A última vez que participei de reuniões do Fórum Social Mundial (FSM) no Brasil foi há 20 anos – dias maravilhosos de exuberância, vitalidade, expectativa, interação entusiasmada dos participantes que se estendiam da Via Campesina aos centros urbanos, unidos na crença de que um mundo melhor é possível e comprometidos em criá-lo. Eles rejeitavam firmemente a famosa máxima de Margaret Thatcher: “There is no alternative” [Não há alternativa]. Não há alternativa ao regime neoliberal que ela e Ronald Reagan estavam tentando impor ao mundo. O slogan do FSM era o contrário: existe uma alternativa e nós vamos criá-la.

Não é exatamente esse o clima de hoje.

A empolgação no FSM não era mal colocada. O Brasil estava prestes a entrar em sua “década de ouro”, expressão usada pelo Banco Mundial em sua avaliação retrospectiva dos anos Lula, revisando as muitas realizações domésticas do governo enquanto o Brasil também se tornava talvez o país mais respeitado do mundo e uma voz eloquente para o Sul Global sob a liderança do Presidente Lula e de seu Chanceler Celso Amorim.

Novamente, não é exatamente esse o clima de hoje.

A acomodação do governo Lula às demandas do capital privado internacional, seja o que for que se pense a respeito, não foi suficiente para aplacar aqueles a quem Adam Smith chamou de “os senhores da humanidade”. A reação veio logo, não só no Brasil.

Não há necessidade de revisar os acontecimentos desde então ou de abordar o modo como o Brasil é visto agora. Isso talvez seja simbolizado pela ajuda da Venezuela em fornecer oxigênio para aliviar a catástrofe em Manaus – agora se espalhando por outro lugar em um país famoso por seu alto nível de pesquisas e realizações nas ciências da saúde e por um recorde estelar de eficiência da vacinação, anteriores ao atual assalto à sociedade.

Para adicionar uma comparação pessoal, minha esposa Valeria e eu, morando no Arizona, temos o privilégio incomum de ter obtido máscaras de alta qualidade, graças à generosidade de um amigo de Taiwan. Enquanto isso, o Arizona acaba de ganhar o campeonato mundial de infecções per capita de Covid.

O Arizona está um pouco à frente na competição para ser o pior do mundo. Enquanto escrevo, a manchete principal do New York Times diz: “Nova situação pandêmica: os hospitais estão ficando sem vacinas”, referindo-se a todo o país.

A história continua para relatar que “as autoridades de saúde dos EUA estão frustradas porque as doses disponíveis não são utilizadas enquanto o vírus mata milhares de pessoas todos os dias. Milhares de vacinações agendadas foram canceladas e as autoridades locais, com frequência, não têm certeza sobre quais suprimentos elas terão em mãos.” A imprensa local acrescenta que os hospitais não têm mais leitos e que pessoas morrem nos corredores. O quadro é o mesmo em qualquer lugar do país mais rico do mundo, com vantagens incomparáveis.

Na mesma primeira página do NYT, ao lado do relato da catástrofe nos EUA, está uma história intitulada “Um ano após o bloqueio: isso é Wuhan hoje.” Ela retrata pessoas se deleitando em “um mundo pós-pandêmico, onde o alívio de rostos sem máscaras, encontros alegres e viagens diárias esconde os abalos emocionais”.

O número de mortes diárias da Covid 19 nos EUA é cerca de três a quatro vezes maior que o total de mortos na China durante todo o ano da pandemia, em equivalente per capita, a medida correta.

Não podemos ser muito superficiais ao tirar lições do que aconteceu em todo o mundo neste ano terrível, mas seria insensato ignorar a história. É instrutivo em todo o mundo. Meu estado natal, a Pensilvânia, tem quase a mesma população de Cuba e 100 vezes o número de mortes de Covid: 20.000 em comparação com 200. As mortes por Covid na cidade de São Paulo têm uma taxa semelhante à da Pensilvânia em comparação com Cuba (100 vezes maior).

É comum atribuir o sucesso da China, em contraste com a catástrofe dos EUA, ao rígido controle autoritário da China sobre a população. A conclusão não é convincente. Taiwan é tão livre e democrática quanto os EUA. Sua população de 24 milhões registrou sete mortes. Além disso, observadores ocidentais na China relatam que a aceitação popular dos procedimentos muito rígidos que virtualmente eliminaram a doença parece ter sido amplamente voluntária e solidária.

Uma tentativa de revisão em todo o mundo parece indicar que os principais fatores para domar a catástrofe têm sido um governo eficaz agindo para o bem-estar de sua população, combinado com uma mentalidade coletivista geral e espírito de cooperação: estamos todos juntos nisso, para o bem comum.

É útil dar uma olhada mais de perto nos piores desempenhos. Vou deixar o Brasil de lado – um caso por demais deprimente para se discutir. Os mais instrutivos são os Estados Unidos e seu aliado britânico mais próximo, ambos com registros terríveis, destacados por seu privilégio incomum e desenvolvimento econômico. Eles também são incomuns em outro aspecto. Eles são o lar dos programas neoliberais que varreram o mundo nos últimos 40 anos, dirigidos por Reagan e Thatcher, e, em seguida, por seus sucessores. Essas doutrinas contribuíram poderosamente para criar e intensificar a crise de Covid. Os ricos e poderosos beneficiários dos programas neoliberais estão agora trabalhando duro para garantir que irão formatar a sociedade pós-pandemia. As doutrinas e suas consequências devem ser examinadas de perto. Terei que me limitar a apenas alguns comentários aqui.

Um impulso central do neoliberalismo é desmantelar a sociedade civil e diminuir a preocupação do governo com o bem-estar do público em geral. Como Thatcher proclamou, “não existe sociedade”, apenas indivíduos que enfrentam as forças do Sagrado Mercado sozinhos e, se não sobreviverem às devastações, azar. Para citar um dos famosos pronunciamentos do presidente do Brasil: “e daí?”

Para ser preciso, sob a doutrina neoliberal, apenas alguns são lançados no mercado para sobreviver de alguma forma. Outros têm o direito de ser mimados pelo Estado – ou seja, por seus infelizes cidadãos. Nunca devemos esquecer o ditado de Balzac, extraído da sabedoria popular tradicional, que “leis são teias de aranha pelas quais as grandes moscas passam e as pequenas são pegas”. Os programas neoliberais foram cuidadosamente elaborados para garantir que esses princípios prevalecessem, com subsídios maciços e resgates para as grandes moscas. Temos testemunhado isso repetidamente desde os primeiros dias do ataque neoliberal.

Os pensamentos de Thatcher não eram originais. Sem querer, ela estava parafraseando Karl Marx. Ele condenou os governantes autocráticos da Europa por tentarem transformar a sociedade em “um saco de batatas”, indivíduos isolados, atomizados, lutando sozinhos, sem sociedade civil, sem organizações populares de defesa contra o poder concentrado.

Reagan e Thatcher seguiram o roteiro com cuidado. Seus primeiros atos foram destruir os sindicatos, no caso de Reagan, chegando a trazer trabalhadores substitutos permanentes, prática logo adotada pelas empresas privadas. Os golpes do martelo contra a organização do trabalho continuaram sob seus sucessores. Estudos recentes de economistas proeminentes, como recentemente Lawrence Summers, atribuem a espetacular desigualdade criada durante os anos neoliberais principalmente à destruição dos sindicatos, privando os trabalhadores de qualquer meio de autodefesa contra a incessante luta de classes.

As doutrinas do ataque de 40 anos à sociedade remontam às origens do neoliberalismo na Viena do período entreguerras. O reverenciado pai fundador do movimento, Ludwig von Mises, mal pôde conter sua euforia quando o governo protofascista esmagou violentamente o vibrante movimento operário austríaco e elogiou efusivamente o fascismo de Mussolini por ter “salvo a civilização europeia. O mérito que o fascismo conquistou para si viverá eternamente na história”, escreveu Mises em seu livro clássico “Liberalismo”, anos depois que os camisas negras expulsaram violentamente os sindicatos e o pensamento independente para seus devidos lugares.

As luzes principais do neoliberalismo ficaram ainda mais entusiasmadas com a ditadura assassina de Pinochet. Por razões de princípio. Medidas severas devem ser tomadas para salvaguardar uma “economia sólida”, garantindo que não haverá restrições populares sobre a liberdade dos muito ricos e do setor corporativo de expandir sua riqueza e poder.

O ideal é a economia de “privatizar tudo”, para citar o atual Ministro da Economia do Brasil, muito elogiado pelas finanças internacionais que desejam tirar os recursos do Brasil, de seu povo, sob a bandeira neoliberal.

Essas são considerações a ter em mente quando se pensa em um mundo pós-pandêmico. Elas revelam que não há conflito entre o apelo à liberdade, de certo tipo, e as duras medidas de repressão e controle. Além disso, como mencionei, existem forças poderosas trabalhando arduamente agora para garantir que o mundo pós-pandêmico manterá as principais armas da luta de classes incorporadas à doutrina neoliberal. Mais uma razão para examinar os princípios básicos e suas consequências.

As ideias essenciais são capturadas no discurso inaugural de Reagan: “o governo é o problema, não a solução”. Isso não significa que as decisões em nível nacional desapareçam. Em vez disso, elas são transferidas para as mãos dos “senhores da humanidade”, as grandes megacorporações e as instituições financeiras que explodiram em escala durante os anos neoliberais. Sua responsabilidade havia sido explicada pelos economistas responsáveis, principalmente Milton Friedman. A única responsabilidade das empresas é enriquecerem-se.

Não é difícil prever as consequências de entregar a tomada de decisões a instituições tirânicas, cujo único objetivo é o enriquecimento. Algumas são reveladas em um estudo recente da Rand Corporation, uma instituição quase-governamental. Ela estima que a transferência de riqueza, dos 90% de renda mais baixa da população para os muito ricos – principalmente a fração superior de 1% -, tenha sido de US$ 47 trilhões. Não é pouco, mas uma subestimação muito séria. Não leva em consideração a abertura de Reagan a manipulações financeiras antes proibidas por lei, como os paraísos fiscais, que acrescentam outras dezenas de trilhões de dólares ao roubo em massa dos trabalhadores e da classe média.

Os resultados estão diante de nossos olhos, onde quer que a marreta tenha atingido. Nos Estados Unidos, os salários reais dos trabalhadores do sexo masculino diminuíram durante o violento ataque de 40 anos, junto com benefícios e, no mínimo, segurança limitada. A democracia política, sempre profundamente falha, diminuiu ainda mais à medida que está cada vez mais subordinada à riqueza privada e ao poder corporativo. Os estudos recentes mais sofisticados mostram que 90% da população literalmente não está representada; seus próprios representantes estão ouvindo outras vozes, as dos financiadores de sua próxima campanha. Enquanto isso, as equipes de seus gabinetes estão sobrecarregadas com enxames de lobistas que praticamente redigem leis.

Sem precisar prosseguir, pode-se chegar a entender algumas das raízes da raiva, ressentimento, desprezo pelas instituições que se espalharam por grande parte do mundo, facilmente capturadas por demagogos que podem fingir defender as massas despossuídas enquanto as apunhalam pelas costas, transferindo a culpa por seu mal-estar para alvos vulneráveis: pessoas não-brancas, imigrantes, o perigo amarelo, quaisquer venenos que corram logo abaixo da superfície da vida social.

Uma visão de futuro, agora perseguida ativamente pelos setores dominantes, é a perpetuação dessa monstruosidade, de formas ainda mais duras: vigilância mais intensa, controle, atomização e precariedade para a grande massa da população.

Outra visão é a que vem sendo promovida pelo Fórum Social Mundial. Uma visão de um mundo no qual as pessoas assumam o controle de seu próprio destino em comunidades e locais de trabalho autônomos, livrando-se de seus senhores, da dominação e das instituições repressivas. Um mundo que mantenha alto o ideal liberal clássico, há muito reprimido, de que devemos substituir os grilhões sociais por laços sociais. Um mundo que incorpore uma cultura de solidariedade e ajuda mútua, de participação direta em todas as esferas por cidadãos informados e engajados que se dediquem ao bem comum.

Essa visão não é utópica. Ela pode ser realizada. Além disso, ela tem que ser realizada de alguma forma se for para o experimento humano sobre-existir. Não é segredo que vivemos um momento marcante da história da humanidade, uma confluência de crises de extrema gravidade. A menos que os desafios sejam vencidos, e em breve, será perda de tempo contemplar os contornos de uma sociedade pós-pandêmica, porque não haverá sociedade nenhuma. Isso não é exagero.

A crise menos severa de todas é essa que, compreensivelmente, está agora atraindo a atenção e a preocupação: a pandemia. Mais cedo ou mais tarde, a pandemia será contida, a um custo terrível e desnecessário, como podemos ver nas sociedades, ricas e pobres, que conseguiram lidar com ela com eficácia. Mas a pandemia será superada e, se a história servir de guia, logo será esquecida.

Pense na chamada gripe espanhola há um século. O número de mortos foi colossal. Estima-se em cerca de 50 milhões de pessoas. Considerando o tamanho da população, isso seria o equivalente a 300 milhões de pessoas hoje. Um desastre inimaginável – que, no entanto, logo foi esquecido. Eu nasci alguns anos depois que a crise abrandou. Nunca ouvi falar dela quando era criança. Aprendi sobre isso nos livros de história.

Se revivermos essa experiência, teremos sérios problemas. Outras epidemias de coronavírus provavelmente ocorrerão e podem ser mais graves do que esta, devido à destruição do habitat e ao aquecimento global. Além disso, até agora tivemos sorte. Epidemias recentes de coronavírus foram altamente contagiosas e não muito letais, como a atual, ou altamente letais, mas não muito contagiosas, como o Ebola. Podemos não ter essa sorte da próxima vez. Essas criaturas astutas têm muitos truques nas mangas.

Nos últimos anos, os cientistas nos disseram claramente o que devia ser feito. Não foi feito. As enormes e super-ricas instituições farmacêuticas não se interessaram, graças à lógica capitalista. Não é lucrativo se preparar para um desastre que ocorrerá daqui a alguns anos. O governo dos Estados Unidos e alguns outros têm laboratórios maravilhosos, que de fato fornecem muitas das descobertas básicas para medicamentos e vacinas que são comercializados com fins lucrativos em nosso sistema econômico de subsídio público e lucro privado. Mas eles foram neutralizados pela variante neoliberal destrutiva do capitalismo: o governo deve se manter fora dos negócios da empresa privada – exceto, é claro, quando elas podem se beneficiar da generosidade do contribuinte. O desastre foi então agravado pela incompetência e, em alguns casos, pela malevolência da liderança.

Estamos ouvindo os mesmos apelos de cientistas hoje, os mesmos avisos e conselhos sobre o que deve ser feito para evitar desastres. Mero conhecimento não é suficiente. Ele precisa ser colocado em uso.

A pandemia em curso e as que estão por vir constituem uma das crises atuais. Uma crise muito mais séria é o aquecimento do globo. A urgência do desenvolvimento da crise foi enfatizada mais uma vez há algumas semanas, quando a Organização Meteorológica Mundial publicou seu Relatório anual sobre o estado do meio ambiente global. O Relatório adverte que em nosso curso atual, podemos em breve atingir pontos de inflexão irreversíveis. Em breve poderemos alcançar o que eles chamam de “Hothouse Earth” (Terra Estufa), estabilizando-se a 4-5º Celsius acima dos níveis pré-industriais, bem além do nível reconhecido como cataclísmico. O estudo conclui que é “mais urgente do que nunca prosseguir com a mitigação … A única solução é livrar-se dos combustíveis fósseis na produção de energia, indústria e transporte”. O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática) marca, para muito breve, a data para atingir esse resultado, em meados do século.

Assim como para a pandemia, sabemos como atingir esse objetivo. Existem meios viáveis que foram descritos em grande detalhe e estão em parte sendo implementados, mas apenas em parte. Esses esforços devem ser rapidamente acelerados, e logo, ou o jogo termina. Cientistas respeitados nos dizem em termos inequívocos que devemos “entrar em pânico agora”. Eles não estão exagerando.

Outra crise de escala comparável é a crescente ameaça de armas nucleares, que recebe muito pouca atenção fora dos círculos especializados, onde a crise é reconhecida como extremamente grave. Aqui, a solução é óbvia: livrar a Terra dessas monstruosidades. Passos importantes foram dados. Na sexta-feira passada, o Tratado da ONU sobre a Proibição de Armas Nucleares entrou em vigor, apoiado por 122 nações – embora, lamentavelmente, nenhuma das potências nucleares. Isso tem de mudar. Mesmo aquém disso, existem ações muito significativas que podem ser implementadas, mas que não há tempo para serem discutidas aqui.

Todas essas crises são internacionais. Elas não conhecem fronteiras. Elas devem ser confrontadas com a solidariedade internacional. Nesse caso, as palavras de Margaret Thatcher estão certas. Não há alternativa.