Na quinta (29), ocorreu a live: Eleições e propostas de Segurança Pública contra a violência urbana, em que o professor Ignacio Cano, direto da África do Sul, discutiu o tema a partir das propostas que vêm sendo feitas pelos(as) candidaturas à Prefeitura das capitais brasileiras.

Cano é doutor em Sociologia pela Universidade Complutense de Madrid com três pós-doutorados em universidades da Inglaterra e dos EUA. Atualmente é Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e membro fundador do Laboratório de Análise da Violência da mesma universidade (LAV/UERJ).

Tem autoria e participação em dezenas de livros sobre o tema da violência urbana, crime organizado, letalidade policial e violência envolvendo adolescência, com destaque para Determinantes do uso da força policial no Rio de Janeiro (ed UFRJ), No Sapatinho. A evolução das milícias no Rio de Janeiro (Fundação Heinrich Böll) e Guia de Referência para Ouvidorias de Polícia (Secretaria Especial de Direitos Humanos).

O tema da segurança pública nunca foi tão central na política como na eleição de 2018. Naquele ano, Bolsonaro fez o brasileiro acreditar que, em 2019, cada um teria, em suas casas, uma pistola e um bom cartucho de munição para se defender do invasor. Acreditar que, antes do crime chegar aos tribunais, a polícia já executaria a sentença no flagrante, livrando sumariamente a sociedade dos bandidos e da morosidade judicial. Assim como acreditar que a lei seria endurecida para a bandidagem, inclusive adolescente, assim como não sobraria um político corrupto fora da cadeia para contar história.

Estamos em outra eleição, e o tema está de volta, até porque aquelas promessas, quando se cumprem, não atenuam a violência urbana e, talvez, até a acentuem.

Mesmo sabendo que a Prefeitura pode pouco nesse tema, frases como “bandido bom é bandido morto”, tolerância zero contra drogado e vagabundo, direitos humanos para humanos direitos, aparecem na boca da militância das redes sociais, e até de alguns candidatos mais ousados.

Com sua experiência, o professor Ignácio reflete sobre os erros da esquerda em sua dificuldade de tematizar a repressão policial e as soluções emergenciais para a insegurança da população durante eleições e governos. Para ele, os setores progressistas precisam enfrentar o tema e dar respostas claras e ousadas para uma população vulnerável a discursos extremistas que não resolvem o problema, mas causam uma sensação de vingança numa população exaurida pelo clima de ódio imposto pelos setores mais reacionários da mídia e da política.

Leia a edição da entrevista e assista a íntegra:

Existe uma diferença de tom nas propostas de candidatos conservadores e progressistas. Enquanto uns parecem focar no empoderamento das polícias, com viés de militarizar cada vez mais as guardas civis metropolitanas, os outros tangenciam o tema falando muito em acentuar a defesa de direitos humanos de populações vulneráveis pela mesma polícia e propostas de enfrentamento à pobreza como uma fórmula estruturante do combate à violência. Eu achava que isso fosse uma caricatura de esquerda e direita, mas ao consultar os programas de governo comprovei que pode ser até pior que isso. Por que o senhor acha que existe esse descompasso tão grande no enfrentamento do tema nessa eleição?

Essa eleição municipal não tem o foco na segurança pública, no sentido da repressão das polícias que não fazem parte do mandato municipal. Porém, o tema da segurança é muito presente na política brasileira. Estamos num momento histórico, não só no Brasil, mas em vários países do mundo, do ressurgimento da extrema direita e de propostas autoritárias e legais.

Por exemplo, tínhamos no Rio de Janeiro um governador que defendia abertamente a execução dos criminosos. Não existe no Brasil a pena de morte, mas o que o governador estava fazendo era cometer um crime de apologia do delito. E o Ministério Público do estado não fazia nenhum movimento de tentar processar o governador por esse crime que ele estava cometendo.

Então, o momento histórico é de muita fragilidade da democracia, por um lado, e dos direitos humanos e de propostas mais respeitadoras dos direitos, em geral. Isso significa que isso vai se tornar um mote inclusive na campanha municipal. Já na eleição passada, vários governadores começaram adotar propostas nesse sentido. Se não diziam, literalmente, “bandido bom, é bandido morto”, mas eram propostas de que a polícia tinha que agir mais, matar mais. E os governadores, principalmente no sudeste, foram eleitos nessa onda e nessa proposta. Esse movimento político da extrema direita vai continuar, pelo menos durante algum tempo, e se fará presente na campanha municipal.

Os municípios têm guarda, não têm polícia, e o mandato que eles têm na repressão dos crimes é muito limitado. O avanço histórico do Brasil não é de agora, é no sentido de armar muitas guardas municipais e torná-las pequenas polícias militares. Quando o mandato constitucional das guardas era exclusivamente de proteção e vigilância do patrimônio, muitas dessas guardas já estavam armadas e exerciam outro tipo de função que veio a ser reconhecido com mudanças legislativas posteriores. Então, a segurança municipal seguiu na linha da militarização e da repressão, e, acho que se perdeu uma grande ocasião, que pode se recuperar a qualquer momento, de que o poder municipal trabalhe mais na prevenção. Acho que a vocação do poder municipal é a prevenção social e situacional e não a repressão que corresponde ao governo do estado. 

Mas o momento histórico não é muito favorável a este tipo de proposta. Não tenho grandes esperanças que as propostas de prevenção avançarão num cenário de surto e fortalecimento da extrema direita, por um lado, de muitas limitações orçamentárias dos poderes públicos em decorrência da crise econômica, que já existia antes, e da pandemia que temos agora. 

Evidentemente as propostas têm que ser discutidas e espero que um dia haja um espaço político e econômico para propor planos municipais de redução da violência letal, planos municipais de proteção da criança e de adolescentes contra a violência, que são muito necessários, mas que no momento atual, infelizmente não são o foco do debate.

Políticas de combate a pobreza só apresentam resultado contra a violência no longo prazo, pois dependem de uma maturação. Como o senhor imagina que a esquerda e os setores mais progressistas possam enfrentar essas propostas de linha dura, que surgem da direita, para dar uma resposta urgente a uma população que está desesperada por segurança?

As propostas de prevenção situacional, baseadas no espaço e no local, têm um impacto mais rápido, mas as propostas de prevenção social têm um impacto a longo prazo e os governos não trabalham com longo prazo. Temos uma pesquisa que mostra que a renda média dos mais pobres de cada município, correlaciona fortemente com a taxa de homicídios desse município, vinte anos depois. Ou seja, as condições em que as crianças nascem hoje, vão fazer com que a violência seja maior, não hoje, nem amanhã, mas dez, vinte anos mais tarde, quando essas crianças chegarem à idade de risco.

Então, a prevenção social é muito necessária. Os países que têm baixo nível de violência não conseguem isso através de uma polícia muito violenta. Nenhum país consegue reduzir a violência a níveis baixos, somente através de uma polícia violenta. Isso é um mito. É preciso uma sociedade coesa, integrada, precisa prevenção social e reduzir a desigualdade. Mas esses processos levam muito tempo e a sociedade tem pressa, porque as pessoas vivem em situação de medo e vulnerabilidade à criminalidade.

Acho que a esquerda, historicamente fracassou em tentar propor uma política de segurança que fosse progressista e ao mesmo tempo capaz de oferecer soluções de curto prazo. A esquerda latino americana, em geral, sempre acreditou que uma vez resolvido o problema da exclusão social, da pobreza e da desigualdade, automaticamente a criminalidade e a violência cessariam. Essa foi a proposta da esquerda brasileira. 

Mas a gente viu que, no Governo Lula, em que houve grandes avanços na redução da pobreza no Nordeste, foi justamente aquela região que disparou em termos de taxa de homicídios. A violência explodiu no Nordeste justamente no momento em que a exclusão social diminuía. A Venezuela é outro bom exemplo, em que, no Governo Chávez houve períodos de redução da pobreza, mas que também foram períodos de expansão da violência e da criminalidade. Então, a crença ingênua de que bastaria investir contra a pobreza e contra a desigualdade para reduzir a violência e a desigualdade deve ser descartada, desde já, porque ela se mostrou ingênua e falsa. 

A esquerda tentou articular alguns projetos nos últimos vintes anos, mas ainda muito tímidos. Por exemplo, a esquerda não gosta de falar em repressão. Mas a repressão é necessária. Tem que ser feita de forma que a lei seja respeitada, de forma não-seletiva, nem discriminatória contra determinados grupos sociais. Mas a repressão é necessária. 

O discurso da esquerda em relação às pessoas que são assaltadas ou atacadas não pode ser somente “vamos investir em escola, saúde e educação, que, daqui a vinte anos, o senhor não se preocupe que não vai ter mais problema”. Não dá pra fazer um discurso desse tipo.

Entretanto, a esquerda faz um discurso muito defensivo, ou seja, de que temos que respeitar a lei e os direitos humanos. É claro que temos que respeitar a lei e os direitos humanos! Isso deve ser central em qualquer proposta, não só progressista, mas civilizada e democrática. Aliás, a identificação entre direitos humanos e esquerda já é uma tragédia, porque deveriam ser defendidos pela direita conservadora e democrática e pelo centro.

Então, essa oposição, por um lado, esquerda e direitos humanos, e, por outro lado, os inimigos dos direitos humanos e da democracia, é uma tragédia. A gente precisa de pessoas conservadoras que defendam os direitos humanos e os direitos sociais. A gente caiu nessa armadilha.

Quando você observa como a polícia se posiciona… A polícia e os policiais são em geral mal pagos, trabalham longas horas, enfrentam situações muito difíceis, alguns enfrentam risco constante. E o que eles ouvem de nós – e estou fazendo autocrítica também -, é que nós defendemos os bandidos. Isso é parte culpa de toda uma publicidade, toda uma campanha de contra-informação, mas também é culpa nossa. Nós não soubemos fazer com que os policiais acreditassem que eles também são vítimas desse sistema que está aí, dessas políticas truculentas. Eles não são beneficiários, eles são vítimas também. 

A gente não conseguiu articular, por exemplo, um discurso de proteção do policial como trabalhador. Quando o policial ouve propostas, como por exemplo, de abolição da polícia militar, ele entende que estas propostas são contra ele. Acabou o emprego dele e querem acabar com a instituição dele. 

A esquerda tem que fazer a autocrítica sobre a incapacidade de formular uma política que seja, evidentemente, de respeito dos direitos humanos e não discriminatória, mas que seja uma política que pretenda ter um impacto a curto prazo nas pessoas que estão, hoje, sofrendo crimes e se sentindo na insegurança. Essas pessoas são alvos fáceis da propaganda que diz: agora, nós vamos agir, vamos matar, vamos arrebentar e resolver seu problema. É claro que, matar e arrebentar, em geral, não vai resolver o problema. Porém, as pessoas desesperadas têm ouvidos muito dispostos a qualquer proposta, por mais radical que seja, para resolver o problema. 

Eu posso dar o exemplo de uma discussão longa que tivemos em relação às UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora]. As UPPs tiveram um impacto inicial muito positivo na redução dos homicídios, reduzindo pela metade a taxa de homicídios nas áreas em que elas entraram, e conseguimos reduzir drasticamente a letalidade policial nos primeiros anos. 

Depois, o projeto foi definhando e, em alguns pontos, a presença da UPP acabava gerando mais violência, em vez de reduzir. Mas, durante muito tempo, nos debates em que a gente participava, alguns setores da esquerda diziam: “Sim, sim, reduziram homicídios e a violência policial, mas a que custo?” Como assim, a que custo? Se conseguimos reduzir homicídios e a violência policial, para as pessoas que moram em comunidades, isso já é um avanço gigantesco. Mas isso era visto como militarização, porque a polícia estava lá. É claro que a polícia militar do Rio de Janeiro e do Brasil inteiro é militarizada. Mas não era a UPP que era militarizada. O Bope é um tanto mais militarizada, assim como toda a política de segurança em geral, e a COE [Centro de Operações Especiais] da Polícia Civil é militarizada. Entretanto, setores da esquerda diziam que “a UPP é militarizada e não podemos apoiar!”

Então, parecia que a alternativa para as comunidades carentes era: ou não fazemos nada e essas pessoas ficam reféns do crime organizado como sempre foram, ou entramos arrebentando, atirando para todo lado e matando gente. Essa falsa dicotomia tem que ser quebrada. 

A UPP, com todos os seus defeitos, suas limitações – e o fato de que não chegou a decolar para além da primeira fase, que era uma fase de ocupação –, e não chegou a produzir uma polícia de proximidade, como pretendia, mas pelo menos era uma tentativa de não cair nessa falsa dicotomia. 

Acho que precisa de muita reflexão e autocrítica por parte da esquerda para começar a formular esse tipo de projeto, que, historicamente, está faltando. Algumas figuras tentaram, mas acho que, em geral, a gente foi omisso por um lado e pouco eficiente por outro, em fazer propostas alternativas que resgatassem o medo das pessoas.

“Vamos fazer uma coisa para diminuir o seu medo”. Uma proposta radical, por um lado, e que poderia funcionar para reduzir insegurança e o medo é: “vamos esquecer as drogas”. Essa guerra às drogas só produz mais violência e corrupção e não resolve esse problema. Em vez de perseguir o pequeno traficante, vamos perseguir o ladrão, a pessoa que ameaça e ataca você. Perseguir o pequeno traficante tira o foco das coisas que realmente provocam insegurança nas populações. Esse é um pequeno exemplo de uma contraproposta minimamente atraente.

Vamos ser sinceros. Dizer para as pessoas: vamos respeitar os direitos… Como as pessoas imaginam que o respeito ao direitos humanos vai conseguir resgatá-las do medo, a violência e da insegurança? As pessoas não vão esperar vinte, quarenta anos.

A esquerda tem um longo caminho para formular propostas críveis e atraentes para se contrapor ao “bandido bom, é bandido morto”. Nós temos a vantagem de que “bandido bom, é bandido morto” não vai funcionar. Os homicídios que estavam caindo antes, nesses últimos governos que foram eleitos em 2018, já começaram a subir, no último semestre. 

A polícia agir com muita violência, em geral, gera mais violência. Porque mais criminosos vão se armar e já sabem que vão ser mortos, portanto, não têm nada a perder e vão atirar com mais facilidade. Isso gera uma dinâmica de extrema violência, fora a corrupção das próprias polícias e o fato de que essas políticas truculentas acabam favorecendo a milícia e os setores corruptos dentro das polícias que usam a violência como uma ferramenta para extrair lucro maior.

Então, nós temos essa vantagem de que essa proposta não vai resolver o problema, mas a gente tem que formular uma alternativa. 

Parece que as pessoas não acreditam que essas medidas truculentas vão resolver, mas se sentem vingadas, por que, pelo menos, a polícia está matando bandido…

Participei de uma pesquisa da Universidade Cândido Mendes, justamente sobre esse bordão: Bandido bom é bandido morto. Nos surpreendemos que a maioria dos cariocas dizia que a polícia não sabia diferenciar trabalhador de bandido, mas ao mesmo tempo, as pessoas defendiam o conceito. Ou seja, as pessoas preferem se colocar em risco, insistindo nessas medidas truculentas, sabendo que podem ser alvo.

Outra surpresa foi o apoio de moradores negros de favelas a isso, na mesma proporção dos moradores brancos do asfalto. As vítimas preferenciais desse tipo de política também a apoia.

Acho seu comentário muito apropriado, porque parte da sociedade não está procurando soluções, está procurando vingança. Estão com um impulso destrutivo contra tudo aquilo que gera medo e insegurança. Isso é mais perigoso ainda, porque você não tem como convencer a pessoa de que uma medida não deu certo e que é preciso tentar outra coisa, porque ela não está atrás de uma solução.

Isso não é válido só para o tema da segurança pública. Muita gente votou em candidato da extrema direita, não porque achasse que eles fossem resolver alguma coisa, mas por cansaço e ira contra a velha esquerda e o petismo, que apoiavam qualquer coisa no lado oposto.

É uma situação de alto risco, que ocorreu na Alemanha dos anos 1920, humilhada pela guerra, com imposições muito duras da derrota da Primeira Guerra Mundial e crise econômica muito forte. Acabaram abraçando o nazismo como uma solução extrema a essa condição de sofrimento coletivo muito grande.

Estamos numa situação semelhante. O risco pode ser muito maior, pois já estamos sofrendo com governos absolutamente autoritários e antidemocráticos, contrários aos direitos humanos, defendendo propostas ilegais: matar pessoas, sem a condição de legítima defesa, a única morte do ponto de vista legal no Brasil, tanto para a polícia quanto para o cidadão comum. Se você planeja uma operação policial para matar pessoas, você já está cometendo um crime de homicídio doloso. Entretanto, este é o projeto político que triunfou no Brasil em 2018. O momento é de extrema cautela e fragilidade.

Fui a um congresso de pesquisadores e ativistas filipinos, no ano passado, e falaram que o governo [Rodrigo] Duterte mata não apenas traficantes, mas usuários de drogas, também. A polícia avisa o viciado e a família que se ele não parar de usar drogas, eles virão matá-lo em duas semanas. E fazem exatamente isso, às vezes com colaboração das lideranças locais. Um quadro terrível de morticínio, a que os setores progressistas da sociedade filipina não conseguem impedir, portanto se propõe a conhecer as vítimas e documentar o que está acontecendo para quando o clima mudar, possa se reduzir a possibilidade de que isso se reproduza.

No Brasil, estamos num momento semelhante, extremamente negativo para os direitos humanos, e precisamos fazer um esforço para que quando isso mudar, possamos documentar o que aconteceu para que nos próximos anos não se repita o mesmo erro que cometemos de embarcar nesses governos autoritários e ilegais que só vão produzir mais mortes.

O dano que esses governos estão fazendo vão ter um impacto de longo prazo. Essas armas que estão sendo distribuídas, cada vez com mais facilidade para a população, não vão ser retiradas. Pesquisas mostram que a vida útil de uma arma é muito grande. Mesmo que se mude a lei e impeça novas pessoas de se armarem, dificilmente vamos tirar uma pequena fração, que seja, dessas armas que estão em circulação. Isso vai aumentar a violência no cotidiano, mortes nos pequenos conflitos, nos ataques em escolas, como já ocorreu no Brasil.

Na medida em que as pessoas estão armadas, o risco de conflitos comuns do cotidiano se transformarem em tragédias é maior, o risco de acidentes e suicídios. É um dano que vai demorar para ser desfeito.

Parece uma política intencional de mudar a cultura do brasileiro, tornando cada vez mais difícil desarmar a população com o tempo, como ocorre nos EUA…

Esse governo brasileiro aspira justamente a mudar a cultura do brasileiro, como acontece nos EUA, de que as pessoas têm que estar armadas. A declaração do presidente de que ele estava armando as pessoas para resistirem às ordens de confinamento, configura um quadro gravíssimo, pois as armas deixam de ser uma forma de proteção pessoal contra ameaças, para se tornar uma forma de articulação política contra projetos políticos e medidas legais adotadas por governos estaduais e municipais contra as quais o presidente não concorda.

Nos EUA, esse quadro já é muito grave, pois existe uma presença das armas muito grande. Milícias de direita como essa que invadiu o parlamento do Michigan para protestar contras as medidas de confinamento. Já há setores de esquerda e do movimento negro que começam a pensar em se armar. Um confronto armado entre esses grupos pode deflagrar toda a raiva que está represada na sociedade americana em geral, contra a violência policial que atinge as populações negras. O risco disso desembocar num conflito civil é muito grande.

É um momento delicado de extrema preocupação esse em que Trump ameaça não aceitar a derrota eleitoral e flerta com milícias de extrema direita. 

Em São Paulo, existe um sensacionalismo constante em relação à região da Luz, onde se concentram usuários de drogas. A ação policial evita o combate ao tráfico de drogas e prioriza violentas ações de dispersão, que espalham os usuários por outros bairros, mas parecem agradar moradores que se sentem vingados vendo gente viciada e miserável sendo espancada e bombardeada. Como o senhor observa a experiência em políticas públicas para resolver esse tipo de problema, já que as chamadas “cracolândias” se espalham pelos centros degradados de muitas grandes cidades.

As políticas de maior sucesso têm sido aquelas de redução de danos desenvolvidas em vários países. Nelas, existem locais onde os usuários de drogas podem consumir isso de forma tranquila, sem ameaça, em local coberto, e podem ter apoio médico se precisarem. É um local de segurança para elas, que evita conflitos nas ruas. Pra isso, é preciso uma política ousada de redução de danos que assuma que os usuários vão usar, e que o objetivo é reduzir o dano para os usuários e reduzir os riscos para a população que mora no entorno.

Além disso, você pode fazer intervenções para reduzir os tamanhos das cracolândias, tentando dispersar mais. Essas dispersões em que a polícia entra arrebentando, dispersa hoje e amanhã se concentra em outro ponto… Isso só serve para que os moradores daquela área sintam que o problema não vai ocorrer só na área dele. 

Agora, se você oferece locais seguros para o consumo de drogas, alguém vai ter que vender, também. Então, é preciso uma certa tolerância com a venda, que é crime. Portanto, são políticas muito ousadas, porque exigem repensar todo o paradigma sobre o tratamento criminal das drogas, mas são as que melhor têm funcionado. Elas conseguem proteger o usuário e deixe de fazer com que esse uso de drogas se torne perigoso ou ameaçador para os moradores do entorno.

Outras medidas que têm dado resultado e sendo produtivas nesse sentido -são as intervenções que têm a ver com a degradação urbana. As cracolândias acabam acontecendo em áreas com um grau de degradação urbana maior. Pode-se fazer investimentos para promoção de atividades diferentes para ocupação pela população dessas áreas, em horários diferentes. Você consegue recuperar essas áreas do uso intensivo por usuários, sobretudo, de crack.

Esta semana se anunciou que as milícias estão ocupando mais espaço de domínio no Rio de Janeiro que as facções criminosas. Como o senhor observa esse quadro?

É difícil definir onde está cada um. Apesar das medidas tomadas, desde 2008, com criação de comissão de inquérito e criação de grupos especiais dentro das polícias e do Ministério Público para combater as milícias, elas têm se estendido. Na atualidade, as milícias vivem um momento muito favorável. Quando o Bolsonaro diz que “agora, mandam os capitães” e a primeira medida do governador Witzel [do Rio de Janeiro] foi acabar com a Secretaria de Segurança Pública, a mensagem que passam e que “não vamos controlar o que a polícia faz. Se a polícia matar, vamos aceitar a versão policial” e, alguns propõem nem sequer investigar.

É uma mensagem de descontrole das forças policiais que é muito cara às milícias e a todos os setores corruptos dentro das polícias. Eles querem justamente que não haja controle.

Por outro lado, temos a sensação, por algumas pesquisas, que o tráfico vem se enfraquecendo, historicamente. A capacidade de gerar lucro ficou limitada ao longo do tempo. Não me surpreende que as milícias estejam vivendo um momento favorável.

Por outro lado, a diferença entre milícia e tráfico vem diminuindo cada vez mais. Pela imprensa, vemos que há cada vez mais milícias que traficam, e, também, há alguns traficantes que começam a cobrar pedágio e taxas, exatamente como as milícias. 

São duas caras da mesma moeda. Nas milícias existem mais agentes do estado na participação direta, mas os dois exercem controle territorial, populacional, as pessoas estão sujeitas a tirania desses grupos. E o estado de direito e a democracia e a Constituição de 1988 não existem nesses lugares. Se você for ameaçado e tiver que sair da sua casa, o máximo que pode fazer é chamar a polícia para ir com você, pegar seus pertences e sair de lá. Não importa se você tem título de propriedade. Então, a gente abandonou um quarto da população a uma situação em que os direitos não existem.

Se o senhor fosse montar um programa de governo para as cidades mais violentas do país, que medidas consideraria obrigatórias?

Na esfera municipal isso é mais difícil, mas eu tentaria proibir o porte de armas em determinados locais para poder fazer fiscalização. Já se fez em outros países com a legislação local. Não se proíbe a posse de armas, mas o porte em determinados locais, reduzindo o risco.

Eu investiria em programas sociais dirigidos especialmente a áreas de alto risco. Por exemplo, programas para egressos para evitar que retornem à violência em determinados locais. Quando você vê onde moram as pessoas que estão na cadeia, elas costumam estar muito concentradas em determinadas áreas. 

Para além de tudo que já foi falado, em termos de melhorias e reordenação urbana, o mais importante seria a focalização de muitas das políticas municipais que já existem, para visar, sobretudo, áreas de alta incidência de violência.

E, a partir disso, traçar planos municipais de redução da violência, de combate ao homicídio. Definir qual a meta a ser estabelecida em acordo com as polícias para reduzir a incidência elevada de algumas áreas.

 

PROPOSTAS CONSERVADORAS, PROGRESSISTAS E ESQUERDISTAS
No Rio de Janeiro, o candidato da Rede, Bandeira de Mello,  fala em qualificar a Guarda Municipal para que “atue como uma verdadeira polícia para a proteção comunitária”. 
Clarissa Garotinho (PROS) propõe armar a Guarda Municipal para “dar mais segurança e tranquilidade à população”, trabalhando em parceria com a PM e fala em convocar os remanescentes do concurso da Guarda de 2012
O prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) fala em capacitar guardas municipais para uso de arma de fogo para “superar os criminosos em sua capacidade de ação”. Criação do programa Recruta Carioca, contratando egressos das forças armadas.
Luiz Lima (PSL) promete Criar grupamentos táticos armados, “como em Londres”.
Em Recife, candidatos como o Coronel Feitosa (PSC) repetem essas propostas. Outros candidato fala em manter um programa permanente de blitz ostensivas. Promover a central de monitoramento remoto por câmaras, drones e rádios comunicadores. Firmar convênios com a Polícia Militar, Bombeiro Militar e Polícia Civil e solicitar o apoio da Força Nacional, para reforçar a segurança da cidade. Criar a Academia da Guarda, promovendo a capacitação contínua dos profissionais.
Em São Paulo, o candidato do Patriota, Arthur do Val, conhecido como Mamãe Falei, quer mudar o nome da GCM para Polícia Municipal. Para o candidato, “a mudança de nome é algo positivo porque você informa para 12 milhões de habitantes que existe uma Polícia Municipal, não uma GCM, que o cara não sabe se é para cuidar de estátua.” 
Pela esquerda, a candidata do PT, Benedita da Silva fala em administração e ordenamento urbano (iluminação, coleta de lixo, transporte público) para reduzir a violência nas localidades. Pretende dar estímulo ao uso dos espaços públicos urbanos e programas de estímulo de reintegração para egressos do sistema prisional.
A Delegada Martha Rocha (PDT) propõe uma nova Guarda Municipal com modernização, aquisição de equipamentos e reforço das ações de inteligência e monitoramento, além da atuação na mediação de conflitos. Também propõe um plano de revitalização e ocupação de espaços públicos, vigilância no entorno das escolas e adoção de protocolos de atendimento às populações LGBTQIA , idosos, negros e mulheres.
Alguns candidatos inclusive usam expressões tabu para a corporação policial como “fortalecimento da ouvidoria” e propostas como Retirada das ruas de agentes envolvidos em violência e corrupção.
Tanto a candidata petista Marília Arraes em Recife, como Jilmar Tatto, em São Paulo, propõem medidas com o seguinte tom:
Implementar políticas sociais para diminuir os efeitos das desigualdades estruturais e melhorar a vida das pessoas, especialmente as mais vulneráveis.
Promover políticas de promoção da igualdade racial
Criar ações de prevenção da violência contra a juventude negra, com programas que reduzam sua mortalidade e encarceramento.
Programas de saúde, moradia e emprego para moradores de rua e usuários de drogas
Programas de Direitos Humanos na polícia para proteger populações vulneráveis
No outro extremo, temos o PCO e o PSTU, sem um programa de ações municipais, mas com um programa ideológico:
Fim das escolas militares;
Dissolução da PM e de “todo aparato repressivo”;
Legalização das drogas;
Organizar a criação dos comitês de autodefesa da população;
Reivindicar a soltura de todos os presos não perigosos e que ainda não tiveram condenação definitiva;
O mais próximo de uma medida municipal é a que diz que a Guarda Metropolitana seria “exclusiva para segurança patrimonial”. “Hoje, ela fica perseguindo ambulante”, diz um deles.