Em resumo: decifrar a China é o maior desafio intelectual posto aos intelectuais marxistas na atualidade. Modestamente tenho tentado contribuir com este debate. Na verdade, não quero inventar a roda. Longe disso. Sempre deixo claro que ao menos dois pontos são de fundamental a importância nesta tarefa: 1) o materialismo histórico é o fio condutor que deverá nos entregar esse novo cabedal teórico e 2) devemos assumir no ocidente que o “socialismo com características chinesas” não é algo solto no ar, oco ou sem sentido. Ao contrário, trata-se de um sistema totalizante que materializa 100 anos de soluções a problemas práticos historicamente colocados diante do movimento comunista chinês. Teoria e história andam juntas. O pensamento é produto da matéria, não o seu contrário.
 
O desafio do momento encontra-se na forma como as ciências sociais devem enfrentar uma realidade que muda constantemente. Algumas questões. Qual, por exemplo, o impacto à teoria econômica da entrada de mais 400 milhões de pessoas na chamada classe média nos próximos cinco anos? Estou convencido que as teorias convencionais ortodoxas e heterodoxas perderam capacidade de “tomar o todo pela parte”. Chegou o momento em que o arcabouço atual somente consegue “tomar a parte pelo todo”.
 
Esse movimento de perda de validação teórica à compreensão de fenômenos dinâmicos é quase natural às teorias que surgem para espelhar realidades de modos de produção específicos. Vide as teorias estruturalistas (sejam latino-americana ou as de inspiração anglo-saxã), de “Estado Desenvolvimentista” e a atual moda em torno do chamado “Estado Empreendedor” (algo que diz tudo e nada a mesmo tempo). Nenhuma dessas contribuições são capazes de nos entregar o “universal no paticular” quando o assunto é a China. Incluo neste rol muitas teorias de inspiração histórica e marxista.
 
E o marxismo? A mim o marxismo tem um caráter universal que não pode ser encontrada nas teorias de Keynes, Schumpeter e outros gênios da economia. Daí a China, e o movimento que emana de seu processo de desenvolvimento, serem suficientes não somente para desafiar os marxistas a saírem da zona do conforto do que Hegel chamava de “ardil do conceito”, mas também de construir uma compreensão sobre o socialismo menos idealista e positivista. O rol de conceitos construídos pelo marxismo o coloca no mesmo patamar de gigantes da filosofia clássica grega e Hegel. Mas também não é um dogma. Nosso ponto de partida para uma compreensão mais acurada da China e seu atual estágio é um conceito marxista que serve de “autoimunizante” diante da sedução de modelos, esquemas prontos e os check-lists positivistas que prevalecem no marxismo acadêmico ocidental.
 
O conceito de formação econômico-social por seu caráter de totalidade é a arma mais eficiente à busca do “universal no particular” que as grandes teorias do desenvolvimento econômico são incapazes de captar dado o caráter generalizante de TODAS essas teorias. Uma teoria da presente formação econômico-social chinesa ou uma Economia Política do “socialismo com características chinesas” nos levará a uma viagem histórica nos pontos fundamentais que apontam que em 1978 surge na China uma nova classe de formações econômico-sociais.
 
A descoberta, de nossa parte, de algumas “leis gerais do movimento” desta nova formação econômico-social nos condicionou a perceber um outro fenômeno histórico que tem se conformado no principal desafio teórico imposto aos marxistas na atualidade. A pergunta que estamos a nos responder em nossa agenda de pesquisa não é nada simples: quais as novas regularidades econômicas emergentes da elevação da capacidade humana em dominar a natureza na China? Qual o papel das inovações tecnológicas disruptivas neste processo que, necessariamente, poderá desembocar no surgimento de um modo de produção de nível superior no país?
 
Os profundos impactos distributivos que as recentes políticas de regulação das bigtechs e fintechs poderão incorrer não seria uma manifestação de mudanças institucionais que buscam colocar nos eixos as relações de produção com o nível de desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas na China?
 
A Nova Economia do Projetamento (1) é apenas um passo inicial à compreensão deste todo complexo. Estamos engatinhando. Mas certos de estarmos abrindo um caminho particular de interpretação que intenta escapar da crise profunda que atinge as ciências sociais em geral e o marxismo em particular no ocidente. Por nossas bandas, não se superou as barreiras impostas pela maior filosofia que a burguesia pode criar, o positivismo. Não se chegou em Hegel no ocidente, com raras exceções na periferia capitalista. Daí a naturalização de definições vulgares do sistema chinês: os pleonasmos do “capitalismo de Estado” e mais recentemente “capitalismo de vigilância” tem ampla circulação em meios ditos como “marxistas”. A crise de pensamento é profunda.
 
(1) Sobre a “Nova Economia do Projetamento” ler:
 
JABBOUR, E.; DANTAS, A. “Ignacio Rangel na China e a “’Nova Economia do Projetamento’”. Economia e Sociedade, v. 31, n. 2, p. 287–310, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ecos/a/jtzRs3jDcK5gGBzSqcrWzMn/
 
JABBOUR, E.; DANTAS, A.; ESPÍNDOLA, C.; VELOZZO, J “A (Nova) Economia do Projetamento: o conceito e suas determinações na China de hoje. Geosul. v. 35, n. 77, p. 17-48, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/geosul/article/view/77609
 
JABBOUR, E.; DANTAS, A.; ESPÍNDOLA, C. “Considerações iniciais sobre a ‘Nova Economia do Projetamento’. Geosul. v. 35, n. 75, p. 17-42, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/geosul/article/view/1982-5153.2020v35n75p17
 
Elias Jabbour, professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE) e em Relações Internacionais (PPGRI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)