A questão das disputas entre a China e parte de seus países vizinhos pelos domínios de territórios no Mar do Sul da China aparece frequentemente como elemento desestabilizador das relações regionais asiáticas, e não raramente como possível foco de tensão a assumir contornos militares mais amplos. Isso não se dá por acaso, afinal as disputas no Mar do Sul da China têm potencial para uma escalada de violência capaz de impactar todo o sistema internacional. Portanto, constitui mais do que simples celeumas relacionadas às disputas da China com países como Vietnã, Brunei, Malásia e Filipinas. Nesse caso específico, a questão passa pela compreensão de como a China articula a defesa de seus interesses no plano regional com o contexto mais amplo das políticas de cerco e contenção executadas por Washington contra o seu processo de ascensão.

Dito isso, é preciso analisar as mensagens cifradas envoltas na questão do Mar do Sul da China, muitas delas propagadas a partir de centros midiáticos e acadêmicos que não são atores desinteressados nas consequências práticas dessas disputas. Ou seja, a narrativa dominante ocidental se concentra no “expansionismo da China” sobre os vizinhos fragilizados. No entanto, as evidências são, na verdade, de ostensiva presença militar estadunidense na região, bem como de grande disparidade temporal entre a primeira construção de estruturas chinesas nos territórios reivindicados nas ilhas Spratly, que se deu apenas no final de 2013, e aquelas construídas anteriormente pelos demais contendores.

 

 

O Mar do Sul é fundamental para a segurança militar e comercial da China. Fonte: Limes – Rivista Italiana di Geopoltica

Nesse sentido, cabe mencionar que a “linha dos onze-traços” – que delimita as aspirações territoriais em questão – foi proposta inicialmente pela República da China durante o governo do Guomindang, com ajuda técnica dos EUA, antes da efetivação da Revolução de 1949, com intuito de reivindicar soberania para o país sobre as ilhas Paracels, Prats e Spratly, logo após a rendição japonesa na Segunda Guerra Mundial. O imbróglio aumentou quando o Tratado de São Francisco, de 1949, que dispôs sobre a situação do Japão no pós-guerra, não resolveu a questão das ilhas, já que não teve participação chinesa. À época, os comunistas chineses emitiram notas de repúdio à não resolução do imbróglio, e posteriormente o Premier Zhou Enlai subtraiu dois traços da inicial “linha dos onze”, retirando o Golfo de Tonkin das reivindicações e formando a “linha de nove-traços” sobre a qual República Popular da China reivindica soberania até hoje.

O governo chinês adota como posição oficial os direitos históricos sobre a região, pois argumenta que as atividades dos chineses no Mar do Sul datam de mais de dois mil anos. A China teria sido a primeira a descobrir, nomear e se dedicar à exploração e ao aproveitamento das ilhas localizadas naquela região, além de ter sido a primeira a exercer plena soberania e jurisdição sobre elas de forma contínua, pacífica e eficaz. Segundo o recente Livro Branco publicado pelo Gabinete de Imprensa do Conselho de Estado da China envolvendo a questão, existem numerosos documentos históricos para comprovar essa afirmação, tais como o “Yi Wu Zhi (Relato de Coisas Estranhas) da dinastia Han do Leste (25-220); Fu Nan Zhuan (Registro de Fu Nan) do Período dos Três Reinos (220-280); Meng Liang Lu (Registro de um Sonhador Acordado) e Ling Wai Dai Da (Notas sobre as Ilhas além das Passagens) da dinastia Song (960-1279); Dao Yi Zhi Lüe (Breve Relato das Ilhas) da dinastia Yuan (1271-1368); Dong Xi Yang Kao (Estudos sobre Oceanos do Leste e do Oeste) e Shun Feng Xiang Song (Bom Vento para Escolta) da dinastia Ming (1368-1644); assim como Zhi Nan Zheng Fa (Navegações com Bússola) e Hai Guo Wen Jian Lu (Registros de Coisas Vistas e Ouvidas sobre as Regiões Costeiras) da dinastia Qing (1644-1911)” [2].

Os demais atores regionais também têm suas razões e argumentos para sustentar seus pleitos territoriais, afinal essa não se trata de uma questão apenas técnica e jurídica, mas geopolítica e com importantes implicações para todos eles. Assim como a China busca na história as razões de sua soberania sobre aqueles territórios, é possível argumentar que a existências dos governantes do Império de Funan no delta do Mekong não representava submissão à China, mas apenas o controle das rotas marítimas conectadas aos portos chineses. Nesse sentido, o problema teria surgido na medida em que os europeus transformaram as “fronteiras fluidas” em “fronteiras fixas” durante o período colonial. Assim, Taiwan segue as mesmas reivindicações de Beijing; o Vietnã argumenta que possui presença ativa nas ilhas Paracels e Spratly desde o século XVII; a Malásia e Brunei reivindicam territórios no Mar do Sul baseando-se na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar; e as Filipinas não só reivindicam ilhas nas Spratly como o Scarborough Shoal (reconhecido pela China como Huangyan Island).

 

A China sabe que precisa reduzir as tensões no seu entorno para que elas não sejam aproveitadas pelos interesses geopolíticos que lhe são adversos. Fonte: The Asean Post

Aliás, em julho de 2016 o Tribunal Permanente de Arbitragem de Haia aceitou a demanda das Filipinas de explorar recursos no Mar do Sul da China. Segundo o Tribunal, não procedem as alegações chinesas acerca das “evidências históricas” de seu controle sobre aquela região. Mesmo que tivesse direitos históricos sobre as águas do Mar do Sul, esses direitos teriam sido extintos devido à incompatibilidade com as zonas econômicas exclusivas estabelecidas pela Convenção das Nações Unidas de 1982 sobre o Direito do Mar.

Tudo indica, contudo, que os EUA tenham influenciado a demanda filipina junto ao Tribunal de Haia para fomentar o litígio e a consequente construção de alianças anti-chinesas na região. Não se deve desconsiderar os laços que os unem de longa data, afinal a própria concessão da independência das Filipinas pelos EUA foi condicionada, no passado, ao estabelecimento de suas bases militares no país. Em dezembro de 2019, a Malásia apresentou uma reivindicação à Comissão das Nações Unidas sobre os Limites da Plataforma Continental, também visando avançar nas suas demandas.

Após o veredicto, o governo chinês – que havia boicotado as audiências em Haia por não reconhecer a jurisdição do tribunal sobre a disputa – declarou “que o veredicto é nulo e não possui força vinculativa”, e ainda reafirmou que “em relação às questões territoriais e disputas de delimitação marítima, a China não aceita qualquer meio de solução de disputas por terceiros ou qualquer solução imposta à China” [3]. Assim, o governo da China prefere realizar as negociações no âmbito regional conforme estabelecido na Declaração de Conduta das Partes no Mar do Sul da China, assinada em 2002 com dez países membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), sem que a questão seja suscetível à exploração externa em fóruns multilaterais.

A região tem importância estratégica para a China por diversas razões. Isso inclui o imperativo de garantir a livre navegação regional, inclusive com a construção da Nova Rota da Seda Marítima; a atuação de sua plataforma móvel Haiyang Shiyou 981 para a exploração de recursos sem necessidade de ocupação; e a capacitação militar e sua mudança doutrinária para consolidar uma política de anti-acesso e negação de área (A2AD ou Anti-Access/Area Denial). Tudo isso dentro dos objetivos mais amplos de rejuvenescimento da nação chinesa, recuperação dos territórios usurpados ao longo do Século de Humilhações e articulação de um novo sistema sinocêntrico, baseado em iniciativas integracionistas, tais como a ASEAN 6, a Organização para a Cooperação de Xangai (OCX) e a Nova Rota da Seda (Continental e Marítima). Para tanto, é do interesse chinês a consolidação da estabilidade política e econômica regional e internacional, e não a elevação das tensões e possíveis conflitos delas decorrentes.

Consequentemente, os EUA tendem a explorar os conflitos na Ásia-Pacífico para criar entraves à liderança chinesa de diversas formas. Dentre elas, consolidando o cerco estratégico-militar já citado, que inclui a realização de exercícios e manobras militares recorrentes no entorno estratégico chinês, valendo-se da utilização de alguns daqueles que são os maiores porta-aviões do mundo (USS John C. Stennis e USS Ronald Reagan) em conjunto com as forças das Filipinas e demais aliados. Isto não está desvinculado dos intentos estadunidenses para desagregar a unidade nacional da China por intermédio do fomento de movimentos separatistas no Tibete, em Xinjiang, em Hong Kong e em Taiwan. Os litígios no Mar do Sul se unem, portanto, a um contexto mais amplo que visa envolver a China, na condição de potência desafiante, em um encadeamento de conflitos regionais capazes de desestabilizar seu franco processo de modernização e de inserção internacional.

Como fica claro, a escalada do conflito, responde, em última instância, ao contexto mais amplo das disputas pela hegemonia do sistema internacional. Para os EUA, dividir, isolar a conter a China é essencial para a consecução de seus objetivos, como atestam o apoio a movimentos separatistas e/ou à ênfase na construção da “ameaça chinesa”. Para a China, a superação da questão do Mar do Sul é um meio de evitar a crescente presença dos EUA em seu entorno regional, alargando sua área de segurança marítima. Ressalte-se que nesta região existem gigantescas reservas de hidrocarbonetos (a US Energy Information Administration estima um mínimo de 28 bilhões de barris de petróleo e cerca de 25 trilhões de metros cúbicos de gás), além de interagir com a rota marítima que conecta os principais portos do mundo, via Estreito de Malaca.

Ao invés do Xadrez, os chineses preferem jogar o Go, jogo baseado numa ação prolongada, movendo-se pelos espaços “vazios”, mitigando o potencial estratégico do oponente de maneira flexível, e reconhecendo os elementos políticos e psicológicos como tão importantes quanto os militares (Tzu). O conflito no Mar do Sul tem claramente elementos dessa cosmologia, e sua condução será crucial para o desfecho das disputas em curso.

Este artigo toma por base os seguintes artigo, cujas fontes originais estão disponíveis:

PAUTASSO, D.; DORIA, G. A China e as disputas no Mar do Sul: entrelaçamento entre as dimensões regional e global. REVISTA DE ESTUDOS INTERNACIONAIS , v. 8, p. 18-32, 2017.

PAUTASSO, D.; LEITE, A.; DORIA, G. As disputas sino-vietnamitas no Mar do Sul: desafios para além da questão regional. CARTA INTERNACIONAL , v. 12, p. 54-76, 2017.

Referências:

[1] MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF THE PEOPLE’S REPUBLIC OF CHINA (2002). China’s Position Paper on the New Security Concept Julho 31, 2002). Ministry of Foreign Affairs of the People’s Republic of China. 06 de Agosto de 2002, publicado em http://www.fmprc.gov.cn/mfa_eng/wjb_663304/zzjg_663340/gjs_665170/gjzzyhy_6 65174/2612_665212/2614_665216/t15319.shtm. Disponibilidade: 17/07/2016.

[2] GABINETE DE IMPRENSA DO CONSELHO DE ESTADO DA CHINA (2016). A China persiste em resolver através de negociações as disputas com as Filipinas no Mar do Sul da China. Rádio Internacional da China. 13 de Julho de 2016, publicado em[http://portuguese.cri.cn/1721/2016/07/13/1s218533.htm]. Disponibilidade: 18/07/ 2016.

[3] MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA (2016). Declaração do Ministério das Relações Exteriores da China sobre o veredicto do Tribunal Arbitral na Arbitragem do Mar do Sul da China. 12 de Julho de 2016, publicado em

[http://portuguese.cri.cn/1721/2016/07/12/1s218493.htm] . Disponibilidade: 18/07/ 2016.

Fonte: OutrasPalavras – O artigo foi publicado originalmente no site Bonifácio

*Diego Pautasso – Doutor e mestre em Ciência Política e graduado em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é professor de Geografia do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) e professor convidado da Especialização em Relações Internacionais – Geopolítica e Defesa, da UFRGS. Autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria, ed. Juruá, 2011. E-mail: [email protected]