Entre os dias 13 e 16 de outubro estivemos na China representando a Fundação Maurício Grabois em dois fóruns acadêmicos auspiciados pela Academia Chinesa de Ciências Sociais (CASS, na sigla em inglês). O primeiro deles foi o seminário internacional “A globalização do socialismo – resultado inevitável da humanidade”, uma promoção do Centro de Pesquisas do Socialismo Mundial (espécie de cátedra da CASS) em parceria com o Centro Chinês de Estudos Contemporâneos do Departamento Internacional do Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCCh). O evento, parte das celebrações do 20º aniversário do Centro de Pesquisas do Socialismo Mundial, realizou-se no Pavilhão Acadêmico da CASS, em Pequim, nos dias 13 e 14 de outubro. O segundo seminário, promovido por iniciativa da seção regional da CASS na cidade de Xiangtan – capital da província de Hunan, terra natal do comandante Mao –, abordou o tema “Mao Zedong e a linha de massas”.

Globalização e luta por alternativas

Intervenção de Fábio Palácio no seminário “Mao Zedong e a linha de massas”

Na primeira ocasião, cerca de cinquenta especialistas acadêmicos da China e de outros quatorze países discorreram sobre temas como a crise econômica mundial; a luta por uma nova globalização, com base nas demandas por “alternativas radicais genuínas”; os desafios enfrentados pela perspectiva socialista para firmar-se em regiões como a Ásia e a América Latina; a estratégia internacional da China e seu caminho rumo ao “socialismo com características chinesas”; a necessidade de unificar o proletariado em todo o mundo e expandir sua influência política.
A intervenção da Fundação Maurício Grabois, proferida pelo autor destas linhas, pode ser conferida em vídeo abaixo. Ela baseou-se no artigo O mundo em transição e a nova luta pelo socialismo, originalmente elaborado pelo secretário de Relações Internacionais do PCdoB Ricardo Alemão Abreu. Dentre as intervenções proferidas por especialistas internacionais, esta foi uma das únicas cuja tradução em chinês constou dos arquivos distribuídos durante o seminário.

Entre as demais exposições realizadas, destacamos as de Yu Hongjun, vice-ministro do Departamento de Relações Internacionais do Comitê Central do PCCh, que discorreu sobre “O re-reconhecimento e o repensar a respeito da globalização”; Zhang Quanjing, ex-ministro do Departamento de Organização do PCCh, que falou da continuidade da ofensiva imperialista e neoliberal na era dos monopólios, da opressão nacional e das privações de classe; Pang Xianzhi, antigo diretor do Escritório de Pesquisa em Literatura Partidária do CC/PCCh, que tratou da estratégia internacional no pensamento Mao Zedong e frisou a diretiva da luta pela “paz para o desenvolvimento” (“diferentes sistemas podem conviver em paz”); Li Li’an, secretário-geral do Comitê Consultivo Central do PCCh na gestão Hu Jintao, que abordou as oportunidades trazidas pela globalização para o desenvolvimento do socialismo, e Zheng Keyang, ex-vice-ministro de Pesquisa em Políticas Públicas do CC/PCCh. Citando os fóruns sociais mundiais e outras formas de resistência, Keyang pontuou a necessidade de fazer avançar os movimentos progressistas e de esquerda em todo o mundo, por meio de abordagens inovadoras e do estudo de temas novos.

Fredric Boccara, professor de economia da Universidade Paris 13, ressaltou a existência, em particular na Europa, de uma situação de “desespero social”, em meio à qual recrudescem tendências fascistas. Em sua opinião, como mostra o marxismo, o poder capitalista reside na finança e na capacidade de mobilizar fatores de produção. Esse ensinamento diz muito da capacidade de recuperação e recomposição da hegemonia dos Estados Unidos, que vêm baseando suas estratégias em novos achados na área energética, nos avanços tecnológicos e informacionais e, sobretudo, no poder do dólar – verdadeira “mangueira de sucção” da riqueza do mundo, por meio da qual se financiam os gigantescos déficits americanos.
Ao destacar que a crise começa a atingir os países emergentes, Boccara sublinhou a importância de iniciativas dos Brics que desafiam as instituições de Bretton Woods, como o banco de desenvolvimento do bloco e o novo common currency reserve board. Este último, segunda instituição financeira criada pelos Brics, tem como perspectiva não apenas substituir o dólar, mas também inverter todo um conjunto de expectativas e critérios, o que se relaciona a questões de poder político e, mesmo, ideológico. Também foi ressaltada a importância da criação, na América Latina, do Banco do Sul.
O pesquisador argumentou ainda sobre a necessidade de uma profunda reforma e democratização do Fundo Monetário Internacional, com a mudança de objetivos da instituição. Muitas das lutas dos povos, lembrou, têm-se originado das condicionalidades impostas pelo FMI. Nessa perspectiva, os direitos especiais de saque na instituição precisam estar baseados em uma cesta de moedas mais ampla e não apenas no dólar. Devem servir, além disso, à proteção social e à expansão dos serviços públicos. O FMI também deve refinanciar bancos centrais a juros baixos, condicionando os empréstimos à geração de empregos e ao desenvolvimento social.


Seminário internacional “A globalização do socialismo – resultado inevitável da humanidade” (Pequim, 13 e 14/10)

Zhang Guozuo, do Centro de Pesquisas sobre Soft Power Cultural da China, sublinhou a diretiva de “manter a mente aberta” e mirar sempre o desenvolvimento de longo prazo. Na visão do pesquisador, infelizmente temos o hábito de compreender fatos em lugar de tendências históricas. Na contramão dessa perspectiva, facilmente identificável no senso comum, é necessário olhar para o “rio da história”, mantendo sempre os detalhes em conexão. Guozuo destacou ainda os ensinamentos de Mao sobre a necessidade de identificar a “contradição principal” em cada momento e separar o que é mainstream daquilo que é mero apêndice. O pesquisador argumentou, por fim, que o movimento socialista mundial encontra-se em nova etapa, com as novas exigências do desenvolvimento relacionadas à ciência e tecnologia, as quais colocam a humanidade diante de um “novo ponto de partida”.
Impressionou-nos a exposição de Eugeny Grachikov, professor de Sociologia e Ciência Política da Moscow State University em Lomonosov. Intitulado “A China a caminho de seu próprio mundo”, o trabalho destacou que a situação política mundial confirma o completo colapso e a falência dos modelos econômicos e políticos do Ocidente, oferecidos ao mundo como teorias universais e globais. Segundo o pesquisador russo, o confronto principal de nosso tempo dá-se na esfera da civilização, estreitamente relacionada à “ideologia, aos modos de vida, às visões de mundo e às formas e modelos de desenvolvimento”. Na atualidade, segundo o professor, os Estados Unidos tentam estrangular as culturas e civilizações que se reservam o direito de cultivar uma visão de mundo própria e de não enveredar pelo caminho ocidental de desenvolvimento. “Nesta guerra de 2014, os Estados Unidos já adentram a civilização eslava ortodoxa, por intermédio da Ucrânia. […] Agora a fronteira ocidental da Rússia é a fronteira entre as civilizações ocidentais e orientais”, explicou, asseverando que “a Rússia nunca permitirá a destruição da civilização eslava ortodoxa”.
A China, que segundo Grachikov encontra-se “na vanguarda da luta ideológica global”, busca apoderar-se de um caminho próprio de desenvolvimento, esforço acentuado com a nova geração de dirigentes chineses. No entanto, explica o pesquisador, por sobre o alicerce de diferentes valores estruturam-se diferentes modelos de desenvolvimento. “Quando falamos sobre a maneira chinesa de desenvolvimento, devemos entender que esta não é uma questão apenas prática, mas, antes de tudo, teórica.”
Segundo Grachikov, países como Rússia, Índia e China estão reconsiderando sua posição filosófica, e, a fim de impulsionar esse esforço, é fundamental promover a integração entre os pensadores desses países. Iniciativa tal reveste-se de notável importância, ainda mais quando observamos que o chamado Ocidente estrutura-se sobre um conjunto específico e diferenciado de princípios e valores, e a posição ocidental nessa área é dominante. Sendo assim, “é necessário fortalecer o confucionismo, o budismo clássico e outras filosofias não ocidentais, além dos estudos pan-asiáticos”. Conforme já destacara o filósofo alemão Georg W. F. Hegel, “o mundo tem duas lógicas: a lógica do mundo e a lógica da China”. Nesta última, pensa Grachikov, deve estar baseada toda a filosofia chinesa.
“Em 2010, em uma conferência em Tianjin”, explica o pesquisador russo, “filósofos de todo o mundo reconheceram a independência da lógica chinesa. Em 2013, o cientista russo Andrei Krushinsky, baseado em textos chineses antigos e obras de estudiosos chineses dos tempos modernos, provou a existência de uma lógica autônoma chinesa, diferente da grega e da indiana. Outro cientista – Liu Zhili – falou do renascimento da metafísica chinesa. Zhao Tinjan avançou a hipótese científica sobre a necessidade de uma filosofia política alicerçada em princípios morais chineses. Trata-se da existência de uma percepção chinesa não ocidental do mundo, base para um caminho não ocidental de desenvolvimento.”
Com base nessas ideias, que implicam descondicionar mentes em relação à dominância dos valores ocidentais – tese que vem sendo debatida desde a Conferência de Bandung (1955) e a deflagração do movimento dos não alinhados –, intelectuais chineses têm-se devotado ao estabelecimento de um novo pensamento sobre relações internacionais. Segundo Grachikov, por milênios a China seguiu seu próprio caminho e foi o centro da civilização na Ásia Oriental. Agora que ela se torna novamente um grande poder econômico e político, procura formatar no espaço mundial relações internacionais de novo tipo, baseadas em valores tradicionais chineses que incluem a harmonia, o humanismo, a não violência e o desenvolvimento mútuo.

Mao e a linha de massas

Estátua de Mao Zedong em Xiangtan, sua cidade natal

Tendo por tema “Mao Zedong e a linha de massas”, o seminário realizado pela Academia de Ciências Sociais de Xiangtan expôs trabalhos sobre a formação, o conteúdo, o significado político e a atualidade do pensamento Mao Zedong. Abordou-se, em especial, a chamada linha de massas – considerada, desde a sexta sessão plenária do 11º Comitê Central do PCCh, uma das três “almas vivas” do pensamento de Mao. Seu conteúdo básico pode ser definido como “tudo em benefício do povo, exercido em nome do povo, emanado do povo e retornando para o povo”.
A iniciativa reveste-se de grande significado político. Após a revelação, nos últimos anos, de fatos negativos relacionados ao Partido e à sociedade chinesa, como casos de corrupção, nepotismo, elitismo e afastamento das massas – entre outros que revelam a subversão de princípios básicos da ética comunista –, os dirigentes políticos e intelectuais chineses buscam atualmente resgatar os ensinamentos de Mao Zedong como forma de renovar e revigorar valores, princípios e práticas. O compromisso foi firmemente corroborado pelo presidente Xi Jinping como condição indispensável à realização do “sonho chinês” – a plena revitalização nacional e a conquista da felicidade para as amplas massas do povo.
Ao longo do seminário, pesquisadores ligados à Universidade de Hunan e, ou à Academia de Ciências Sociais de Xiangtan apresentaram os resultados de suas pesquisas sobre o pensamento Mao Zedong. Lei Guozheng, Liu Liquan e Peng Jihong discorreram, respectivamente, sobre os temas “Mao Zedong: um papel exemplar no contato próximo com as massas”, “Entendimento e reflexão do comandante Mao acerca da crítica interna no Partido” e “Um estudo de caso sobre como conceber a iniciativa subjetiva das massas”.
Wang Liqiang traçou paralelos entre os ensinamentos de Confúcio, Marx e Mao. Para o primeiro, o desenvolvimento e as vicissitudes de qualquer poder político concentram-se em sua relação com o povo (“o povo é como a água: pode fazer flutuar ou pôr a pique qualquer barco”, dizia Confúcio). Já Marx, opondo-se às opiniões que descreviam o povo como “massa pessimista e passiva”, propôs a teoria do materialismo histórico, segundo a qual as massas têm papel decisivo no desenvolvimento histórico. Mao, por seu turno, afirmou que “o Partido vem das massas e a elas retorna”.
O pesquisador criticou pessoas que “falham em romper com as tradições passadas” e “não conseguem resistir às tentações da riqueza”. “As lições da União Soviética”, acrescentou, “provam que foram exatamente essas pessoas que mudaram e destruíram o Partido”. O pesquisador finalizou sua fala enfatizando que devemos integrar os interesses dos administradores públicos aos da maioria social.
Zhu Youzhi discorreu sobre “Quatro transições que precisam ser realizadas na prática do trabalho de massas”. Na opinião do pesquisador são elas: a) a transição da acomodação passiva ao envolvimento ativo; b) a transição do doutrinamento à interação; c) a transição da singularidade e fechamento à diversidade e abertura; d) a transformação de “medidas administrativas” em “garantia sistêmica”. Evidentemente, cada um desses pontos requer uma série de considerações cujo detalhamento não seria possível neste espaço.
Em nome da Fundação Maurício Grabois, proferimos no seminário exposição dividida em dois momentos. No último deles, procuramos sintetizar a exposição já antes apresentada no fórum de Pequim. Antes disso, porém, abordamos o tema específico do trabalho junto às massas. Afirmamos que os comunistas brasileiros possuem considerável experiência nesse campo. Essa experiência provém de quatro fontes principais, as quais, para usar as palavras de Mao, nos ensinaram a “servir ao povo apaixonadamente”. São elas:

a) As correntes anarquistas, em geral oriundas das imigrações italianas, das quais se originou o Partido Comunista – como, aliás, ocorreu também na China. A combatividade de anarcossindicalistas e anarcocomunistas – que promoveram as primeiras grandes greves e movimentos de massa da história de nosso país – foi uma das principais heranças legadas por essas correntes aos comunistas brasileiros;

b) A absorção do leninismo no Brasil – que se deve em grande medida à atuação intelectual e política da primeira geração de dirigentes do PC do Brasil – e, em particular, da ideia de que a revolução surge das massas, não de uma pequena vanguarda, por imprescindível que seja o papel dessa vanguarda;

c) A absorção de um importante contingente de militantes oriundos da esquerda católica, que trouxe importantes contribuições nesse campo.

d) A histórica relação dos comunistas brasileiros com o movimento comunista internacional, em cujo escopo se incluem o PC da China e outros partidos e organizações com grande experiência e contribuições nesse campo.

Naturalmente, não foi possível aprofundar de maneira sistemática as lições herdadas de cada uma dessas fontes, tarefa que poderia compor um futuro programa de estudos e intercâmbio.

Marxismo e confucionismo

Família chinesa visita Museu Mao em Xiangtan

Além de representar a Fundação nos dois seminários acima relatados, participamos de encontro com o professor Cheng Enfu, diretor da Divisão Acadêmica de Estudos Marxistas da CASS e editor chefe de duas revistas acadêmicas chinesas em língua inglesa: o International Critical Thought e a World Review of Political Economy. Além de servir à apresentação editorial de ambas as publicações, o encontro buscou prospectar possíveis linhas de cooperação. Entre os especialistas estrangeiros presentes, foi recorrente a preocupação quanto à necessidade de multiplicar o número de traduções, em particular do chinês para as línguas ocidentais.
Ao professor Cheng Enfu, autor de importante artigo que postula a existência de “nove correntes ideológicas na China”, perguntamos acerca de sua visão sobre a relação entre marxismo e confucionismo. A resposta, surpreendente, veio em uma única frase: “A filosofia de Confúcio é rica em ensinamentos, mas não se governa uma sociedade com o confucionismo”. O que procurou destacar o pesquisador chinês, embora em linguagem sintética e um tanto cifrada, é que, embora importante, o confucionismo não deve ser colocado em pé de igualdade com o marxismo.
Há três anos, ainda durante o governo de Hu Jintao, ergueu-se na Praça Tiananmen uma gigantesca estátua de bronze de Confúcio, fato de grande significado político. O governo chinês buscava, com o gesto, reforçar as tradições culturais do país, assim como ressaltar a diretriz de “harmonia social”, conceito caro aos ensinamentos do filósofo. A estátua foi situada na região oriental da praça, e parecia olhar de frente para o retrato de Mao situado do lado oposto.
Meses depois a estátua acabou sendo retirada. Para muitos, embora a filosofia e a figura de Confúcio tenham importante papel no revigoramento das tradições chinesas e na edificação de um marxismo nacional, o confucionismo também teria tido, no passado, parcela de responsabilidade na formação de uma mentalidade subserviente. A polêmica é reveladora do fato de que, mesmo em uma sociedade como a chinesa, já em pleno estágio primário de construção do socialismo, elevadas disputas político-ideológicas – algumas delas bastante sutis – seguem sendo travadas. Trata-se de uma sociedade rica e multifacetada, bem distante do bloco monolítico que o Ocidente, à distância, costuma divisar.

* Jornalista, doutor em Ciências da Comunicação (USP). Diretor da Fundação Maurício Grabois.