A emergência da pandemia trouxe à tona algumas questões que estavam, de forma direta ou indireta, envolvidas com a doença e com suas repercussões para outras áreas do conhecimento e da própria vida em sociedade. O negacionismo científico, que até então estava relativamente contido em alguns nichos de atuação, passa para as manchetes dos grandes meios de comunicação. Lideranças com capacidade nada desprezível de influenciar a população, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, por exemplo, não hesitaram em se utilizar das máquinas dos respectivos governos para destilar críticas aos consensos alcançados nos meios científicos e profissionais no que se refere a estratégias para combater o vírus e evitar a propagação da doença.
 
Assim, algumas inverdades assumiram espaços de recomendações governamentais, como a apologia do uso criminoso e indiscriminado de medicamentos sem fundamento científico algum, a propagação de mentiras colocando em dúvida a eficácia de vacinas para elevar a imunidade da população e também o combate às medidas de isolamento social como a forma necessária de redução da velocidade dos contágios.
 
Por outro lado, muito foi escrito e falado a respeito de uma suposta característica “democrática” da covid-19, uma vez que o vírus não escolheria as pessoas que iria contaminar. No entanto, a questão é bem mais complexa. Se é verdade que os meios de disseminação da doença são mais amplos do que os observados em outras epidemias, o fato é que a desigualdade de renda e de patrimônio segue sendo um elemento diferencial quando se trata de prevenção e mesmo de cura em alguns casos. Além disso, requisitos como o acesso à vacina e a sistemas de saúde eficientes não têm sido exatamente uma regra de universalização no combate à pandemia.
 
Um aspecto significativo, que também foi revelado ao longo do primeiro ano que a Humanidade conviveu com a covid-19, diz respeito às consequências econômicas que o processo provocou no conjunto das sociedades. A necessidade de adoção de medidas de isolamento e a própria dinâmica da doença implicaram a redução no ritmo das atividades da economia em escala global. Via de regra, houve elevação dos índices de desemprego e aumento da informalidade nas relações de trabalho, com a diminuição na massa salarial. A recessão da atividade econômica foi a regra na maioria dos países.
 
Porém, a forma como tal fenômeno foi sentido e absorvido pelas classes sociais variou bastante. As desigualdades não apenas permaneceram em patamar bastante elevado, mas também aumentaram ao longo de 2020. Foi divulgada recentemente uma pesquisa de uma instituição que pode ser considerada bastante “insuspeita” para tratar do tema. Refiro-me ao banco multinacional Credit Suisse, que realiza periodicamente um estudo chamado de “Relatório da Riqueza Global”. Pois a leitura da edição mais atualizada para o ano passado nos revela a forma cruel como a pandemia aprofundou as desigualdades já existentes antes de sua ocorrência.
 
Segundo o documento do banco, a riqueza global teria aumentado em 7,4% entre 2019 e 2020, ano justamente em que a economia global sofreu um grande baque em função da pandemia. A informação contrasta com a realidade da economia dos países e das pessoas. Segundo avaliação divulgada pelo Banco Mundial, a economia mundial teve uma redução de 4,3% em seu nível de atividade. Isso significa que o referido crescimento da riqueza provavelmente foi apropriado de forma desigual entre regiões e classes sociais.
 
O gráfico abaixo é o retrato mais evidente de como esse processo de concentração de renda e riqueza ocorreu em tempos de pandemia. Independentemente do rigor metodológico adotado na obtenção e manipulação dos dados, o fato é que a imagem é cristalina ao apontar que 56% das pessoas estão na base da pirâmide, com patrimônio inferior a 10 mil dólares. E mesmo assim, essa parcela da população reteve apenas o equivalente a 1,3% da riqueza global. Já no extremo oposto, podemos observar o que se passa no topo da pirâmide, com os que têm um patrimônio mais substancioso, superior a 1 milhão de dólares. E os dados nos informam que apenas 1,1% do total dos indivíduos abocanham o equivalente a 45,8% da riqueza do mundo.
 
Gráfico 1 – Apropriação de riqueza segundo o nível do patrimônio dos indivíduos

 

(Foto: grafico1PK)

Fonte: Credit Suisse.
Já a tabela abaixo nos informa que o crescimento ocorrido na riqueza global foi também apropriado de forma desigual entre regiões e países no ano da pandemia. Os US$ 28,7 bilhões gerados no período proporcionaram um crescimento de 10% da riqueza nos Estados Unidos e na Europa, além de um crescimento por volta de 6% na China e na região da Ásia do Pacífico. A África permaneceu praticamente estável, enquanto a Índia teve uma queda de 4,4% e a América Latina levou um tombo de 10,1%.
 
Tabela 1 – Distribuição do crescimento da riqueza global em 2020

 

(Foto: Tabela1PK)

Fonte: Credit Suisse

A conclusão que se pode extrair das informações do relatório vão no sentido contrário de uma suposta neutralidade da atuação da covid-19. Não apenas a pandemia terminou por proteger mais os países e as classes sociais que se revelaram em melhores condições de enfrentar a doença e seus efeitos, mas também permitiu que se tornassem ainda mais agudas as desigualdades anteriormente existentes. Na comparação com o ano anterior, por exemplo, a parcela da riqueza da base da pirâmide foi reduzida de 1,4% para 1,3% e o topo teve seu quinhão aumentado de 43,4% para 45,8%.

*Paulo Kliass é Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

Artigo extraído de OutrasPalavras