O falecimento de Domenico Losurdo suscitou grande comoção no mundo filosófico e político em muitos países, onde ele era não só apreciado e estudado, mas recebido como um dos filósofos mais orgânicos, sistemáticos e coerentes do século XX e início deste novo século. Para mim, que tive a sorte de me formar com ele, foi não apenas um mestre, mas o ponto de referência intelectual através do qual pude estudar e compreender os grandes intérpretes do passado. No Brasil Losurdo encontrou também um público de apaixonados. Os seus livros foram e continuam sendo traduzidos e publicados com grande sucesso de vendas, e sendo objetos de estudo nas principais universidades. As conferências e palestras que ele proferiu por toda parte, neste grande país (as últimas no final do ano passado), sempre estiveram lotadas, sendo acompanhadas por jovens, estudiosos e leitores que, mesmo partidários de diferentes vertentes ideológicas, animavam debates e discussões que se estendiam para muito além do evento.

Aquele que, no futuro, desejar escrever a primeira biografia intelectual deste pensador, irá assumir não apenas uma grande responsabilidade, mas uma carga de trabalho que não poderá ser cumprida apressadamente e com superficialidade, tamanha a profundidade e amplitude da sua produção teórica: dos clássicos da filosofia ao debate em torno da figura de Stalin; da análise do papel da China ao revisionismo histórico; do pensamento liberal às questões do bonapartismo e da democracia moderna; da história do pensamento ocidental aos problemas do colonialismo e do imperialismo. Os estudos de Losurdo sobre o materialismo histórico, assim como aqueles sobre Kant, Hegel, Heidegger e Nietzsche, são um marco fundamental na história das ideias e dos acontecimentos das sociedades humanas, tamanha a sua seriedade científica e autonomia intelectual, sua riqueza problemática e complexidade interpretativa. Em tempos tão sombrios, dominados pelo refluxo democrático ao nível internacional, a sua batalha filosófica jamais se esqueceu de entrelaçar-se às exigências atuais da política.

Não obstante, a clareza das suas posições nunca se traduziu na apologia das convicções ideológicas que evocava, nem no abrandamento do rigor intelectual que lhe era característico. Pelo contrário, Losurdo sempre indagou com severidade crítica e sem indulgência os limites do universo filosófico-político em que decidira militar, e ao qual dedicou todas as energias de sua vida. Sua última obra, O marxismo ocidental, publicado em 2017 na Itália e agora também no Brasil pela Boitempo, com o apoio da Fundação Maurício Grabois, representa uma síntese exemplar de tudo isso. Poderíamos classificá-la como uma espécie de testamento político intelectual. Losurdo não amava a retórica, estando sempre disponível para confrontar-se no plano intelectual com todos, e por isso este grande intérprete do pensamento crítico, além das longas horas dedicadas aos estudos, gastava uma boa parte do seu tempo com uma mala nas mãos, viajando incansavelmente pela Europa, América Latina e Ásia, de modo a estimular uma dialética não ritual e nem apologética em torno dos seus trabalhos. A melhor maneira de homenagear este grande filósofo, que tanto amou o Brasil, seria debater com profundidade esta sua última obra e, através dela, encaminhar um sistemático trabalho de investigação científica sobre a sua amplíssima produção intelectual, tão imprescindível no panorama mundial do pensamento crítico contemporâneo.

Gianni Fresu é Doutor em Filosofia pela Università di Urbino, professor de Filosofia política Universidade Federal de Uberlândia