O historiador escocês Niall Ferguson, reacionário, há pouco mais de uma década afirmou que “duas epidemias assolaram o mundo em 1918. Uma foi a influenza espanhola […] A outra epidemia foi o bolchevismo, que por determinado período pareceu quase tão contagioso quanto e no final das contas se provou tão letal quanto a influenza”.[1] O iminente historiador, que causa imensos frissons nas mais altas rodas neoliberais dos EUA e Europa, foi conselheiro de Trump, apoiador dos Le Pen e entusiasta do Brexit. Retirado seu ranço ideológico de gosto duvidoso, é possível entender que a tentativa de Ferguson e dos teóricos do imperialismo é de demonstrar omni tempore que a revolução de outubro em si, e seu legado, são opostos à democracia – tese incorporada pelo consenso liberal e disseminada pelos mais diversificados meios de comunicação, universidades, mundo editorial etc. Pretendemos mostrar a seguir que a revolução de outubro não só teve imensa radicalidade democrática, como também guarda atualidade para a construção das alternativas aos problemas postos nesta quadra do século XXI.

No que concerne “radicalidade democrática”, não se trata nem de universalizar o valor da democracia, nem igualar democracia e liberalismo ou restringir ao sufrágio; muito menos fazer apologia à democracia direta ou como “única via ao socialismo”. Para democracia que vale como inspiração da revolução de outubro, transcrevemos, a seguir, trecho do professor João Quartim de Moraes com a constatação “que, embora com motivações políticas opostas os dogmáticos de esquerda convergem com os de direita no empenho em ocultar as diferenças entre liberalismo e democracia. Os de esquerda, ao afirmar o caráter irremediavelmente burguês da democracia, tornam irrelevante, senão impossível, distingui-la da ideologia liberal. Os de direita, principalmente os politólogos norte-americanos, para anexar à ideologia liberal os valores democráticos, amputam-nos de seu conteúdo historicamente originário e conceitualmente essencial (= poder do povo).”[2] Nesse sentido a ideia de democracia, aqui colocada, tem conteúdo histórico e revolucionário no rumo da luta pelo poder popular, como acúmulo de forças para o projeto revolucionário.

Panorama de legados 

Avaliando-se o processo de longa duração, a revolução russa depôs uma dinastia (a da Casa dos Romanov), que comandava o império russo desde 1613, e alçou os trabalhadores ao centro da arena política com um programa republicano de valorização da soberania nacional e, ao mesmo tempo, internacionalista. Desmistificou o que se elaborava no movimento socialista até a I Guerra: que o socialismo seria uma consequência do desenvolvimento do capitalismo. Ao tatear rumos, a URSS desenvolveu uma economia planificada que mal sentiu a crise de 1929 e seguia franco crescimento enquanto o restante do mundo implodia após a quebra da bolsa. Enfrentou e venceu a maior máquina de guerra daquele tempo e liderou um movimento internacional para que emergisse uma nova ordem de relação entre as nações.

O Estado operário foi contraponto ao império estadunidense, e assim, garantiu equilíbrio internacional. Atuou diretamente ou como inspiração em diversos processos anticoloniais na África, Ásia e América Latina. Fez com que o capitalismo desenvolvesse, a contragosto, uma modalidade de Bem Estar Social – garantia de direitos civis e a trabalhadores. Deixou um legado cultural não só nas artes – música, literatura, dança, plásticas, arquitetura, cinema – mas também científico, tecnológico e desportivo. Desenvolveu métodos próprios de militaria, diplomacia e pedagogia. É uma das principais influências da maior potência emergente no mundo hoje, a China. Em setenta anos, ao passar de um império periférico no oriente à segunda maior potência do mundo, a URSS – ou seja, a revolução de outubro – deixou legados e lições.[3] A construção de alternativas hoje deve considerar profundamente essa experiência. Mas para contrapor Ferguson e seus asseclas, seguem abaixo três legados que consideramos de imensa atualidade.

Paz e autodeterminação das nações

A tradição socialista desde a I Internacional havia entendido que a questão da opressão nacional era um problema que dividia a classe operária. Em correspondência a Kugelmann, a 29 de novembro de 1869, Marx enfatiza isso: “Tornei-me mais e mais convencido – e o único problema é levar essa convicção ao seio da classe operária inglesa – de que esta não poderá jamais fazer qualquer coisa de decisivo aqui na Inglaterra enquanto não separar do modo mais definido sua política em relação à Irlanda da política das classes dominantes, enquanto ela não apenas não fizer causa comum com a Irlanda, como ainda tomar efetivamente a iniciativa dissolvendo a União estabelecida em 1801 e substituindo-a por uma relação federal livre.” E continua: “Mas, uma vez que o assunto estiver nas mãos do próprio povo irlandês, uma vez que ele seja feito seu próprio legislador e governante, uma vez que ele se torne autônomo, a abolição da aristocracia rural (em grande escala as mesmas pessoas do latifúndio inglês) será muito mais fácil do que aqui porque na Irlanda não se trata de uma questão econômica, mas é ao mesmo tempo uma questão nacional desde que os latifundiários lá não são como na Inglaterra, dignitários tradicionais e representativos, e sim os opressores mortalmente odiados de uma nação.”[4] Além das questões irlandesa e polonesa, não houve elaboração, explícita por parte de Marx e Engels, de qualquer outro exemplo de opressão nacional.

Já no período da II Internacional, Lênin, em polêmica com Rosa Luxemburgo, faz um preâmbulo que em “todo o mundo a época da vitória definitiva do capitalismo sobre o feudalismo esteve ligada a movimentos nacionais. A base econômica destes movimentos consiste em que para a vitória total da produção mercantil é indispensável a conquista do mercado interno pela burguesia, é indispensável a coesão estatal dos territórios com uma população da mesma língua (…)” e que a “formação de Estados nacionais, que são os que melhor satisfazem estas exigências do capitalismo moderno, é por isso a tendência de qualquer movimento nacional. Os mais profundos fatores econômicos empurram para isso, e para toda a Europa Ocidental – mais do que isso: para todo o mundo civilizado – o que é típico e normal para o período capitalista é o Estado nacional. (…) por autodeterminação das nações entende-se a sua separação estatal das coletividades nacionais estrangeiras, entende-se a formação de um Estado nacional independente. (…) razões pelas quais seria errado entender por direito à autodeterminação tudo o que não seja o direito a existência estatal separada.”[5] 

O texto deste trecho foi escrito no início do primeiro semestre de 1914, portanto antes da “falência da II Internacional”. Antes do início da I Guerra, a preocupação de Lênin – analisando uma Europa cheia de impérios – estava em situar a formação dos Estados nacionais com os fatores econômicos típicos daquele período, culminando nos objetivos de “plena igualdade de direitos das nações; o direito à autodeterminação das nações; a fusão dos operários de todas as nações – é este o programa nacional que o marxismo ensina aos operários, que ensina a experiência de todo o mundo”.[6] O internacionalismo leninista não exclui, mesmo antes da I Guerra, um “programa nacional”. Dois anos depois, o livro Imperialismo, fase superior do capitalismo dará contornos mais elaborados da pertinência do “programa nacional”.

Em 1917, 25 de outubro (7 de novembro do calendário gregoriano), sob as bandeiras de “pão, paz e terra”, uma coalizão de operários, camponeses, soldados e marinheiros tomaram o Palácio de Inverno, sede do governo em Petrogrado, e no dia seguinte publicaram um Decreto sobre a Paz – ainda em plena vigência da Grande Guerra – onde o “Governo Operário e Camponês […] propõe a todos os povos e seus governos […] que se comecem imediatamente negociações sobre uma paz justa e democrática.” Sobre paz, o decreto revolucionário entende “uma paz imediata, sem anexações (isto é, sem conquista de terras estrangeiras, sem incorporação pela força de povos estrangeiros)”[7]. A paz para o decreto está intimamente ligada à soberania nacional.

A partilha de países europeus e não europeus por países de alto desenvolvimento industrial, aos olhos da revolução, tinha forte significado. O colonialismo do capital expansionista fora a causa da Grande Guerra e, por conseguinte, da crise que se abateu em todo o mundo após 1918. O decreto entendia o problema das “anexações” e “incorporações” forçadas “de acordo com a consciência jurídica da democracia em geral e das classes trabalhadoras em particular, toda a incorporação num Estado grande ou forte de um povo pequeno ou fraco, sem o acordo e o consentimento”. Para o decreto não havia discriminação: “Independentemente, enfim, de se esta nação vive na Europa ou em distantes países ultramarinos.”[8]

No cerne, os termos do decreto não foram aceitos pelo conjunto de países envolvidos nas negociações do pós-Guerra e predominaram as propostas do presidente estadunidense Woodrow Wilson, que punham fim em alguns impérios, mas não no colonialismo. Ainda que de forma minoritária, com correlação de forças desfavorável, a revolução de outubro colocou os termos de seu entendimento sobre quais premissas deveriam pautar as relações entre as nações. Essas premissas vinham, já tradicionalmente, da II Internacional que, em seu 4º Congresso (Londres, 1896), aprova resolução sobre o “direito à autodeterminação de todas as nações e exprime as suas simpatias aos operários de todos os países que sofrem atualmente sob o jugo do absolutismo militar, nacional ou outro”[9]. 

A questão nacional para a revolução de outubro foi colocada como central na luta de classes em âmbito mundial. A fusão do capital industrial com o capital financeiro se aliou ao velho colonialismo e determinou quais eram as nações exploradas e as nações exploradoras. Com efeito, na esfera da III Internacional, o Congresso dos Povos do Oriente (Baku, 1920) sincronizou o chamamento final do Manifesto do Partido Comunista com as necessidades da fase imperialista, ficando então: “Proletários de todos os países e povos oprimidos do mundo, uni-vos!”. Essa foi uma arquitetura política de grande envergadura que posicionou a questão nacional no centro da democratização da relação entre as nações, sem hierarquizações, e possui grande atualidade.

A formação de uma união de repúblicas passou por profundos debates no Comissariado das Nacionalidades. A professora Analúcia Danielevicz Pereira afirma quando houve adesão dos Estados à URSS entre o período da NEP e a eclosão da II Grande Guerra, pois viam naquela experiência revolucionária uma possibilidade para solucionar a crise colocada após a I Guerra. “Em 1923, havia 4 repúblicas Federadas – República Socialista Federativa Soviética da Rússia, RSS da Ucrânia, RSS da Bielorrússia, República Socialista Federativa Soviética da Transcaucásia, que agrupava, até 1936, 3 repúblicas socialistas soviéticas com direitos iguais – Azerbaijão, Armênia e Geórgia. (…) em 1924 foram constituídas a RSS do Uzbequistão e do Turcomenistão; em 1929 a RSS do Tajiquistão; em 1936 a RSS do Cazaquistão e do Quirguistão; em 1940 as repúblicas da Moldávia, Lituânia, Letônia, Estônia e Karelia-filandesa, a qual, em 1956 foi convertida em RSS Autônoma da Karelia. República Federada é um Estado socialista soberano.”[10] A questão nacional, a democratização das relações entre as nações, dos povos dentro e fora da URSS foi pauta permanente para as relações internas e externas da URSS, desde antes da revolução de outubro. A revolução de outubro preservou, assim, coerência política de aprofundamento democrático em todo o mundo.

Pela emancipação das mulheres

De caráter também extremamente democrático – e revolucionário – é a promoção da mulher no espaço público, no sentido de sua emancipação, que ganhou uma nova fase após a revolução de outubro. Já havia elaborações anteriores, mas estas, outrora difusas, com o advento da I Internacional (1864-1874) ganharam contorno com bandeiras ligadas ao trabalho, proteção à maternidade e autonomia. A obra A mulher e o socialismo, de August Bebel, 1879 (que, para Clara Zetkin, era “mais do que um livro, um acontecimento – um grande feito”) representou uma importante síntese do pensamento marxista para a questão feminina. Pouco tempo depois, Engels daria a contribuição fundamental com o seu Origem da família, da propriedade e do Estado, de 1884 – situando historicamente a questão da mulher como mais antiga das opressões. Tais ideias ganharam organicidade em 1907, após o VII Congresso da II Internacional em Stuttgart, quando se realizou a 1ª Conferência Internacional Socialista de Mulheres. Em 1910, a 2ª Conferência instituiu o 8 de março como Dia Internacional da Mulher; e a 3ª e última Conferência Internacional Socialista de Mulheres aconteceu em Berna, 1915.

Em 1917, com a carestia que vivia a Rússia por conta da I Guerra – falta de alimentos e combustíveis (para calefação, inclusive) – uma manifestação massiva de mulheres, em 23 de fevereiro (8 de março) tomou as ruas de Petrogrado reivindicando alimentos e a volta de seus filhos, pais, irmãos e maridos da guerra. A manifestação paralisou fábricas, tornou-se greve geral, insurreição e deposição do Czar. Não coincidentemente no 8 de março: essas mulheres recebiam influência da tradição que vinha desde a I Internacional. E foi esse espírito programático que esteve presente na revolução de outubro.

Em novembro, dias após a tomada do Palácio de Inverno, a já veterana militante Alexandra Kollontai (1872-1952) foi nomeada Comissária do Povo do Bem Estar Social (equivalente a uma ministra da previdência social em amplo aspecto). Kollontai foi a primeira mulher a exercer um cargo de ministra em todo o mundo. Tratou da execução de políticas voltadas para as mulheres, como as ligadas à maternidade, cuidados com o recém-nascido, fim do casamento religioso (passando a existir, então, apenas o civil). Foi a articuladora do aborto legal, seguro e feito pelo Estado.[11] A Rússia revolucionária e o Estado soviético foram os primeiros governos a dar estatuto legal e esforço prático para a igualdade entre homens e mulheres.

A vida das mulheres após a revolução de outubro transitou da esfera privada/doméstica para a esfera pública. A participação nos movimentos populares, o crescimento do número de trabalhadoras das mais variadas categorias profissionais, maior liberdade em diversos aspectos, conduziu essa nova mulher à arena política; seja votando ou sendo votada. “Nas eleições de 1934-1935, foram eleitas 26,2% de mulheres como deputadas (na época somente 22 países no mundo garantiam o sufrágio universal) (…). [12] O sufrágio universal para homens e mulheres, sem o caráter censitário, foi instituído pela Rússia soviética, um dos primeiros Estados a fazê-lo e uma das primeiras medidas adotadas pelo governo revolucionário.

A ascensão das mulheres na sociedade soviética foi, ao mesmo tempo, pauta civilizatória acumulada no movimento socialista já havia mais de cinquenta anos e liberação de energia para alavancar qualidade e quantidade superior de produção para a construção do socialismo. No início do período revolucionário, a porcentagem de mulheres analfabetas na Rússia batia a marca de 88%. Já em “1937, 41% das mulheres soviéticas estavam estudando nas instituições superiores de ensino.”[13] Com a mulher no ambiente público (seja ele produtivo, acadêmico, político etc) o trabalho reprodutivo passou por modificações em que surgiram restaurantes, creches, lavanderias coletivas, públicos e estatais. O embrutecedor trabalho doméstico foi dividido com o Estado, liberando a mulher para a esfera pública.

O esforço teve protagonismo das mulheres soviéticas e contou com ampla participação estatal. A promoção feminina foi política de Estado. Nadiéjda Krúpskaia, veterana militante e deputada do Comissariado para a Educação (da Divisão de Educação para Adultos)[14], em prefácio do livro sobre emancipação da mulher de Lênin, mostra como esse fenômeno não ocorre espontaneamente – sobretudo onde até anos antes havia uma monarquia dinástica de séculos que não tinha aparatos de Estado e instrumentos democráticos –, e não bastaria apenas um ambiente em que primam as ideias revolucionárias como gatilho: “(…) seria um grande erro se fechássemos os olhos para o fato de que é preciso realizar um enorme esforço para provê-las de conhecimento, para envolvê-las no trabalho político, para o atendimento cultural de massa nas camadas mais amplas de trabalhadoras, kolkhozes, em especial as de minorias nacionais.”[15] O “esforço” é a atuação do Estado. 

Se houve maior liberdade em todo o mundo para as mulheres, a partir dos anos 1960, não foi sem influência das conquistas das mulheres no interior da revolução de outubro. O feminismo liberal, mesmo desconsiderando a centralidade do trabalho para a emancipação da mulher, recebeu impulso dos avanços das mulheres na sociedade soviética. 

Revolução de outubro contra a discriminação racial

As consequências da I Grande Guerra e a revolução de outubro alimentaram as necessidades da intercontinentalização da III Internacional. As Internacionais anteriores não haviam conseguido, em grande medida, romper com o eurocentrismo, seja pela incipiente industrialização – e, consequentemente, pequena presença operária na força de trabalho – em outros continentes (à exceção dos EUA), seja por falta de alcance global da elaboração socialista. O ulterior desenvolvimento do capitalismo engendrou também a resistência dos trabalhadores em escala mundial. Novos continentes, novos problemas, novas elaborações: um elemento novo para os comunistas será a questão racial. 

O historiador Augusto Buonicore, referenciando-se nos documentos do 4ª Congresso da Internacional Comunista, (1922) lembra que foi a primeira vez que se debatia nesse âmbito a “questão negra”: “Para a IC, os Estados Unidos eram ‘o centro da cultura negra e da cristalização do protesto negro.’ Por isso, ‘a história reservou aos negros dos Estados Unidos um papel importante na libertação de toda a raça africana (…) A grande participação dos negros na indústria após a guerra, o espírito de rebelião que despertaram neles as brutalidades de que são vítimas’ (…) ‘O problema negro converte-se numa questão vital da revolução mundial.’”[16] Essa ênfase da Internacional Comunista para com os EUA não se justifica apenas por aquele país ter fortes relações com as três internacionais (sendo a sede principal no final da I Internacional, inclusive), mas também pelas condições objetivas do trabalhador negro estadunidense que chegavam em forma de notícias aos dirigentes da Internacional.

O filósofo italiano Domenico Losurdo, em artigo, lembra da ferocidade com que os negros eram tratados naquele país. Citando o historiador Vann Woodward descreve que “notícias dos linchamentos [de negros] eram publicadas em anúncios locais e vagões suplementares eram acrescentados aos trens para os espectadores, algumas vezes milhares, provenientes de localidades a quilômetros de distância. Para assistirem ao linchamento, as crianças podiam gozar de um dia livre nas escolas.”[17] Esse caldo de naturalização da violência, num país que sofreu escravidão longa, com impossibilidade de ressocialização, elevada exploração nas fábricas e fazendas, dificuldade de igualdade (aos brancos) perante a lei, segregação com racismo oficial e oficioso “após a Revolução de Outubro, os afro-americanos que aspiravam pôr em xeque o jogo da white supremacy eram frequentemente acusados de bolchevismo”.[18]

Nos anos 1930 o antifascismo incorporou elementos antirracistas nos EUA e em todo o mundo. Alfred Rosengerg, homem de extrema confiança de Hitler, ao visitar os Estados Unidos “com o olhar voltado principalmente ao Sul, como um ‘esplêndido país do futuro’ que havia tido o mérito de formular a feliz ‘nova ideia de Estado racial’”[19], procurou aproximar os EUA do Terceiro Reich que se erguia – num primeiro momento, sem grandes resistências por parte do governo norte-americiano.

Na África do Sul, o Partido Comunista foi fundado em 1921 tendo como uma resolução inaugural “lutar para colocar fim nas divisões raciais existentes no movimento operário”[20]. O escritor comunista estadunidense, autor do lendário Os dez dias que abalaram o mundo, John Reed, apontou no II Congresso da IC (1920) que “se considerarmos os negros como um povo escravizado e oprimido, então isso nos colocará duas tarefas: de um lado, um forte movimento racial e, de outro, um forte movimento proletário, cuja consciência de classe está se desenvolvendo rapidamente.”[21] 

Outras resoluções foram aprovadas na IC em seus congressos e reuniões ampliadas. Os comunistas da Inglaterra, da França e Portugal (países que tinham colônias com intensos problemas raciais) elaboraram políticas e redigiram resoluções sobre o problema da unidade na classe operária, sobre a incorporação dos racialmente oprimidos ao partido comunista, sobre o fim do regime de opressão racial e do colonialismo.

No quesito antirracista, a revolução de outubro gerou importantes lutas, seja na contribuição das lutas de independência das colônias africanas (que algumas tinham prioritariamente os componentes racial e nacional ao mesmo tempo), no desgaste do regime de Apartheid na África do Sul, na inspiração dos Panteras Negras, Malcolm X, Ângela Davis e dezenas de grupos antirracistas em todo o mundo. Inclusive, a própria white supremacy passou a compreender essa luta como bandeira dos comunistas: “Em dezembro de 1952, o ministro estadunidense da justiça enviava à Corte Suprema, que era chamada a discutir a questão da integração [de estudantes negros] na escola pública, uma carta eloquente: ‘A discriminação racial leva água à propaganda comunista e suscita dúvidas também entre as nações amigas sobre a intensidade da nossa devoção à fé democrática.’”[22]

Não encontramos sinopse de filme estadunidense, dos estúdios de Hollywood, que valorize o negro ou denuncie a condição em que vivem socialmente e sob o racismo. Por outro lado, o cinema soviético expôs sua política de acolhida multiétnica, em contraposição aos Estados Unidos, por exemplo, no belíssimo filme Circus[23], em que uma cantora acrobata estadunidense branca escapa de um linchamento em seu país por ter um filho negro e vai para a URSS onde tem boa acolhida, sem problemas com a negritude do bebê. Saindo da esfera da representação, a pesquisa de Shana A. Russel, estudiosa do trabalho das mulheres negras e professora no departamento de Estudos Africanos e Afro-Americanos da Universidade de Newark, aponta a dissertação de mestrado de Esther Cooper um fenômeno de “dezenas de mulheres negras [que] fizeram a peregrinação à URSS e retornaram aos Estados Unidos com uma nova visão de liberdade para si mesmas como trabalhadoras, como mulheres e como afro-americanas.”[24] Ao contrário de grande parte dos países a URSS tinha na sua Constituição de 1936, no artigo 123º, sanção para a prática de racismo.[25]

Fim da URSS como malogro para os trabalhadores e os povos

Esses reflexos diretos da revolução de outubro, desdobrados no desenvolvimento da União Soviética e a construção do socialismo como um modo de vida superior ao capitalismo, foram confirmados e reconfirmados após o fim da URSS e do bloco socialista. Sobretudo a partir de 1989, o imperialismo estadunidense encontrou ambiente sem resistência à altura e abriu um novo período em que os povos e as nações se encontravam em situação fragilizada e sofreram derrotas que é possível aferir em diversos casos[26]; foi decretado, inclusive, o fim da história. O famigerado Consenso de Washington impôs uma agenda de desregulamentação, “abertura das economias”, desnacionalização, desestatização e desestruturação dos Estados nacionais.

Neste início de terceira década do século XXI, mais de cem anos da revolução de outubro, há mostras cabais de ruína do sistema de organização social imposto pelo capital. Sem a URSS como contraponto, a democracia parece rumar à falência. Ao sabor das necessidades dos grandes monopólios, são usadas as novas tecnologias para fazer pesadas mobilizações dos sentimentos das massas. Dão forma a procedimentos coletivos que vão do comportamentos violentos de manada ao terrorismo da indignação[27]. Volta do racismo de matriz xenofóbica em escala global, tendo como vítimas os refugiados; num contexto de fim de Bem Estar Social. As eleições de grandes “democracias” se revelam disputas performáticas em que o financiador é quem gera a linha programática dos governos e, assim, o voto censitário volta com uma nova roupagem e refinamento. O desequilíbrio, desproporcionalidade, “desuniversalidade” no âmbito entre as nações faz emergir uma extrema direita que ganha espaço político em diversos pontos do globo.

Revolução de outubro como inspiração

O conhecimento profundo e a crítica da experiência da revolução de outubro, como já dito acima, é inspiração para a construção de alternativas aos problemas postos nesta quadra do século XXI. Não se trata de copiá-la ou tê-la como modelo. A revolução de outubro é um alargamento genial da criatividade e das possibilidades de transformar radicalmente a realidade.

Não perdeu, em cem anos, a centralidade da independência das nações e o fortalecimento dos povos. São poderosas as resistências contra o imperialismo. A democratização entre as nações pode reverter o desequilíbrio internacional calcado na subserviência econômica; que faz das nações menores e mais frágeis dependentes das maiores e mais fortes, disseminando vulnerabilidade, desemprego e pobreza. A paz pode converter a insegurança no globo que produz guerra e ditaduras – e faz milhões de refugiados em dezenas de regiões que são focos de racismo e terrorismo – num clima de prosperidade, inclusive para refrear a crise de 2008 somada à causada pela pandemia.

Se para metade da humanidade, as mulheres, há ainda um ambiente de opressão, então não caminhamos no sentido da liberdade e da emancipação. Dados da ONU mostram que a vulnerabilidade das famílias tem por um dos efeitos o aumento da violência doméstica contra crianças e, principalmente, contra as mulheres. Elas sofrem ainda mais a pressão para que voltem ao trabalho doméstico, já que os Estados vêm se retirando mais e mais do papel de participar das atividades de reprodução do capital. Volta-se a conter a energia feminina que foi inicialmente liberada no século XX para o mundo do trabalho. Os fundamentalismos em ascensão reforçam teses de superioridade masculina. A revolução de outubro teve ganhos civilizatórios ao colocar como tarefa central a incorporação das mulheres à vida pública. Dois artigos da Constituição soviética da 1936 guardam grande atualidade: o 122º “Às mulheres na URSS são concedidos direitos iguais ao homem, em todas as esferas da economia e da vida do Estado, cultural, política e socialmente. O gozo desses direitos é assegurado pela concessão à mulher do direito ao trabalho como ao homem, com o mesmo salário, e com todos os direitos de descanso, seguro social e educacional e pela proteção do Estado aos interesses da mãe e da criança, descanso durante a gravidez, assistência em maternidade, enfermarias e creches.” E o 137º “As mulheres têm o direito de elegerem e serem eleitas em condições iguais aos homens.” Ter esses temas em letra de lei e assegurar que esses itens sejam incorporados objetiva e subjetivamente na sociedade, observando a condição feminina, é estratégico atualmente.

Dezenas de países de colonização secular e escravização da América Latina, África e Ásia desenvolveram racismo estrutural em algum grau. O clima de insegurança, aumento do desemprego e as crises multitemáticas dificultam a luta contra esse tipo de fenômeno e aumentam a incidência dele. Um aspecto importante do desenvolvimento do socialismo na URSS foi a luta contra as opressões étnico-nacionais no sentido de emular tanto pautas civilizatórias como desenvolvimento social propício para a produção em larga escala e de qualidade. O centro para a sociedade era o trabalho. Para isso foram feitas leis de criminalização do racismo e ações afirmativas que elevavam as autoestimas racial e nacional propiciando uma sociabilidade civilizada. A acolhida do estrangeiro, seja ele refugiado ou não, foi uma marca importante da URSS, desde o início da revolução. Havia política de Estado para o incentivo à imigração e boa acolhida. Só na década de 1930 mais de 18 mil estadunidenses emigraram para a URSS e estabeleceram fortes laços com o país. Assim como as organizações com a participação dos soviéticos, como Federação Mundial de Juventudes Democráticas (FMJD), Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM), União Internacional de Estudantes (UIE), Conselho Mundial da Paz (CMP) e Federação Sindical Mundial (FSM) tinham (e ainda têm) forte conteúdo de emulação dessa valorização da paz, dos povos, das nações e do desenvolvimento em escala global.

É necessário expandir a participação popular na condução política das nações e do mundo. A plutocracia, que defendem refinadamente Ferguson e seus partidários, tem sido – principalmente depois do fim da URSS – a expressão de miséria para a maioria dos trabalhadores. A democracia não é apenas o sufrágio, versa também sobre possibilidades de participação popular em diversos níveis para também construir projetos e rumos. 

Em 2020, o início da pandemia do novo coronavírus, que nos reporta aos índices de mortandade da influenza espanhola citada pelo historiador reacionário, está associada a outro fenômeno pandêmico: a ascensão da ultra-direita. A experiência mostrou que em 1918 não havia as duas epidemias apontadas. No entanto, hoje, há mais elementos para dizer que a Covid-19 e a ordem defendida por Ferguson são perigosamente destrutivas para o mundo e a humanidade.

Notas

[1] FERGUSON, Niall C. (2007) The War for the World: Twentieth-Century Conflict and the Descent of the West, Londres Peguin, p. 115. Apud LOSURDO, Domenico – A Revolução Russa e a ideologia dominante hoje, Em: MARINGONI, Gilberto (org.) (2017) Curso: A História da Revolução Russa, SESC/Boitempo Editorial, p. 69.

[2] MORAES, João Quartim (1999) Liberalismo e fascismo, convergências, Em: Crítica Marxista, São Paulo: Xamã, p. 16-17.

[3] Para as características destes apontamentos, nos limitamos a alguns dos tópicos que sugerem paralelos com a atualidade. Não trataremos aqui de apontar erros e problemas advindos de condução política ou tradição secular imperial. Entendemos que os houve, pois numa experiência dessa magnitude original, até então, única não passaria sem equívocos.

[4] MARX, K. (2002) O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, São Paulo: Paz e Terra, p. 270-271.

[5] LÊNIN, V. I. (1977) [1914] Sobre o direito das nações à autodeterminação”, Em: Obras Escolhidas, v. 1, Lisboa/ Moscou: Edições Avante/ Edições Progresso, p. 512.

[6] Idem, p. 555.

[7] LÊNIN, V. I. (1988) [1917] Relatório sobre a Paz – 26 de outubro (8 de novembro), Em: Obras Escolhidas, v. 2, São Paulo: Alfa Ômega, p. 396.

[8] Idem.

[9] LÊNIN, V. I. (1977), p. 537.

[10] PEREIRA, Analúcia Danielevicz (1917) Notas sobre a questão nacional na URSS: revolução, Estado e autonomia, Em: PAZ, Walmaro – 100 anos da revolução russa, Porto Alegre: Já Editores, p.34.

[11] CRUZ, Paula Loureiro da (2012) Alexandra Kollontai: feminismo e socialismo – uma abordagem crítica do Direito, São Paulo: Alfa Ômega, p. 44-45.

[12] RINCÓN, Lúcia (2017) O protagonismo da União Soviética na luta pelo direito das mulheres, Em: MONTEIRO, A., BERTOLINO, O. (org.) – 100 anos da revolução russa: legados e lições, São Paulo: Fundação Maurício Grabois/ Editora Anita Garibaldi, p. 191-192

[13] Idem, p. 189 e 192.

[14] SCHNEIDER, Graziela (2017) A revolução das mulheres – Emancipação feminina na Rússia Soviética (artigos, atas, panfletos, ensaios), São Paulo: Boitempo Editorial, p. 87

[15] Idem, p. 125.

[16] BUONICORE, Augusto (2016) Linhas vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução (artigos e ensaios críticos), São Paulo: Fundação Maurício Grabois/ Editora Anita Garibaldi, p. 221.

[17] LOSURDO, Domenico (2017) Revolução de outubro e democracia no mundo, Em: MONTEIRO, A., BERTOLINO, O. (org.) – 100 anos da revolução russa: legados e lições, São Paulo: Fundação Maurício Grabois/ Editora Anita Garibaldi, p. 254.

[18] Idem, p. 256.

[19] Idem, p. 257.

[20] BUONICORE, p. 218.

[21] Idem, p. 220.

[22] LOSURDO, p. 256.

[23] Circus (????), direção de Grigori Alexsandrov (1936), Comédia musical, URSS, P&B, Mosfilm. Distribuição brasileira pelo CPC/ UMES São Paulo, coleção Série Cinema Soviético.

[24] RUSSEL, Shana A. (2017) “Eu queria ver por mim mesma a primeira terra do socialismo”: as mulheres negras americanas e a revolução russa, Em: Revista Movimento: https://movimentorevista.com.br/2017/11/mulheres-negras-revolucao-russa-negritude-feminismo-socialismo/

[25] Artigo 123 – Direitos iguais para todos os cidadãos da URSS, independentemente de sua nacionalidade ou raça, em todas as esferas do Estado, seja economicamente, na vida cultural, social ou política, constituem lei irrevogável. Qualquer limitação direta ou indireta desses direitos ou inversamente, qualquer estabelecimento de privilégios, direta ou indiretamente por causa de sua raça ou nacionalidade, assim como qualquer propaganda de exclusividade nacional ou racial, de ódio ou desprezo serão punidos pela lei.

[26] Dos exemplos maiores de interferência do neocolonialismo após o fim da URSS, é possível citar alguns: 1989 – invasão estadunidense no Panamá. 1990 – intervenção dos EUA nas eleições da Bulgária e após o resultado desfavorável, o imperialismo financiou manifestações e revoltas; e interferência nas eleições na Nicarágua colocava fim ao governo socialista de Daniel Ortega. 1991 – Primeira guerra no Iraque e primeira ação bélica de demonstração de forças para o mundo. 1993 – consolidação, pela força, de um governo comandado por Boris Iéltsin que enfraqueceu a Rússia não só como potência, mas também como nação; discurso inaugural de Bill Clinton afirma: “A nossa missão é eterna!”. 1999 – Desmembramento, sob bombas e genocídio, da Iugoslávia. 2000 – Na vitória da eleição presidencial George W. Bush brada: “A nossa nação foi eleita por Deus e tem o mandato da história para ser o modelo para o mundo!”. 2002 – Sequestro e golpe malogrado contra Hugo Chavez, da Venezuela. 2003 – Segunda guerra no Iraque, abre o período de “Guerra Eterna”. E três anos depois Sadam Hussein foi sequestrado e condenado à pena de morte por enforcamento; “revolução das rosas” na Geórgia, golpe de estado contra uma nação que tentava se sustentar de forma soberana. 2004 – “revolução laranja” na Ucrânia onde emerge uma nova extrema-direita. 2009 – tentativa de anular a eleição iraniana; e Deposição do presidente, democraticamente eleito, Manuel Zelaya, de Honduras. 2010 – Interferência da empresa mafiosa Cambridge Analytica nas eleições gerais de Trinidad y Tobago; golpe de Estado no Egito, início de guerra civil na Síria e protestos massivos coordenados em 14 países (ficou conhecido com o nome de Primavera Árabe). 2011 – deposição do presidente, democraticamente eleito, Fernando Lugo, do Paraguai; invasão à Líbia e assassinato de Muamar Kadafi. O maior IDH da África se tornou um território sem Estado onde impera o crime. 2013 – início de desestabilização do governo Dilma Rousseff no Brasil. 2016 – Deposição da presidente, democraticamente eleita, Dilma Rousseff do Brasil. 2018 – eleições no Brasil têm uso ilegal de redes sociais que elege Jair Bolsonaro à presidência do país. 2019 – Deposição do presidente, democraticamente eleito, Evo Morales, da Bolívia. 

[27] LOSURDO, Domenico (2016) Esquerda ausente – crise, sociedade do espetáculo, guerra, São Paulo: Fundação Maurício Grabois/ Editora Anita Garibaldi, p. 109.

*Fernando Garcia de Faria é historiador mestrando em História Econômica na USP, coordenador do Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois e integra o Conselho Editorial da Editora Anita Garibaldi e o Conselho Consultivo da Revista Princípios.