Canção para Cordolina

      Regresso a tua residência, velha dama
de rubras idéias.
      Em mim, por meus cabelos,
tuas mãos longevas dirigindo súplicas
e orações à teus santos
protetores.
      Cruzo as portas
e meus sentimentos estão pacientes
      Na cristaleira há dragões de porcelana
chinesa,
chícaras sonolentas, pratos de um tempo
distante
e a santa de dois séculos
de tua mãe.
      Examino com atenção as paredes declinantes:
há quadros coléricos como flâmulas emolduradas
de um camponês abatido
na qual recompusestes o sangue de teu filho
no altar da mais profunda
indignação.
      Examino com atenção as paredes declinantes:
e lá estão digitais revoltosas
e um estudo sobre Gauguin que realizastes.
      No silêncio que vence a estupidez
vais falando ao meu coração
e dizes-me que é preciso virar a página
da história.
      Um lampejo de teus olhos faz saltar um grito
e tudo revolve-se nas reminiscências das mesas,
nos almoços onde reunias as gerações que paristes
em teu ventre generoso: sinto que há peixes esquecidos
no aroma dos escabeches.
      Apreendo de tua infância um pai fardado,
capitão em Canudos.
      Apreendo nos teus baús esquecidos as crônicas
de décadas passadas
da qual ninguém mais se lembra porque em tua mocidade
as mulheres estavam proibidas de ter cultura e intelecto.
      Apreendo de tua juventude
teu longo amor marítimo e operário.
      Numerosa fostes inaugurando a vida
com filhos e engravidada eras apenas saudades
porque as bravias marés arrebentavam
os olhos de teu marido embarcado,
distante, afastado de teus negros cabelos
onde tesouros telúricos reluziam
alumiados como estrelas harmônicas e virtuosas.
      Regresso a tua residência, velha dama
de rubras idéias.
      Lá estão alguns de meus primeiros livros.
      Lá estão alguns de meus primeiros poemas.
Cruzo portas
e fatidícos amores descansam
insepultos.
      Revejo teus ríspidos olhos contra os bestiais,
os tiranetes e latifundiários que alvejaram
teu mais querido rebento: o mais mulato de todos,
revoltoso comunista.
      Tua voz infunde no peito rosas vermelhas
da qual tanto amavas e que te acompanham
na memória da luta popular.
      Tua voz infunde no peito rosas vermelhas
para que nuncas deixes de existir
no coração das manhãs multitudinárias.

Paulo Fonteles