Existirmos, a que será que se destina?

Uns pensamentos e uns questionamentos que às vezes me faço…

Entre mim e minha avó existe o mundo.

“No começo era o Verbo”, diz lá a mitologia da Bíblia. Como humanos, conscientes de nós e do nosso meio, falamos, dizemos o mundo. “Isto é uma pedra, aquilo é água, aquela coisa se chama estrela…” Vamos construindo o mundo, e vamos traduzindo-o em palavras, desde que a primeira pedra foi nomeada. Não importa em que língua se diga pedra, ela carrega o peso do conceito de sua “pedrice”, do seu estado de pedra.

Mas nem sempre a linguagem do mundo é dita em palavras. Antigos nômades liam nas estrelas do céu a sua localização espacial: o céu era seu ORIENTE (orientação), e assim o céu falava aos homens. Sempre que se perdiam entre dunas e miragens, eles buscavam a posição do sol, da lua e de outros astros visíveis a olho nu. Essas estrelas avisavam sobre a posição correta de pés humanos na areia da terra, e a constelação da Ursa Maior era um Touro em movimento que os guiava, como cão-de-cego orientando na direção correta. Que direção? Para onde? Para o viver, o existir: respirar, dormir, comer, beber, mijar, defecar, andar, fazer sexo, sentar, deitar, olhar, ouvir, sentir, pegar, provar, sonhar, querer, refletir, meditar e todos os atos para os quais os verbos foram criados.

Quando o homem começou a dizer o mundo, estava criada uma cosmologia. A linguagem humana foi gerando uma narrativa a respeito da origem de tudo, da natureza e dos princípios que ordenam o mundo em todos os seus aspectos. A fala foi se aprimorando e a Torre de Babel foi crescendo e cosmologias particulares sendo desenvolvidas, paralelas à cosmologia física, a ciência. São todas, científicas ou não, conjuntos de representações que demonstram de forma mais ou menos clara os mais diversos aspectos da vida humana coletiva, e dão a forma da concepção que os membros de um grupo sociocultural têm a respeito do mundo. Ou seja: falam.

Do ponto de vista da linguagem, pergunto, existe alguma concepção superior à outra? Serão todas elas formas de “dizer” o mundo? Qual a diferença entre contar a história do mundo a partir de uma grande explosão, o Big Bang inicial, e aquela hindu que conta que o deus Shiva resolveu dançar e com sua dança criou tudo o que existe? Do ponto de vista da linguagem, faz muita diferença acreditar em uma e não na outra? Não podem ser simplesmente formas sinônimas de descrever o mesmo evento? E no entanto elas possuem modos de engendrar nossa psique, nosso modus operandi no mundo, que passa a ser em acordo com aquela na qual colocamos nossa crença.

Mas o mundo foi criado, seja por Shiva ou pelo Big-Bang. A dança de Shiva aconteceu num não-espaço e num não-tempo, uma singularidade igual ao Big-Bang onde o Tempo e Espaço estavam comprimidos num minúsculo ponto não-espacial e não-temporal de densidade infinita. É quase-verdade que nosso mundo não existiu sempre – pelo menos do jeito como é – e que não existirá para sempre – do jeito como é. Os cosmólogos atuais dizem que nosso universo tem uma idade que gira em torno de 15 bilhões de anos e que existirá por um tempo limitado. Um dia tudo não-existirá, não-será.

Mas falar disso parece algo completamente sem sentido. Quando observamos que estamos presos numa Bolha de espaço e tempo, fora da qual verbos como Existir e Ser não fazem o menor sentido, a massa encefálica fervilha em busca de uma solução para o enigma. Mas fora daqui não há um “fora daqui”. Seria um absurdo falar de tempo num não-tempo. De espaço num não-espaço. Parodiando um dos discípulos de Santo Agostinho: “O que Deus fazia antes de criar o mundo?” A resposta do filósofo-cristão: “Inventava o inferno para pessoas que fazem esse tipo de pergunta”. Ou seja, bem vindo ao inferno.

Então, se a pergunta “o que existia antes do tempo?” não faz o menor sentido (porque o termo "antes" precisa do Tempo, assim como o “durante” e o “depois”), o que faz sentido? Ou, perguntando melhor, só há sentido dentro do sentido do espaço e do tempo? Ou ainda resta a capacidade mental humana de estourar a Bolha e viver em multiversos? Em prosa, em verso e em tons.

O que há é que um dia inventamos Palavras. Um dia nos ensinaram que aquela bola dourada lá no céu que se move de um horizonte ao outro, gerando a "luz" e criando o "dia" é o Sol. Repetimos, há milênios, que aquilo lá é um sol, sem questionar muito. “Aquilo lá” tomou a si um estado próprio, um estado de ser Sol, que é um não-estado de ser Lua, por exemplo. O Sol é Não-Lua, ou seja, ele é uma escolha em prejuízo de outras.

Quando damos um Nome à coisa, ela se particulariza, se individualiza. A coisa fica Só, em seu estado. Como reduzindo o tempo ao segundo que passa, separamo-lo do segundo anterior e do posterior.

Tudo no universo acha-se SÓ em relação a tudo, e a culpa é nossa. O mar está SÓ em sua natureza de mar; o sertão é um estado de ser SÓ sertão. E eu, sozinha, olhando a noite estrelada do céu do interior vejo um céu repleto de estrelas solitárias, afastadas umas das outras por anos-luz. E eu a anos-luz delas… Eu sou só uma parte de todo o conjunto dos entes sozinhos do universo. O que faz com que a distância entre mim e essa formiga que passeia sobre a minha perna seja enorme! Eu jamais a alcançarei, nem ela a mim, assim como jamais alcançarei Alpha-Centauro, ou Vega, lá no céu. Estamos todas, estrelas, formigas e eu, condenadas à mais irremediável solidão, quebrada apenas quando sabemos que somos feitos da mesma matéria, eu, a formiga e as estrelas.

Manuel Bandeira – o poeta – disse:

Ah, quem mo reduzira [o tempo] ao minuto que passa,
— Fosse ele de paixão inerte e merencória,
Na solitude, no silêncio e na desgraça!

Nesse perene ato de nomear e recriar o mundo a cada dia, o homem por vezes volta ao ponto inicial, à essência da pergunta verdadeiramente importante: – com que linguagem traduzir o mundo? Muitas vezes é preciso voltar ao ponto de origem, ao tempo do não-definido, do não-dito, do não-inventado. O tempo do provável, da potencialidade de tudo vir a ser algo. E inventar e definir e dizer tudo de novo. De Novo – jeito novo, forma nova.

Isso é Arte.

A Arte é a forma nova de dizer algo que já foi dito antes.

Foi o que fez Guimarães Rosa, esse escritor tão brasileiro! Inventou (descobriu?) uma nova Cosmologia, a Cosmologia do Sertão das Minas. De fato “o sertão é o mundo” e “está em toda parte”, como ele diz em "Grande Sertão: Veredas". A Teoria do Caos diz que habitamos um universo holográfico. Sendo assim, um espaço como o sertão é um holograma do mundo. Por isso, o Rosa tem razão: tudo cabe no sertão e por isso o sertão é o mundo. Por isso a cosmologia sertaneja é igual à cosmologia hindu milenária e à cosmologia física relativística. Os bichos do sertão falam como gente, assim como as árvores, as coisas e as pessoas. O sertão descreve o mundo e o mundo inteiro cabe holograficamente no coração do sertão brasileiro. Ainda mais: a brasilidade da cosmologia do sertão, um estado brasileiro de descrever o universo. O sim e o não no sertão não são afirmativos e negativos mecanicamente, mas quanticamente. O sertão é o local aonde o conceito quântico é mais compreensível: é e não-é, não é Riobaldo? Um Nonada. Um Não que não elimina um Sim, ou o contrário. Ambos podem gerar um talvez, um pode ser, por que não?

Há um mundo de probabilidades dentro da física sertaneja. Probabilidades quânticas. Em "estado-de", em estado quântico, como o gato de Erwin Schrödinger, um dos pioneiros da física quântica. Um gato quântico, um sertão quântico. No sertão até o tempo é uma entidade plena de probabilidades. Disse para mim, lá em Cordisburgo, o Brasinha: – “pode ser lá pelas 9 horas, que aqui pode significar 10, meia-noite…” E seu riso sublinhou que por aqui nada é muito definitivo e definido. Ninguém vai reclamar se não for nove, porque todos sabem que nove pode ser dez sem problema.

Muda tudo quando buscamos formas novas de descrever o que já foi descrito e definido. Guimarães Rosa, não satisfeito com uma língua só, foi buscar aprender a ler na linguagem direta das coisas do mundo: na linguagem das vacas, das grutas, da terra, das plantas, dos sertanejos, dos homens e mulheres que vagam existindo nesse imenso-minúsculo espaço entre o céu e a terra que é o Brasil, habitando um estado especial de ser, um estado cultural brasileiro de existir no mundo. “O sertão é o mundo”.

Durante uns anos, de 1998 a 2004, frequentei umas aulas na casa do professor Amancio Friaça, do IAG-USP. As aulas semanais, às quinta-feiras, eram para umas dez pessoas que para lá iam encontrar algum sentido nessa existência, enquanto conheciam os conceitos de Cosmologia e Física Quântica. Estudava também por conta própria, sobre essas elocubrações existenciais, nos livros que fui adquirindo. No meio disso, faculdade de Letras. E tudo aquilo lá, aqueles questionamentos do tipo o que estou fazendo por aqui? ou “Existirmos, a que será que se destina?” continuam me perseguindo em todos os desenhos que faço e nas leituras do mundo como obra de arte. Que linguagem é essa que usamos para descrever o mundo?

Penso que há alguma relação entre a obra de Guimarães Rosa, a Cosmologia e a contemplação de um quadro de Caravaggio… que vão além da simples linguagem. Ver o mundo de novo, ver com Arte. E transformar o que vejo em alegria para os olhos, em prazer para a alma e em sentido para viver…

"Mazé Leite é artista plástica, designer gráfica, bacharel em Letras-USP, pesquisadora de História da Arte, membro do Atelier de Arte Realista de Mauricio Takiguthi e da Coordenação Nacional de Cultura do Comitê Central do PCdoB." – www.mazeleite.com.br