Conheça o especial: O fim da era Vargas, desde 24 de agosto de 1954

No período em que Getúlio Vargas comandou e exerceu forte influência não apenas na política, mas nas bases estruturais da sociedade brasileira o país passou de uma fase predominantemente rural, para um país urbano e industrializado. Tal transformação não consistiu apenas em uma mudança no modo de produção e de trabalho. Ela atingiu um sentido mais profundo, na mentalidade e cultura do povo que, dotado de um novo referencial legal, jurídico, econômico e nacional, gestou, enfim, a concepção de cidadania e civilidade condizente com o caráter industrial que se estabelecia.

A história política de Getúlio possui ambiguidades, mas podemos compreendê-la se levarmos em conta a situação internacional na qual se desenvolveu seu governo. Ele assumiu a presidência do Brasil através de um movimento conhecido como Revolução de 30, durante o conturbado período entre guerras (1918 a 1939). Naquele contexto, marcado pela Grande Depressão, pela emergência do socialismo soviético e pela ascensão do nazismo e de regimes totalitários, Getúlio encabeçou um processo que rompeu com as oligarquias que comandavam o país e que não haviam rompido completamente com o mentalidade colonial e escravista de antes de 1888 e 1889.

Um sintoma desta transformação foi a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, em 26 de novembro de 1930, para administrar questões que, até então, eram tratadas pelo Ministério da Agricultura. A sindicalização das classes patronais e operárias, que adquiriu a forma através da qual se desenvolveram os sindicatos como conhecemos hoje, passou a ser subordinada ao novo Ministério.

Mas, no ensejo das tensões políticas da época, Vargas também protagonizou uma fase autoritária e anticomunista, entre 1937 e 1945 (período que abrange a época da Segunda Guerra Mundial que foi de 1939 a 1945), conhecida como Estado Novo (1937 a 1945). Foi neste período que ele unificou as bases fundamentais para a regulamentação das relações de trabalho, das quais a maior parte vigora até hoje, apesar do desmonte que sofre com a reforma trabalhista de 2017.

Expressas na Consolidação das Leis Trabalhistas, sancionada por Getúlio Vargas no dia 1º de maio de 1943, tais bases resultaram de amplas reivindicações dos setores progressistas da sociedade brasileira e das organizações de trabalhadores, que tomavam corpo na medida em que o país se urbanizava. A CLT surgiu também em consonância com a criação da Justiça do Trabalho em 1939. Sob aquele novo código de leis que passaram a reger as relações de trabalho, o país cresceu e se urbanizou, com a construção de grandes industrias e um pujante setor de serviços . Desta forma, a CLT elevou o prestígio popular de Vargas, que fortaleceu sua imagem de protetor da classe trabalhadora.

O Estado Novo terminou no mesmo ano em que acabou a segunda guerra mundial, com a derrota da Alemanha nazista, 1945. Os novos tempos pediam governos mais democráticos e economicamente mais liberais. E Getúlio, eleito presidente da República em 1950, acompanhou as mudanças que se colocavam.

 

Getúlio Vargas desfilando em carro aberto com João Goulart no Rio Grande do-Sul. Foto: Arquivo Nacional

No início de seu novo governo o alto custo de vida que assolava os trabalhadores gerou uma onda de manifestações sindicais. A Greve dos 300 mil, de março de 1953, a maior destas manifestações, teve como desdobramento o reajuste do salário mínimo em 100%. O reajuste foi anunciado pelo ministro João Goulart e assinado pelo presidente Vargas no dia 1º de maio de 1954, sob um clima de tensão entre governo, empresários e trabalhadores.

A tensão no governo se agravaria ainda mais após um episódio conhecido como o atentado da Rua Toneleiros, em 5 de agosto de 1954. No episódio o major Rubens Florentino Vaz, da Força Aérea Brasileira (FAB), foi morto a tiros em frente à residência do deputado federal, forte opositor de Getúlio, Carlos Lacerda. Seguiu-se ao caso uma forte suspeita de que o ataque destinava-se, na verdade, à Lacerda. E com a descoberta de que os autores do crime, Alcino João Nascimento e Climério Euribes de Almeida, eram membros da guarda oficial, as suspeitas recaíram sobre o próprio presidente.

Com isso ele foi pressionado pela imprensa e por militares a renunciar. Em sua última reunião, em 23 de agosto, os ministros não apresentavam alternativa à crise política, articulando por trás dos acontecimentos, a instauração de uma ditadura militar.  Naquele dia Getúlio fez o seguinte registro em sua agenda:

“Já que o ministério não chegou a uma conclusão, eu vou decidir: determino que os ministros militares mantenham a ordem pública. Se a ordem for mantida, entrarei com pedido de licença. Em caso contrário, os revoltosos encontrarão aqui o meu cadáver”.
E na madrugada de 23 para 24 de agosto de 1954, se suicidou com um tiro no peito. No dia 24 sua carta testamento, endereçada ao povo brasileiro, foi lida pelas rádios. As últimas palavras de Getúlio Vargas, inscritas na carta, tornaram-se parte emblemática da história do país:

“E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”.
O povo, então, tomou as ruas do Brasil manifestando pesar pela morte do presidente e indignação e revolta contra seus adversários. O cenário transformara-se completamente. O clima para a deflagração do golpe, que antes fervilhava na alta cúpula, esfriara por completo. Muitos historiadores afirmam que o suicídio de Getúlio Vargas adiou um golpe militar que pretendia depô-lo. E ainda, que na esteira de sua popularidade foi possível eleger os presidentes Juscelino Kubitschek (1965) e João Goulart (1961).

A história dos últimos dias de Getúlio Vargas é contada no filme Getúlio, de João Jardim, lançado em 1º de maio de 2014, dia do 60º aniversário de sua morte. Assista o trailer:

Carolina Maria Ruy é jornalista, pesquisadora e coordenadora do Centro de Memória Sindical (CMS). É autora do livro O Mundo do Trabalho no Cinema.