A deterioração física das instalações públicas — incluindo portos, ferrovias, estradas, ruas e avenidas e toda a infra-estrutura do país — é um fenômeno típico de opção econômica que os setores dominantes da sociedade brasileira adotaram no final dos anos 1980. Nos anos 1990, os serviços públicos desabaram com os ataques à Constituição de 1988, provocados pelas “reformas” neoliberais — com destaque, no caso em análise, para a lei de concessões. E o setor de transportes se viu diante de uma overdose de políticas privatizantes, inédita na história brasileira. Com a exceção previsível dos serviços financeiros, é a parte da economia que mais atraiu interessados na privatização.

As cidades brasileiras sempre enfrentaram problemas com o transporte urbano. O planejamento e o uso racional dos espaços públicos são tratados com descaso. Mas há 60 anos só se viajava sentado nos ônibus. As tarifas não eram tão escorchantes, não havia filas imensas, falta de condução e má conservação dos veículos.

Farra com as tarifas

A explosão demográfica nos grandes centros, em decorrência da mecanização intensificada das lavouras desde meados dos anos 1970, e a opção de deslocamento por automóvel a partir da década de 1950 criaram as condições para a crise que explodiu nos anos 1990. Segundo o IBGE, em 1970 cerca de 53% dos brasileiros viviam no campo. O censo de 1993 já indicava que essa população havia caído para 22%. Os arredores das grandes e médias cidades, onde até os anos 1970 existiam lavouras e mato, hoje abrigam cinturões de habitações populares semi-acabadas e pessimamente servidas de infra-estrutura.

O modelo de Estado esculpido a partir dos anos 1940 garantiu o mínimo de controle e distribuição de recursos para o transporte urbano — havia investimentos públicos no setor. Nos anos 1990 chegaram os demolidores da “Era Vargas”, com picaretas nas mãos e discurso demagógico neoliberal na ponta da língua, e o “mercado” assumiu status de um Deus. O Estado passou a ser o Satanás da economia. Sob a falsa bandeira de que a União, os Estados e os municípios haviam perdido a capacidade de investir, o setor foi abandonado à própria sorte.

Os principais trechos das estradas, cuja deterioração nunca recebera atenção efetiva do governo, passaram para mãos privadas e as concessionárias, livres de qualquer amarra estatal, promoveram uma farra com as tarifas, o que resultou em grandes greves dos caminhoneiros. As ferrovias privatizadas abandonaram os trechos “antieconômicos” e o transporte público urbano mergulhou no caos. As fontes de financiamento do setor privado se mostraram uma fraude. Em São Paulo, por exemplo, a extinção da Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC) resultou num modelo de concessão escandaloso: as empresas de ônibus recebem subvenções da prefeitura para prestar um serviço péssimo e caro. O Estado cortou a subvenção para o transporte metro-ferroviário, resultando em tarifas absurdamente elevadas e na queda da qualidade dos serviços.

Três horas por dia no trânsito

A deterioração macroeconômica do país causou outro efeito nefasto para o transporte público: o surgimento do transporte informal em grande escala. Alimentado pela degradação do setor e pelo desemprego monstruoso, esse fenômeno é altamente negativo para a sociedade. As estatísticas mostram alto índice de acidentes. Ao contrário das aparências, ele tira empregos. Para cada veículo informal, gera-se, em média, um emprego em tempo integral — o do motorista, às vezes auxiliado por outro trabalhador parcial ou esporádico. A forte concorrência com os ônibus gera redução da demanda pelo transporte formal, as empresas diminuem a quantidade de veículos em circulação e demitem funcionários. O trânsito recebe uma quantidade extra de veículos, os congestionamentos aumentam e, no final, todos saem perdendo.

Em São Paulo, o passageiro de ônibus gasta, em média, três horas por dia no trânsito. Ocorrem oito mortes por dia em acidentes. Por fim, fora dos horários de pico o transporte informal praticamente para e a população fica sem opção devido à pequena frota de ônibus em circulação — que se arrastam em um trânsito congestionado e transportam cada vez mais problemas. O preço elevado das tarifas, a multiplicação do número de assaltos aos veículos e o tempo perdido nas viagens criam um círculo vicioso, no qual aparentemente não há saída, com um efeito gerando outros.

O problema do transporte na capital tem quase a mesma idade da cidade. São Paulo se expandiu entre dois rios, o Tietê e o Pinheiros, em torno dos quais se construíram as grandes vias. A predominância do transporte rodoviário, no ciclo industrial fortemente ligado aos interesses das companhias automobilísticas estrangeiras, impôs restrições à mobilidade dos ônibus. Estudos mais aprofundados visando um sistema de rede de transporte na cidade só surgiram em 1939. Em 1947 a Prefeitura criou a CMTC, empresa pública responsável pelo sistema, incluindo o setor operacional.

Eficiente sistema de metrô

Hoje, um eficiente sistema de metrô é absolutamente indispensável para as grandes cidades. Londres foi a primeira metrópole a contar com uma linha subterrânea, em 1863, ainda utilizando locomotiva a vapor. A tração elétrica só foi adotada 17 anos depois. Paris inaugurou seu metrô em 1900, Boston em 1901, Filadélfia em 1907, Hamburgo em 1912 e Buenos Aires em 1913. A tecnologia dos metrôs evoluiu muito desde então. Nas últimas décadas, essa evolução foi acelerada principalmente devido aos progressos da microeletrônica e da informática, que revolucionaram os conceitos de sinalização ferroviária e de controle operacional. São Paulo e San Francisco (EUA) foram as cidades pioneiras, nos anos 1970, dos metrôs modernos pesados e de composições maiores, operadas automaticamente.

A crise do petróleo nos anos 1970 desferiu um golpe na expansão dos automóveis e forçou praticamente todas as grandes cidades a iniciar a construção de metrôs. As redes antigas se renovaram e as velhas estações escuras do metrô de Paris ganharam luzes e cores. Surgiram metrôs modernos em São Paulo, Rio de Janeiro, Hong Kong, Caracas, Washington, Atlanta, Praga e Bucareste. O metrô de São Paulo trouxe para o Brasil o que havia de mais desenvolvido no mundo em termos de material rodante. Alguns técnicos da empresa dizem que tudo deu certo na empresa, exceto sua expansão.

A explicação para essa estagnação é a forma como os recursos públicos são administrados no Brasil. É preciso recorrer aos dados da indústria automobilística para entender o pouco interesse dispensado pelas autoridades à expansão do metrô: nos últimos 20 anos, a frota de carros cresceu 260% e a oferta de transporte público, apenas 25%.

Casos perdidos, segundo a Capal 

Segundo o economista britânico Ian Thompson, consultor de transporte da Cepal, órgão da ONU responsável por estudos econômicos para a América Latina e o Caribe, São Paulo e Rio de Janeiro, em termos de melhorias, são casos perdidos. A explicação repousa na forma como a questão automobilística tem sido tratada no Brasil. No auge do programa do carro “popular”, em 1993, a Anfavea, a associação que reúne as montadoras de veículos, prognosticou que a barreira da produção de 3 milhões de automóveis por ano seria ultrapassada em 2000. Naquele ano os impostos sobre o preço de fábrica eram de 17%, contra 89% no governo Sarney. Desde então, essa tendência tem se mantido.

A política do carro “popular”, basicamente centrada na redução drástica de impostos, e a abertura comercial são os fatores mais importantes para compreender o avanço estrondoso da indústria automobilística no Brasil. Mas há outros, igualmente relacionados com a redução de custos na produção. O aumento da produtividade do trabalho fez com que o tempo de montagem de um veículo caísse de 48 para 33 horas, em média. A adoção de novos processos de trabalho, as técnicas de produção enxuta, as subcontratações de suprimentos e o aumento acelerado da automação respondem por uma produtividade cujos índices não encontram paralelo na história mundial.

Atividade industrial mais importante

Quando a Fiat iniciou, nos anos 1980, a implantação de sua planta de cerca de 70 fornecedores em Betim (MG), introduzindo uma prática de just-in-time mais eficiente do que as das outras montadoras, iniciava-se uma revolução no setor. Associada às vantagens concedidas pelo governo, basicamente em termos de carga tributária, essa revolução gerou mudanças profundas.

No leito dessas mudanças, a geografia da produção automobilística mudou radicalmente. O início da produção de veículos ocorreu nos anos 1950 na região do ABC paulista. O grosso dos carros que circulava no país era formado por milhares de Fuscas que saíam da fábrica da Via Anchieta, em São Bernardo do Campo. Ali perto, também em São Bernardo do Campo, a Ford, a Mercedes e a Scania produziam veículos que engrossavam a frota brasileira.

Na cidade vizinha, São Caetano, a General Motors também despejava uma quantidade razoável de carros nas ruas. O segundo pólo foi criado no Vale do Paraíba, com a instalação, na década de 1970, da Volkswagen em Taubaté e da General Motors em São José dos Campos. O terceiro pólo consolidou-se nos anos 1980 em Betim, Minas Gerais, com a expansão da Fiat. Hoje, já existem mais cinco novos polos: Curitiba, Juiz de Fora/Resende, Campinas, Porto Alegre e Salvador. Atualmente, a indústria automobilística é a atividade industrial mais importante do Brasil. Sua posição central nas formulações da política industrial do governo tem impulsionado negócios bilionários em outros setores da economia.

Máquina da idade média

Fumaça no ar, barulho de buzinas e escapamentos, cansaço e irritação no trânsito, contudo, deveriam servir de alerta sobre o futuro. O crescimento do número de carros nas ruas, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), responde pelo nível de monóxido de carbono superior ao limite considerado saudável em mais da metade das grandes cidades do mundo. Durante a vida útil de um automóvel, ele despeja uma média de 35 toneladas de carbono na atmosfera.

O papel do automóvel, um meio de transporte incorporado à cultura das pessoas em todo o mundo, precisa ser redefinido, se quisermos enfrentar efetivamente o problema do transporte público. O ex-prefeito de São Paulo, Figueiredo Ferraz, que inaugurou o metrô da cidade em 1972, certa vez comparou o carro a uma droga. “É um consumidor terrível de espaço, um devorador de energia, um agente poluidor, predador e perigoso”, disse. “O automóvel assemelha-se a uma máquina da idade média que mobiliza, quando se locomove, em média, um peso morto dez vezes maior do que a carga útil transportada”. Ferraz fez uma comparação que merece reflexão: “O carro, no confronto com o ônibus e o metrô, para uma mesma faixa de tráfego, transporta, respectivamente, dez e vinte vezes menos.”

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Editor do Portal Grabois