Em entrevista ao jornal Financial Times, publicada no dia 1º de abril de 2006, o então ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse que o governo estava unificando as receitas do Tesouro e da Previdência Social como forma de melhorar a gestão do sistema. Para ele, a Previdência já havia sido “reformada” e caminhava rumo à estabilidade. Mesmo com os efeitos do aumento real do salário mínimo, que os neoliberais insistiam em classificar como parte dos gastos correntes do Estado — ao lado de despesas com viagens, escritórios, computadores etc. —, eram administráveis dentro do regime criado com a “reforma”. Mantega fez as contas e concluiu que o aumento do mínimo custou R$ 5 bilhões. Só o combate às fraudes, com a unificação da fiscalização, geraria um resultado que cobria esse valor.

Outro aspecto relevante dessa equação é o conceito de seguridade social. De propósito, os adeptos da crença neoliberal estabelecem uma enorme confusão entre Previdência e assistência social. Nas contas brasileiras, elas aparecem misturadas, juntamente com a saúde, nos gastos da Seguridade Social. Mas é importante reconhecer que são coisas diferentes. Assistência social é o que se gasta, em geral com os mais pobres, em programas de distribuição de produtos, serviços ou dinheiro, sem nenhum tipo de exigência financeira por parte dos beneficiários. É o caso, por exemplo, da distribuição de cestas básicas.

Previdência e assistência

Em um país pobre como o Brasil, programas desse tipo são importantes e bem-vindos. Mas é preciso não confundi-los com outros tipos de gastos. A Previdência não é o mesmo que assistência, e seus objetivos são diferentes. O conceito clássico de Previdência tem efeito redistributivo. No Brasil, essa arquitetura resultou numa construção altamente sofisticada. O sistema foi montado de forma que as contribuições acumuladas e aposentadorias a serem pagas não tivessem nada que ver umas com as outras. A partir de certa idade, todos têm direito de receber aposentadoria, independente de quanto foi pago ao sistema.

Talvez o maior exemplo de justiça social deste modelo é a ausência de uma idade mínima na hora da aposentadoria. Vale o tempo de serviço. Até a década de 1950, só podia se aposentar quem completasse 50 anos. Em 1960, a data-limite subiu para 55 anos. Em 1962, o limite de idade caiu. Prevaleceu, desde então, outro tipo de cálculo: a aposentadoria por tempo de serviço. Quem trabalhou 35 anos (homem) e 30 (mulher) pode se aposentar, independente da idade — desde a “reforma” da “era FHC”, com o inconveniente do fator previdenciário.

Obscenidade social

Para os neoliberais, isso gerou uma quantidade enorme de aposentadorias “precoces” no país e motivou Fernando Henrique Cardoso (FHC) a chamar de “vagabundo” quem se aposenta por esse sistema antes dos 50 anos de idade. Contudo, não há nada de “precoce” nisso. Imagine o exemplo de alguém que começou a trabalhar aos 15 anos de idade. Aos 50, poderia se aposentar. Já alguém que começou a trabalhar mais tarde, consequentemente se aposentaria mais tarde. Num país de baixos salários e farta força de trabalho, onde há “precocidade”, injustiça ou “vagabundagem” nisso? Só os vagabundos mentais — ou os mal-intencionados — podem advogar essa tese de FHC.

Uma ação destinada a demonstrar a obscenidade social e ética da pregação neoliberal sobre o sistema previdenciário passa por esses aspectos. O tema tem sido intensamente debatido, mas os números contraditórios confundem muita gente. Vale a pena, então, revisitá-los, com base nos dados do Tesouro Nacional. O escândalo está, como se sabe, na definição de “governo central”, composto pelo Tesouro Nacional, Previdência Social e Banco Central (BC), que deve gerar o superávit primário, a “economia” para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública. O problema a ser enfrentado é a ditadura do superávit primário. Os neoliberais fogem desse tema como o diabo da cruz, mistificando os efeitos da revolução demográfica no mundo.

Retenção na fonte

Que a população do mundo está envelhecendo não é novidade nenhuma. E a longevidade nos países pobres, como o Brasil, está se dando num passo mais rápido do que nas nações industrializadas. Em países como a França e a Bélgica foram necessários 100 anos para que o conjunto de pessoas acima de 60 anos dobrasse de 9% para 18% da população. O Brasil, que iniciou no final dos anos 1960 um processo de declínio acelerado de sua taxa de natalidade, deverá chegar ao ano 2026 com 31,8 milhões de pessoas — ou seja, 18% da população — com mais de 60 anos de idade.

Mais tarde, quando os jovens que hoje trabalham se aproximarem da idade de aposentadoria — por volta do ano 2030 —, 80% dos idosos do mundo estarão concentrados nos atuais países pobres. Essa alteração do perfil demográfico no mundo é vista com um nó górdio que precisa ser desatado. O desafio é saber como a parcela cada vez menor de jovens fará para prover, no futuro, o sustento da parcela cada vez maior de idosos da população. Nos sistemas de retenção na fonte, como é o caso do Brasil, sem a ação do Estado à medida que as populações envelhecem a tendência é subirem as taxas de contribuição e diminuírem os benefícios, como propõe a “reforma” neoliberal.

Soluções do Banco Mundial

É evidente que o país terá de discutir formas de financiar a Previdência Social que passarão obrigatoriamente pelo conceito de gastos do Tesouro Nacional. O fato é que os sistemas de amparo financeiro à aposentadoria estão em crise em todo o mundo. Se a situação é crítica na América Latina e no Leste Europeu, os problemas também se avolumam nos países-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico ou Econômico (OCDE). Em alguns países ricos, os gastos públicos com a previdência já ultrapassam 15% do PIB. No caso dos Estados Unidos, as projeções mostram que, pelo sistema atual, não haverá dinheiro para pagar aposentados e pensionistas após 2029.

A divergência aparece quando as soluções são propostas. O assunto tem a ver com o modelo econômico de cada país. Por isso, precisa ser debatido em âmbito nacional, levando-se em conta as particularidades de cada nação, e não como “tendência mundial” — como insistem os neoliberais. Um dos principais proponentes de soluções é o Banco Mundial. A “reforma” que essa instituição propõe assenta-se em três pilares: redistribuição, poupança e seguro.

O primeiro seria uma poupança compulsória, à base de contribuições, gerida pelo Estado. O objetivo é assegurar um rendimento mínimo para os aposentados de baixa renda. O segundo pilar, formado também por contribuições compulsórias dos trabalhadores, seria gerido pela iniciativa privada, mediante planos de poupança individuais e fundos de pensões privados. O valor dos benefícios a serem distribuídos dependeria dos resultados obtidos pelos administradores da poupança. Por fim, seria criada uma poupança voluntária, gerida pelo setor privado, para quem quiser uma proteção adicional quando se aposentar.

Fundos de pensão fechados

Segundo o Banco Mundial, o peso maior deve ser do setor privado, que teria poderes para escolher os melhores investimentos disponíveis no mercado — ações, bens imobiliários ou ativos em moeda estrangeira —, coisa que o sistema estatal não poderia fazer. Essa propaganda tem impulsionado, de forma exponencial, o crescimento da previdência privada no Brasil. A questão é saber se essa é uma saída aceitável para o problema. Motivos para descontentamento com a atual situação da Previdência existem de sobra. Atraídos pela possibilidade de ter um complemento de suas aposentadorias, milhares de pessoas recorreram a bancos ou a empresas de pecúlio. Depois de anos de contribuição, muitas nem sequer viram a cor do dinheiro porque algumas das instituições que o gerenciavam faliram. Há também casos de pessoas que recebem ninharias que nem sequer pagam um cafezinho.

O carro-chefe da previdência complementar no Brasil são os fundos de pensão fechados, responsáveis por 70% do mercado. A pergunta que deve ser feita é: até que ponto o segurado pode ter a garantia de que o contrato entre as partes será cumprido e de que não irá ocorrer algo semelhante ao que aconteceu no passado com os montepios? O fato de empresas de previdência privada serem hoje ligadas em sua maioria a grandes grupos financeiros não dá essa segurança. E mais: os proventos dependerão de fatores imponderáveis, que podem ser resumidos às incertezas quanto a evolução político-econômica do país.