Assista entrevista de Carvalho concedida durante o lançamento do livro, nesta quinta.

Promovido pelo Centro Nacional de Estudos Sindicais e do Trabalho (CES), o debate desta quinta-feira (22 de agosto) teve como tema as perspectivas e desafios da integração da América Latina (Celac, Unasul e Alba) –  Como os trabalhadores podem intervir neste processo? A plateia era formada por centenas de delegados de 26 países, muitos deles do continente. A mesa foi coordenada por João Batista Lemos, vice-presidente da Federação Sindical Mundial (FSM) e representante da Fundação Maurício Grabois.
O professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), Eugênio Rezende de Carvalho, expôs sumariamente algumas ideias de seu livro América Para La Humanidad, sobre o pensamento integracionista de José Martí, como um exemplo prático de integração cultural latino-americano, por ter sido editado pela Fundação Maurício Grabois em parceria com a Universidade Nacional Autónoma de México (UNAM). Martí completa 160 anos de nascimento em 2013, efeméride que justifica um lançamento de tal envergadura.
A vida e obra do líder político cubano e mártir da luta independentista pelo seu país, no século XIX, foram marcadas pelos ideários anti-imperialista e anticapitalista. Além desse ideário que ainda hoje agenda os debates na esquerda, antevendo o expansionismo colonialista dos EUA, sua identidade com a integração do continente estava à frente de seu tempo. O historiador cita a rejeição de Martí à mentalidade “aldeã” de países que se preocupavam com suas questões locais sem se sentir parte da universalidade humana, sem entender sua proximidade com os demais países da América Latina. “Foi essa fragilidade e ódios entre países do continente que facilitaram a penetração de conquistadores e os imperialismos depois da independência”, disse ele. “Cada um se relacionava com sua metrópole sem se enxergar como vizinhos”, completou, apontando os motivos que dificultavam a proposta de uma confederação de países.
O professor Eugênio aponta um aspecto do pensamento martiano que ainda é muito atual: sua concepção de que a ideia de integração do continente não se impunha pela força das armas, ideia mais próxima de Simon Bolívar. Era preciso ganhar a consciência das massas. “Não adianta partir de métodos autoritários e militares sem levar em conta a ‘alma de la tierra’ e as peculiaridades locais que diferenciam cada país”, afirmou Carvalho.
A partir daquele pressuposto, Martí investiga os elementos que compõem a imagem do “gigante enfermo contaminado pelos resíduos inamalgáveis que o intoxicavam”. Daí a percepção do “nefasto espirito aldeão” com seus ódios e violência que impediam a unidade e convivência harmônica dos povos hispano-americanos. Ele se sentia cidadão de todos os países latino-ameircanos, ainda que continuasse cubano em todos eles.
Martí via uma realidade caótica, conflituosa e fragmentada naquele momento histórico do continente. Para ele, portanto, era preciso ganhar as consciências para o discurso da união, da superação da heterogeneidade da realidade complexa, e percepção de uma essência unitária harmônica entre estes povos.
Martí tinha uma visão de unidade do diverso que compunha tantos países latino-americanos. Usando imagens da natureza, típicas do romantismo, ele via a necessidade de “harmonizar o tronco em suas diversas raízes”. Essa harmonização se daria pela noção de pátria como conceito fundamental para a integração, a partir de um ângulo supra-estatal”.
Mas a pátria hispano-americana de Martí excluía o território ao norte do México, e sua ideologia de panamericanismo expansionista. “Martí estava horrorizado e envergonhado com a tentativa de seus conterrâneos de anexar Cuba aos EUA, como ocorreu com outras ilhas do Caribe e partes do México”.
A noção de pátria continental toma forma, para Martí, diante do colonialismo espanhol e depois com o imperialismo norte-americano, vistos como inimigos e ameaças comuns, que definem o caráter da unidade latino-americana. “É esta história comum trágica e gloriosa que estreita os laços entre nossos países”, afirma Carvalho.
Um perigo que ainda ronda o continente, o imperialismo dos EUA já era para Martí uma ameaça no final do século XIX, com o agravante de sua postura expansionista, que anexa partes do México e a Costa Rica, por exemplo. “Este perigo comum tende a estreitar laços entre ameaçados”.
O ensaio “Nuestra América”, de Martí, anunciava o despertar da América adormecida, profetizando a grande epopeia hispano-americana, para se mostrar ao mundo como era, unida em alma e intento. De acordo com a análise de Carvalho, este discurso procurou ordenar e condensar os elementos dispersos de suas ideias. “O conhecimento das causas dos desequilíbrios servia para elaborar o pensamento integracionista”, explica o historiador. Ali, se definem as diferenças de espírito, as origens e a artificialidade da unidade que justificam a exclusão do norte do continente da Nuestra América.
O professor menciona que o último século tem sido rico de projetos e propostas de integração. Mas desde Martí, essas integrações tendiam a extrapolar o âmbito econômico e comercial e enfatizavam uma evocação de um sentimento latino-americanista. “Trata-se de uma integração assentada numa história comum, mas em problemas e projetos de futuro comuns, também”.
Carvalho conclui dizendo da importância da ideia e dos projetos de integração superarem um conteúdo elitista e tornarem-se mais populares a partir do debate trabalhista nas centrais sindicais de todos os países envolvidos. Isto atenderia ao espírito das ideias martianas, de conquistar a consciência do povo para a integração continental, diferente daqueles projetos apresentados nos palácios pelos diplomatas.

Balanço da integração
O coordenador do Encontro Sindical Nossa América (ESNA), Juan Castillo, alertou para importância do movimento de trabalhadores intervir para garantir os avanços das mudanças que têm ocorrido em “Nuestra América”. Ele observa ameaças da direita e da extrema esquerda, “que amanhece abraçada com a direita”, contra estes avanços dos governos progressistas de esquerda.
Castillo apontou para um evento que passa desapercebido, muitas vezes, em sua dimensão. O modo como a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), proposta pelos EUA, sumiu da agenda política não ocorreu sem luta. “Sem entender esses avanços dos últimos anos, não se entende a derrota da Alca e sua dimensão”, diz ele, apontando essa vitória como resultado a união do povo em torno de seus movimentos e governos.
No entanto, Castillo puxa a orelha dos movimentos ao dizer que, com as vitórias de esquerda nos governos centrais e a derrota dessa ameaça imperialista, “desarmamos a luta e voltamos cada qual para seu próprio problema local”. É importante observar, de acordo com ele, que não há hegemonia, homogeneidade ou unidade da América Latina em torno do processo de integração. “Quem lidera qual processo na América Latina? Esta é a questão hoje!”, diz ele, citando contradições como a ocupação militar brasileira no Haiti. “São contradições que demonstram que não há processo linear, pois em vez de médicos e professores, enviamos soldados ao Haiti”, denuncia.
As alianças dos movimentos sociais lograram derrotar as ditaduras mais cruéis e conservadoras do continente. Mas, para Castillo, nas últimas décadas, houve um aumento da consciência de classe. “Os trabalhadores deixaram de votar nos patrões  e empresários e passou a votar nos aliados, elegendo forças progressistas”, avaliou. Para ele, este é um avanço de mentalidade importante a ser preservado.
Porém, ele nota que há ameaças à essa consciência de classe. “Pensávamos que a corrupção era sinônimo da direita, mas a corrupção não tem bandeiras, nem ideologias e ganha adeptos em nossas forças políticas e governos”, afirmou. O uruguaio avalia que, embora os casos sejam mínimos, comparados aos escândalos da direita, os danos ideológicos, fartamente explorados pela mídia corporativa, são enormes e custam muitos anos para serem superados. “Outra surpresa é ver muitos companheiros nascidos em nosso ventre de esquerda mudar de ideia quando assume o poder”, lamenta.
Outro elemento negativo que pesa como ameaça nesse balanço dos avanços de esquerda é que a integração não se efetiva com a celeridade e força desejadas. “Continuamos sendo fornecedores de matéria-prima e commodities para os países desenvolvidos”, disse ele, apontando esse atraso como uma componente limitador e debilitante do continente frente à economia mundial.
Castilho, todavia, enxerga importantes sinais de tentativa de superação dessas fragilidades, citando, por exemplo, os 10 mil quilômetros de extensão de integração continental de fibra ótica, para que o continente não dependa tanto do imperialismo dos EUA na área de telecomunicações.
Ele ainda propõe que deve haver um compromisso de luta e fortalecimento dos instrumentos de integração, como a Unasul. Para Castillo, será uma enorme perda de oportunidade, se não houver uma intervenção da classe trabalhadora para o desenvolvimento social, em meio à crise do capitalismo. Ele se pergunta quais são as ferramentas a serem fortalecidas, nesse sentido. Sugere que esse questionamento deve estar colocado em Congressos como o da CTB, sugerindo que articulações como o Foro de São Paulo, com seu âmbito partidário, pode ser uma importante ferramenta de intervenção e fortalecimento sindical.
Como uruguaio, ele mencionou os enormes avanços que têm ocorrido nos últimos dois governos de esquerda, com forte inclusão de direitos, mas dificuldades no orçamento. “Diante da contradição da falta de recursos para os serviços públicos, o movimento sindical não vai se dispor a derrubar o governo da Frente Amplo, porque do outro lado está a direita, que só nos oferece retrocesso”, apontou.

Propostas para avançar
Como todo bom comunista, o representante da Federação Sindical Mundial e da Central dos Trabalhadores de Cuba, Ramon Cardona, preferiu partir logo para a ação, propondo linhas de ação para que a integração do continente vença seus principais desafios.
Cardona se ressente de maiores consensos “sem Washington” entre os movimentos e organizações que intervêm no tema, diante de um momento delicado na conjuntura econômica e política da América Latina. “Estamos diante de uma agressão, quando se tenta restituir a Alca em nosso continente, por meio de acordos de livre comércio que não passam de ingerências para impedir nossa integração”, afirmou.
Para o cubano, buscar a unidade dos trabalhadores neste momento é uma tarefa, a partir de uma concepção anti-imperialista, com um programa anticapitalista e protetor dos trabalhadores que oriente os interesses de classe nos acordos multilaterais. Para ele, o maior inimigo é o modelo de desenvolvimento que se apresenta, hoje, a partir da redução dos direitos dos trabalhadores e da distribuição geopolítica do comércio internacional.
“Temos que lutar por um modelo soberano, vinculado ao avanço da produção nacional e deixar de ser países primários”, afirmou, referindo-se ao comércio predominantemente de matérias-primas que a América Latina mantém com os outros países.  De acordo com o comunista, é preciso combater o modelo hegemônico, por agora, que aposta no livre comércio dirigido pelas grandes corporações e portanto pelas grandes potências, favorecendo a especulação financeira. “Esse modelo é o maior inimigo da integração”, afirmou.
Cardona enfatiza que, todos  os esforços integradores têm que favorecer a Alba, organismo criado por Hugo Chávez, que ocupa lugar restrito na integração, que prioriza a Unasul como mecanismo de convênios políticos. Com fortes traços de integração solidária, a Alba agrega apenas países com governos mais alinhados à esquerda. Para o cubano, a Alba representa uma mudança na integração, até então muito voltada para medidas alfandegárias e comerciais, evitando lidar com as assimetrias entre os países.
Ele resume a situação alarmante, dizendo que a intervenção das potências para impedir a integração do continente é o aporte de imensas quantidades de dinheiro para governos mais subservientes.
Outra denúncia de Cardona é a criminalização dos sindicatos pelas transnacionais por meio de multas milionárias, a que os movimentos e organizações não estão dando resposta à altura. Por outro lado, ele conta que o enfrentamento desses abusos de transnacionais por governos progressistas é punido pelos judiciários e organizações multilaterais.

ASSISTA: João Batista Lemos, vice-presidente da Federação Sindical Mundial (FSM) e representante da Fundação Maurício Grabois, aponta importância do lançamento da tradução para o espanhol de America para a Humanidade.

 


 

Carvalho autografou exemplares do livro America Para La Humanidad, lançado durante o seminário.