do “desenvolvimento da terra” e que produtos agrícolas deveriam ter preços elevados.

[2] Duas obras, em especial, merecem destaque pelas duras críticas feitas por Lênin aos que, segundo ele, têm “ingênuas ilusões sobre a possibilidade de o camponês viver do trabalho de suas próprias mãos” e pela crítica “a maior sedentariedade da população” e “o maior apego à terra”: “Programa Agrário da Social Democracia” e “Capitalismo e Agricultura nos Estados Unidos da América”.

[3] O movimento intitulado antivacina vem crescendo em boa parte do mundo, sobretudo no Brasil, e se baseia na negação da ciência. Em agosto de 2018 um surto de sarampo assolou a Itália, com mais de 4.000 casos. A doença, que matava mais de 2 milhões de crianças por ano no mundo na década de 1990 havia sido erradicada.

[4] Ver mais em: http://bdigital.unal.edu.co/56/2/30_-_1_Capi_1.pdf. 

[5] Ver mais em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Repórter_Esso. Acessado e: 21/07/2020.

[6] Ver em: http://www.emater.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=88. Acesso em: 08 de abr. 2020.

[7] Embora o processo de extinção da Embrater tenha se iniciado no Governo Sarney, foi no governo Collor (1990-1992) que ela se concretizou, no âmbito de uma brutal redução no apoio financeiro e técnico federal às Emater estaduais.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ALTUSSER, L. Aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

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