Entre as reivindicações estão remuneração maior por serviço, licença remunerada em caso de acidentes e fim de retaliações promovidas pelas plataformas contra, segundo eles, entregadores que se negam a fazer determinadas corridas.

“Eles (…) nos obrigam a trabalhar na hora em que eles querem. Quem se nega a fazer o serviço porque não gosta de pilotar no meio da chuva corre o risco de ficar o dia inteiro bloqueado”, afirmou ao jornal O Estado de S. Paulo Diógenes Souza, um dos líderes do movimento na capital paulista.

Outra reclamação é a falta de cuidados das empresas em relação à covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. Segundo uma pesquisa de junho de 2020 sobre condições de trabalho durante a pandemia, 57,7% dos profissionais disseram não ter recebido nenhum apoio das empresas para reduzir os riscos de infecção na hora do trabalho.

Em divulgação feita no Treta no Trampo, um perfil de Instagram de apoio ao movimento, um mapa mostra pelo menos 13 pontos espalhados pela Grande São Paulo onde participantes devem se concentrar antes de sair em protesto.

Na mesma rede social, o iFood publicou uma mensagem em que afirma estar “ao lado dos entregadores”. A empresa disse ter investido mais de R$ 25 milhões em iniciativas para oferecer mais proteção e segurança aos trabalhadores. Em seu site, afirma ainda ter distribuído mais de 800 mil itens de proteção, incluindo máscaras e álcool em gel.

A mobilização de entregadores de aplicativos em associações e atos públicos vem ganhando força no Brasil, especialmente após a pandemia do novo coronavírus ter elevado seu trabalho à condição de serviço essencial. Em abril, foi promovido um buzinaço em São Paulo. No início de junho, um protesto bloqueou pistas da avenida Paulista com as mochilas de entrega dispostas no asfalto. Para a paralisação desta quarta-feira (1º), os organizadores pedem apoio dos clientes para que haja boicote dos apps no dia.

O avanço da precarização

Os entregadores não mantêm qualquer vínculo trabalhista com as empresas, que afirmam serem apenas mediadoras entre consumidores e prestadores de serviço. Os trabalhadores ganham por serviço e não têm direito a cobertura de saúde ou férias.

Com a popularização desse modelo, que teve no aplicativo de transporte Uber um de seus pioneiros, criou-se uma nova categoria de trabalhadores autônomos nas grandes cidades do mundo.

Inicialmente, esse tipo de arranjo era retratado como uma forma dinâmica e desburocratizada de consumo e trabalho, chamada de economia compartilhada. O otimismo foi sendo substituído por uma visão mais crítica, resumida no termo uberização.

A socióloga Ludmila Costhek Abilio falou ao Nexo (que reproduzimos aqui) sobre a penetração da uberização no Brasil, as características de seus trabalhadores e as tentativas de formação de movimentos reivindicatórios. Ela é pesquisadora do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e estuda o tema desde 2012.

O que mudou no perfil dos entregadores ao longo dos anos?
Ludmila Costhek Abilio:
Pesquiso as condições de trabalho dos motofretistas desde 2012. Até aquele ano, você tinha uma série de transformações das condições do trabalho, iniciadas nos anos 1990 com as empresas terceirizadas de delivery. Antes disso, o trabalhador era diretamente contratado pela empresa. Motoboys mais antigos contam que antes eles não tinham nem a moto. Com o processo global de terceirização no trabalho, vão surgindo as empresas de entrega, onde começa a se alterar mais profundamente o trabalho de motoboy. Em São Paulo, a atividade principal delas era a entrega de documentos e objetos.

Na uberização, que se inicia com a Loggi, você não tem um contrato de trabalho e sim um contrato de adesão, onde não há seleção alguma. O iFood divulgou que tem 170 mil pessoas cadastradas trabalhando para ela. Essas empresas vão promover um processo de informalização em que são transferidos para o trabalhador todos os riscos e custos da atividade. E, ao mesmo tempo, toda a responsabilidade sobre como fazer [o trabalho], onde fazer e o horário.

Há também monopolização. Em São Paulo, as empresas terceirizadas quebraram pois não conseguem concorrer com essa informalização que vai rebaixando o valor do trabalhador. As empresas vão monopolizando o setor e subordinando outros elos dessa cadeia, então hoje uma série de restaurantes está subordinada às regras e à forma como o iFood funciona, e muitas estão até tentando se livrar disso. É algo que inicialmente se apresenta de forma muito vantajosa para o trabalhador porque, de fato, em 2014, eram poucos trabalhadores uberizados, então quem se uberizava ganhava muito. Só que essa multidão de trabalhadores vai aumentando, e conforme isso acontece o valor da hora de trabalho vai sendo rebaixada. Como o trabalhador não tem mais a opção de voltar para uma empresa de entregas terceirizada, você dominou totalmente as regras do jogo desse mercado.

Temos que olhar então para algo muito novo que é o gerenciamento algorítmico do trabalho, onde o entregador trabalha o tempo inteiro sem saber quais são de fato as regras ou os critérios que estão organizando o trabalho dele. O motoboy passa 12 horas do dia dele disponível, e ele está lá logado, buscando a corrida. Se você conversar com motoboy ele vai te falar do adoecimento físico e mental porque passa o dia estressado, cada vez vendo que tem de trabalhar mais para ganhar menos.

As empresas da uberização no setor de entregas criaram uma profissão que não existia, que é a figura do bike boy. Você pega uma ocupação que já era precarizada, arriscada e difícil e transforma ela numa precarização maior ainda. O bike boy é um trabalhador que não tem nem capital para ter o que o motoboy tem, ele conta com uma bicicleta que é mais barata, e que pode até ser alugada, e com sua força física. Essa profissão já nasce tipicamente negra, juvenil e periférica, já tem pesquisas que constataram isso porque está na base da precariedade, assim como o jovem negro e periférico está na base da pirâmide do mundo do trabalho.

O trabalhador de plataforma é frequentemente definido como “empreendedor”. Como avalia essa definição?
Em meu primeiro artigo sobre uberização, do início de 2017, eu mesmo chamei esse trabalhador de um nano empreendedor de si próprio. Com o passar do tempo, fui dando conta de que temos de nos desvencilhar da ideia de empreendedorismo.

O que qualifica essa pessoa hoje como empreendedora é o fato dela não ter jornada de trabalho e local de trabalho definidos e correr riscos. Historicamente, a ideia de empreendedorismo é associada com o empresário capitalista, que vai inovar, que vai entrar com o capital, que vai correr riscos por essa inovação. Isso é transferido para a figura do trabalhador em um processo de décadas, não só de eliminação de direitos e de proteções do trabalho, mas de transferência de riscos e de parte do gerenciamento do trabalho para o próprio trabalhador. Mas ele não está empreendendo nada, ele não tem capital algum, apenas os instrumentos de trabalho. Ele está inteiramente subordinado às regras da empresa. Eu chamo isso de autogerenciamento subordinado.

As empresas rejeitam a ideia de vínculo profissional pois alegam que são apenas plataformas tecnológicas que facilitam o contato entre o cliente e o prestador. Como vê esse posicionamento?
As empresas tentam se apresentar cada vez mais não como contratantes, mas como mediadoras. A qualquer processo de tentar estabelecer vínculo empregatício elas vão dizer “nossa atividade é prover os meios tecnológicos para que oferta e procura se encontrem, então somos mediadoras, não somos do transporte, da logística, somos do ramo da tecnologia”. Isso vai isentá-las de qualquer responsabilidade sobre esses trabalhadores.

Esse discurso é muito poderoso, pois quando você diz que media uma oferta e procura que existem, tudo parece neutro. É o fundamento do pensamento liberal. Você tem o encontro entre oferta e procura e quanto menos você regulá-lo, mais naturalmente ele acontece e mais tende ao equilíbrio. Então, tudo que acontecer com esse trabalhador é fruto das dinâmicas naturais do mercado. É o caso do preço dinâmico, que varia por causa da variação entre oferta e procura. A taxa de entrega varia porque teve chuva. Então nesse momento naturalmente seu trabalho vale mais do que num dia de sol. Mas sabemos que na verdade essas empresas detêm o poder de definir o valor do trabalho, a distribuição do trabalho, a variação do valor e, consequentemente, determinar o tempo de trabalho necessário para sobreviver.

Como avalia as tentativas de organização e mobilização desses trabalhadores? Elas têm condições de prosperar nesse modelo descentralizado e precarizado?
A pandemia evidenciou que os entregadores são trabalhadores essenciais para a sociedade. São eles que garantem o direito, mas que se tornou um privilégio, de se isolar. Eles estão na linha de frente da pandemia. Há nesse momento uma consciência da importância desse trabalho, uma consciência política da categoria, um reconhecimento da sociedade de que eles são centrais.

É legítimo e compreensível ver isso se formando agora porque talvez se intensificou o risco de uma profissão arriscada, se intensificaram as formas de exploração, ao mesmo tempo em que essa categoria sabe mais do que nunca que é essencial para a sociedade. É um momento em que ela realmente tem de pautar suas demandas, exigindo melhores condições pelo seu trabalho.

A história mostra que toda nova forma de dominação traz consigo novas formas de resistência. Então, a forma de organização desses trabalhadores, nesse formato de multidão, que opera em rede, da comunicação descentralizada, também será a forma como eles resistirão. Ouvimos falar do Paulo Gallo [líder dos Entregadores Antifascistas], mas tem várias outras iniciativas de organização que estão se encontrando. Nem conseguimos mapear isso ainda direito, é um novo tipo de organização. Se eles se reconhecem como multidão e assumem sua potencialidade, têm muitas chances de conseguir melhores condições.

Entrevista publicada no Nexo Jornal