Ruptura Necessária. Esse foi o título de um documento aprovado em dezembro de 2001 no 12° Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), para servir de base ao programa de governo do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Ali estava o pensamento econômico clássico progressista, assim como no texto mais amplo intitulado “Um outro Brasil é possível”, publicado pelo Instituto Cidadania, a então Organização Não Governamental (ONG) de Lula, em meados de 2001. No documento estava uma contraposição ao projeto da “era neoliberal”, o que não impediu o ministro da Fazenda do governo que assumiu em 2003, Antonio Palocci, de utilizar a retórica e os métodos dos governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC) para defender a inevitabilidade da “reforma” da Previdência.

No seu discurso de posse, Palocci disse que o Brasil não podia mais “conviver com uma sociedade com duas classes de trabalhadores”. Segundo ele, era inadiável uma “reforma” que estabelecesse para os funcionários públicos regras de aposentadoria similares aos dos demais trabalhadores. Como se observava facilmente, ele não estava preocupado com os trabalhadores. Muito menos com a clássica definição de cidadania: os direitos civis, políticos e sociais. Direitos civis são todos aqueles em que se baseiam as liberdades individuais, e cuja vigência é (ou deveria ser) assegurada por um Judiciário ágil e democrático. Direitos políticos são aqueles que conferem a cada cidadão uma parcela de influência na formação do poder público. E, finalmente, os direitos sociais: um mínimo de bem-estar econômico, seguridade social e a participação mais plena possível na herança cultural da sociedade.

Ativos e “inativos”

Palocci estava defendendo o rebaixamento desses direitos. A “era neoliberal” iniciou o trabalho, ao fazer alterações profundas nas aposentadorias do setor privado. Na gestão de Palocci, ele impôs essa agenda e o Congresso Nacional, com apoio do Palácio do Planalto, fez uma “reforma” igualmente radical para acabar com “as duas classes de trabalhadoras”. O mantra, o mesmo do atual governo golpista do presidente Michel temer, era de que o governo deveria reconhecer que o Estado gasta muito e mal. No mundo das realidades, essa retórica serve para ludibriar incautos e romper com um dos mais significativos legados da “era Vargas”: a legislação social.

A maioria dos brasileiros deve a esse legado, além da Seguridade Social, os benefícios decorrentes do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), do PIS/Pasep e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins). Contudo, com a chegada dos neoliberais ao poder, o caminho para o acesso a esses benefícios se transformou numa estrada esburacada. Agora, cobram também pedágios, como contribuição dos aposentados que continuam na ativa (no passado cogitaram cobrar até dos que eles chamam de “inativos”) e adoção de duras restrições às concessões de benefícios. Seria a única saída para enfrentar o “déficit” da Previdência Social.

Privilégio rural

Palocci caiu, o governo mudou o tom, mas a pressão da direita não arrefeceu. Já com Guido Mantega ministro da Fazenda, Lula recebeu uma proposta de “especialistas” em defesa da aposentadoria por tempo de contribuição com base na idade mínima de 55 anos (para mulheres) e 60 (para homens). Ou ainda 63 (para elas) e 65 (para eles). Os neoliberais defenderam também mais rigor no fator previdenciário, usado para calcular o benefício da aposentadoria considerando o tempo de contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e a idade de cada um, além da expectativa de vida nacional, estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).

O então ministro da Previdência, Nelson Machado, defendeu a ideia com ressalvas. “Acho que teremos de discutir uma coisa ou outra: se for para eliminar o fator previdenciário, é preciso impor a idade mínima”, disse o ministro, em entrevista ao jornal Agora, de São Paulo. A proposta dos neoliberais defendia, ainda, a desvinculação do aumento do salário mínimo do reajuste de 16 milhões de benefícios regulados pelo mesmo valor do piso nacional, que levaria, em pouco tempo, muitos aposentados a ganhar abaixo do mínimo de recolhimentos à Previdência. Sugeria também mudanças nas aposentadorias rurais por idade, totalmente subsidiadas pelo INSS, concedidas a quem tem 55 anos (mulher) ou 60 (homem). A ideia seria reduzir esse “privilégio” em relação ao trabalhador urbano.

Matar ou morrer

Como se vê, a retórica que corre pelos canais da mídia golpista não é nova. É a ideia do “abismo”, vendida novamente agora para justificar o programa do golpe, do qual os brasileiros só se salvarão se esse Titanic, que seria o coração do déficit público brasileiro, for demolido. Esse mantra foi formulado na “era FHC”. “A grande fragilidade do (Plano) Real foi a ausência de um ajuste fiscal profundo desde o início”, disse o economista Edmar Bacha, então associado ao banco BBA e um dos integrantes do grupo que se reuniu, sob o comando do então presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), André Lara Resende, para estudar o “problema” da Previdência.

Era uma imposição do acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). “Se o governo não conseguir resultados profundos nesse campo, só há duas soluções possíveis: calote na dívida ou volta da inflação, que, aliás, é um tipo de calote”, disse Bacha em tom catastrofista, como é comum na retórica neoliberal. Para ele, tratava-se de um jogo de matar ou morrer. A questão era saber quem mataria e quem morreria. Nos governos Lula, o Brasil se livrou da tutela do FMI e a “reforma” da Previdência saiu da agenda política do país com o fim da “era palocciana”. E ninguém matou, ninguém morreu por isso. Mas bastou os neoliberais voltarem ao poder, com o golpe atual, para que o catastrofismo fiscal entrassem em cena novamente.

Trabalhador acionista

Um primeiro aspecto do problema é puramente conceitual. O que é uma contribuição previdenciária? É um seguro que as pessoas pagam ao longo da vida pelo “risco” de sobreviverem após seu período no mercado de trabalho. O benefício deveria ser calculado levando-se em conta o desenvolvimento econômico do país e o volume de renda gerado durante o período em que o trabalhador esteve na ativa. É um conceito social. Mas, para o pensamento neoliberal, a contribuição previdenciária deve ser um conceito de “mercado”, como se o trabalhador fosse um acionista de uma empresa.

Os neoliberais dizem que a Previdência social deve ser encarada como uma poupança que se acumula durante décadas para ser usufruída nos anos finais da vida do trabalhador. Em tese, o valor presente das contribuições deve ser igual ao valor presente das aposentadorias de cada pessoa. Esse raciocínio dá a medida de como a pregação religiosa dos adoradores do “mercado-deus” se choca com a diferença entre as realidades dos trabalhadores e dos que se apropriam da renda gerada, da riqueza produzida. A diferença, básica e fundamental, é que um produz valor e recebe pouco, e outro não produz valor e recebe muito. Para haver um mínimo de justiça nessa relação trabalho-capital, o Tesouro nacional deve entrar em ação. Esse é ponto. Essa é a essência da equação.