O presidente Jair Bolsonaro passou a incentivar passeios de motocicleta para mobilizar seus apoiadores. No último fim de semana, promoveu um no Rio, após ter feito outro em Brasília.

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Muita gente atentou para um fato curioso: também o líder fascista Benito Mussolini promovia passeios semelhantes de moto. Pouco se falou, contudo, sobre um ponto crucial: por que, afinal, eles viram nas motocicletas um símbolo de seu ideário?

A resposta pode ser encontrada nos manifestos futuristas do poeta Filippo Tommaso Marinetti. Como sabemos, no início do século 20 pipocavam uma série de vanguardas artísticas que, em seu conjunto, iriam configurar o modernismo. A primeira —e talvez a mais importante— dessas vanguardas foi o futurismo.

Em consonância com seu nome, esse movimento pregava uma oposição radical ao passado, em favor de uma arte atirada ao moderno, que procurasse louvar e prefigurar o futuro.

O movimento, que tem início com a publicação do primeiro manifesto de Marinetti no jornal francês Le Figaro, logo se espalharia por vários países. Em Portugal, Fernando Pessoa fez poesia futurista a partir de seu heterônimo Álvaro de Campos. No Brasil, havia na Semana de Arte Moderna de 1922 artistas como Anita Malfatti e Oswald de Andrade, ambos influenciados pelo futurismo.

Na Rússia, se desenvolveu uma vertente própria, que teve na poesia de Vladimir Maiakóvski um de seus destaques. A versão russa acabaria se ligando à experiência de construção do socialismo, a ponto de muitos coletivos futuristas externarem sua simpatia e mesmo sua lealdade ao Partido Comunista.

Já na Itália aconteceu o contrário: o movimento pendeu para o lado do fascismo. Isso surge claro na trajetória de futuristas como Gabriele D’Annunzio. Esse poeta tem, aliás, uma história curiosa. Abro um parêntese para resumi-la.

Assista também a coluna de Fábio Palácio na TV Grabois abordando as semelhanças entre Bolsonaro e Mussolini

 

Havia, nas proximidades da fronteira entre a Itália e o antigo Império Austro-Húngaro, uma cidade chamada Fiume, que hoje se chama Rijeka e é uma das principais da Croácia. Era uma cidade multicultural, habitada por italianos, alemães, húngaros, austríacos, croatas, eslovenos e outras etnias.

Com o final da Primeira Guerra e a derrota do Império Austro-Húngaro, o status de Fiume ficou indefinido. A Itália, de um lado, e o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos (futura Iugoslávia), de outro, passaram a reivindicar a cidade, ambos com base em alegações sobre sua composição étnica.

Em meio a um período de disputa e indefinição, durante o ano de 1919 a cidade foi tomada por uma milícia de ativistas, poetas e intelectuais nacionalistas italianos, chefiada por D’Annunzio. Ele e seus sequazes criaram um Estado chamado Regência Italiana de Carnaro, que durou pouco mais de um ano.

Nesse período, D’Annunzio chegou a redigir uma Constituição, de caráter utópico-poético. Ele afirmava ter a pretensão de construir a partir de Fiume uma “nova Roma”. Esse movimento, que passou à história como fiumanismo ou d’annunzismo, serviria de inspiração aos fascistas.

Sobre a relação entre d’annunzismo e fascismo, o peruano José Carlos Mariátegui afirma em seu livro “Biología del Fascismo”: “D’Annunzio não é fascista. Mas o fascismo é d’annunziano. O fascismo usa […] uma retórica, uma técnica e uma postura d’annunzianas. O grito fascista de ‘Eia, eia, alalá!’ é um grito da epopeia de D’Annunzio. As origens espirituais do fascismo estão na literatura de D’Annunzio”.

Essa história de relação com o fascismo não é só de D’Annunzio, mas também de outros futuristas, com destaque para Marinetti. Com a diferença de que, se aquele teve uma ligação frouxa e instável, este foi ativo militante e chegou a defender que a ideologia de Mussolini representava uma extensão das ideias futuristas.

Os manifestos de Marinetti —foram mais de 20, lançados entre 1909 e 1914— permitem surpreender a gestação do ideário fascista. Este não surge da noite para o dia. Forma-se ao longo de anos, alimentando-se de movimentos intelectuais preexistentes, como explica Mariátegui: “O futurismo —que foi um dos rostos, um episódio do fenômeno d’annunziano— é outro dos ingredientes ideológicos do fascismo. […] Futuristas e d’annunzianos criaram na Itália um humor megalômano, anticristão, romântico e retórico”.

Isso não quer dizer que o futurismo italiano tenha sido um movimento direta e abertamente fascista. No entanto, ele acabou servindo de antessala, de “incubadora”: ajudou a fermentar certas ideias que mais tarde se tornariam caras ao fascismo.

A esta altura é legítima a pergunta: o que tem tudo isso a ver com os passeios de motocicleta? Ocorre que uma característica central do futurismo, que surge clara desde o primeiro manifesto de Marinetti, é o culto às máquinas, principalmente as máquinas motorizadas, tomadas como ícone de modernidade.

Em seu “Dicionário de Termos Literários”, o professor Massaud Moisés afirma: “Centrando-se, assim, no moderno, os futuristas faziam a apologia da velocidade, da máquina, do automóvel (‘um automóvel é mais belo que a Vitória de Samotrácia’, dizia Marinetti no seu primeiro manifesto), da agressividade, do esporte, da guerra, do patriotismo, do militarismo […]”.

É interessante recorrermos ao próprio Marinetti. Vejamos como essas ideias surgem em um de seus manifestos: “Arte vida explosiva. Italianismo paroxístico. Antimuseu. Anticultura, Antiacademia, Antilógica, Antigracioso, Antissentimental. Contra as cidades mortas. — Modernolatria. Religião da nova originalidade velocidade. Desigualdade. — Intuição e inconsciência criadoras. Esplendor geométrico. Estética da máquina”.

Outro trecho afirma: “Compenetração e simultaneidade de tempo espaço longe-perto, exterior-interior, vivido-sonhado. Arquitetura pura (ferro-cimento). Imitação da máquina. Luz elétrica decorativa — Sínteses teatrais, de surpresa sem técnica e sem psicologia. Simultaneidades cênicas de alegre-triste realidade-sonho — […] Arte dos ruídos. Sonoros. Arcos inarmônicos — Pesos medidas prêmio do gênio criador. Tactilismo e mesas tácteis. Em busca de novos sentidos. Palavras em liberdade e sínteses teatrais e olfativas — Flora artificial. Completo plástico motorruidoso — Vida simultânea — Proteção das máquinas […]”.

Estamos diante do debate sobre concepções de modernidade, e o fascismo também esboçou a sua. É um tipo de ideário mecanicista, que tende a ver o futuro do ser humano à luz da metáfora da máquina. Esta importa em dois sentidos. Primeiro, porque reforça a concepção fascista de “sociedade orgânica”.

Nessa perspectiva, a sociedade é vista como um organismo vivo, composto de partes que são os seus “órgãos”; essas partes devem colaborar harmonicamente entre si —como as engrenagens de uma máquina. Se há peça operando como contramola, colocando-se de forma antissistêmica, ela é vista como disfuncional e deve ser extirpada.

O ser humano é concebido, nessa perspectiva, como mero autômato a serviço da elevação da raça. E aqui vamos adentrando o segundo sentido da metáfora da máquina.

Sabemos que imagens de força, potência e vigor são caras ao fascismo. Elas contribuem para fixar no imaginário a ideia de “raças superiores”. Nessa visão, a tecnologia é concebida como extensão do corpo humano, capaz de torná-lo mais vigoroso. É este o significado que se oculta por trás da apologia fascista das armas e outras engenhocas, incluindo meios de transporte como o automóvel, o avião… e a motocicleta.

Não por acaso, as motocicletas são signo frequente em filmes de caráter distópico, como “Mad Max” (1979), de George Miller, e “Rollerball — os Gladiadores do Futuro” (1975), de Norman Jewison. São narrativas de um futuro autoritário e violento, em que tudo se resolve na base da força bruta.

Neles, as motocicletas surgem não como meios de transporte, mas como armas, artefatos que ampliam o potencial belicoso do ser humano. “A guerra é bela porque realiza, pela primeira vez, o sonho de um homem com o corpo metálico”, diz Marinetti em seu manifesto apologético da Guerra Ítalo-Etíope (quando Mussolini invadiu a Abissínia, atual Etiópia). A imagem marinettiana do “corpo metálico” parece especialmente atraente para quem vê o futuro como choque de civilizações, e não como paz entre os povos.

Isso quer dizer que a cultura motociclística é fascista? De maneira nenhuma! Significa apenas que o fascismo reclama essa formação cultural, como também várias outras —incluindo a própria cultura automobilística.

Mussolini, apaixonado por automóveis e competições, era proprietário de um Alfa Romeo 6C 1750, carro que competiu nas mil milhas italianas de 1936, dirigido por seu motorista particular Ercole Boratto, que tinha sido piloto de testes da mesma Alfa Romeo.

Os fascistas reivindicam para seu patrimônio simbólico inúmeras culturas e valores. Para citar mais um exemplo, como dizia Mariátegui, eles “ambicionavam o monopólio do patriotismo”. Ora, será isso suficiente para dizermos que possuem esse monopólio? O patriotismo é, em si, um valor fascista? Não seria razoável pensar assim.

Em contraposição ao nacionalismo conservador e autoritário dos fascistas, os democratas propugnam um nacionalismo democrático e popular, em que o povo não é vítima, mas herói e autor da nacionalidade.

Coisa semelhante pode ser dita da vanguarda futurista. Embora possua ideias comuns a todas as suas manifestações, como a recusa do passado e a exaltação do moderno, é preciso reconhecer que esse núcleo ideológico se volatiliza nas mais diversas interpretações.

O movimento assumiu colorações variadas conforme a região e o país. Se na Itália o futurismo se inclinou em direção ao fascismo, na Rússia outra abordagem se construiu, em aliança com o movimento socialista.

O futurismo russo não subordinava o destino do ser humano a uma razão técnica todo-poderosa. Não concebia, como ainda hoje o fazem os modernos cloroquiners, a panaceia tecnológica como solução para a tragédia humana. Exaltava, sim, a tecnologia, mas como instrumento para uma libertação do trabalho que só poderia vir, no entanto, do próprio ser humano.

A política sempre guardou relação com as ideias estéticas. Os fascistas reivindicam essa conexão de modo especial. Como afirma Walter Benjamin em seu célebre ensaio “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”, os fascistas promoveram a estetização da política.

Trata-se de uma tendência que não se pode subestimar. É preciso entender o enorme poder —político, inclusive— das ideias estéticas. Quem não compreende esse poder acaba sofrendo, inadvertidamente, seus efeitos.

*Fábio Palácio é jornalista, doutor em ciências da comunicação pela ECA/USP e professor de jornalismo da UFMA (Universidade Federal do Maranhão). Diretor da Fundação Maurício Grabois. Autor da coluna semanal da TV Grabois – Cultura em Movimento