Maristela, o Marido e o Namorado
 

Todo final de madrugada era a mesma coisa: Maristela fechava a barraca de espetinhos, recolhia o resto da farofa, jogava as cinzas no canteiro da praça e seguia empurrando o carrinho morro acima, até seu barraco, que ficava na Vila Dona Zuleide, perto do Lago. Evitava contar o dinheiro na rua, por segurança, mas sempre sabia quanto havia ganhado na noite, pelo cuidado aguçado que tinha com seu “estoque” de carne, refrigerante de guaraná e cerveja. Dois anos no ramo, tirava nas vendas o sustento dela, dos cinco meninos e do Ancelmo, seu marido. Este, também há dois anos, estava deitado naquela cama, a olhar para aquela televisão, atraído apenas pela luz, sem nada entender. Como uma planta, que realmente era, desde o dia em que levou aquele tiro, que lhe atravessou a cabeça pelos ouvidos, disparado pelo segurança da lotérica durante seu último assalto. Ele, o Ancelmo, era bom ladrão, mas, na naquele dia, foi pego de surpresa. Desde então, vegeta em silêncio e, segundo as línguas, não reconhece nem a mulher e os filhos. Só atende a estímulos visuais e ao toque. Logo depois do ocorrido, a Maristela não se deu por vencida. Mulher lutadora que sempre foi, trabalhou na costura, lavando roupa, vendendo queijo e até de segurança de porta de baile, até conseguir o ponto na Praça Mário de Andrade, onde ganhou freguesia e, hoje, consegue tirar sempre mais de oitenta reais por noite. Um bom dinheiro. Dinheiro para até fazer planos e sonhar com uma lanchonete. Ao chegar no barraco, guarda o carrinho em um lugar seguro, perto da porta, do lado de dentro, e dá a devida atenção aos filhos, que, até esta hora, a esperam, vendo televisão. O menor, de dois anos e meio, e os trigêmeos, de quatro, ficam sob o cuidado do mais velho, de dez, que também cuida do pai. Ela troca a fralda do Ancelmo, limpa as babas que, durante todo o dia, inundaram os lençóis, coloca comida na sonda, arruma as crianças nos colchões, ao lado da cama, e vai tomar um banho para esperar o Luis Carlos, seu namorado. Como é vigia noturno, ele chega logo depois das seis da manhã, também toma um banho e se acomoda no canto direito da cama, deixando Maristela no meio e o Ancelmo à esquerda. Ali, conversam baixo, falam sobre o dia, sobre o trabalho, sobre planos. O Luis Carlos ama aquela mulher e já pediu-a em casamento, sem sucesso, diversas vezes, sempre ouvindo o mesmo “é cedo”, mas dizendo, todos os dias, aceitar os filhos e o “Ancelmo Samambaia” – como gostava de chamá-lo. Na verdade, ela, hoje, pensa em dizer sim, mas ainda teme amar demais o marido. “Homem bom esse Luis Carlos” – pensa. E, como quase todos os dias, fazem amor gostoso e sem barulhos – para não acordar os meninos -, apenas se movendo, os beijos tão molhados e, enquanto sente aquele instante, sem deixar o namorado perceber, toca o marido vegetal, como boa esposa que é, dividindo todo aquele prazer com o Ancelmo que, respondendo ao estímulo, olha para a luz da rua, difratada pela fresta da parede.


 

            * Luiz Henrique Dias é escritor e encenador da Cia Experiencial O Teatro do Excluído. Leia mais em www.luizhenriquedias.com.br ou siga ele no Twitter: @LuizHDias