IV

Vem dos profetas do povo
dos marinheiros louros que contavam
entre os bêbados e as putas
nos bordéis nas estalagens
no cais do porto de Bristol, de Marselha, a lenda
de uma ilha chamada Brasil
para lá da Irlanda

e o mercador John Day
conta essas conversas de marinheiros e
estalajadeiros
em carta ao Almirante-Mor de Castela
e São Brandônio ensinava:  – o paraíso
é no meio do Oceano –
esmeralda de selvas
sobre a esmeralda do mar.

E Mestre João lembra ao Rei:
veja o mapa de Bisagudo.

Pero Vaz da Cunha – dito o Bisagudo –
pelo sonho do Infante – pela busca do Príncipe
do Rei perdido nas miragens do tempo e dos
                                                                [espaços

Sebastião! Sebastião! –

O Bisagudo leva o clamor da saudade ao mar
                                                               [ de Cabo Verde
pela ilha tua, Ilha do Fogo, Ana Maria formosa,
e desvenda a entrada do Sanagá – chamado Senegal –
e começa o “grão rodeio”
cantado pelo vidente caolho
caminho da terra achada.

E onde “mais se alarga” esse rodeio – Luís Vaz –

a terra busca o mar
e o mar encontra a terra.

Estão guardados os nomes dos doze grandes capitães
das doze caravelas que chegaram
também o nome daquele Vasco
que o mar comeu com sua nau e seus marujos,
tentaram tragar o mar – e o mar os tragou:

polvos, corais, sargaços entre espumas
e as plantas marinhas – as do mar profundo
não esquecem seus nomes.

Os mil e quinhentos marinheiros
têm seus nomes
escritos nas estrelas do céu:
cumpriram todas as ordens  – as graves e as miúdas
dadas pelo Rei ao Almirante

no oratório do Infante, sítios de Belém
pelo Restelo.

V

E está é a escritura
lavrada no porto seguro da Vera Cruz –

(eu, Poeta, soletro umas letras das letras
de Pero Vaz a El-Rei Dom Manuel
levadas pela nau de torna-volta
do Capitão, de certo, André Gonçalves):

–  “ Senhor,
a terra  é muito chã e muito formosa
cheia de grandes arvoredos
ponta a ponta é toda praia
nela haverá bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa
– até onde vimos –
pelo sertão nos pareceu, vista do mar, mui grande
porque, a estender os olhos,
não podíamos ver senão terra e arvoredos.

A terra em si é de muito bons ares
frescos e temperados
como os de Entre Douro e Minho
águas são muitas; infinitas

                 [o escrivão adivinhava o Amazonas, o Madeira,
                 o Solimões, o São Francisco, o Parnaíba
                 o Tocantins, o Araguaia, o Negro, o Paraná
                 e os outros rios].

A terra é graciosa e nela, querendo-a aproveitar,
dir-se-á tudo
por causa das águas que tem.

Houvemos vista da terra à hora de vésperas
primeiro um grande monte mui alto e redondo
(a, montagna bruna foi vista pelo Dante no outro mundo):

era terça-feira, vinte e um de abril,
oitavas da Páscoa,
e o Capitão chamou o monte Monte Pascoal
e a terra Terra de Vera Cruz
e logo vieram todos os capitães das naus
à nau do Capitão- Mor. E ali falaram.
e o Capitão mandou a terra Nicolau Coelho
primeiro cristão a pisar o chão achado:
e acudiam pela praia homens
uns dois ou três
e quando o batel chegou à boca do rio
já lá estavam dezoito ou vinte
pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse
suas vergonhas.

Vinham todos rijamente em direção ao batel
e Nicolau Coelho fez sinal que pousassem
arcos e flechas – e eles os depuseram
e arremessou-lhes um barrete vermelho
e uma carapuça de linho que trazia à cabeça
e um sombreiro preto
e um deles lhe arremessou um sombreiro
de penas de aves, compridas,
com uma copazinha de penas vermelhas e pardas
e outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas
que pareciam de aljôfar
e o Capitão mandou a terra Afonso Lopes
por ser um homem destro
e na praia andavam muitos com seus arcos e setas;

os cabelos deles são corredios
e tinham bons rostos e bons narizes
e andavam tosquiados, de tosquia alta
raspados todavia por cima das orelhas
e subiram à nau e o Capitão estava
sentado em uma cadeira
aos pés uma alcatifa por estrado,
bem vestido, com um colar de outro mui grande no
                                                                     [pescoço

e Sánchez de Tovar e Simão de Miranda
e Nicolau Coelho e Aires Correia
e nós outros, sentados no chão sobre a alcatifa.

Um deles fitou o colar do Capitão
e ficou a fazer acenos com a mão
em direção a terra
como se quisesse dizer que havia ouro na terra
e olhou um castiçal de prata e assim mesmo
acenou para terra
mostraram-lhe um papagaio pardo
que o Capitão trazia consigo
e todos acenaram para terra
e a terra era a Terra dos Papagaios
mostraram-lhes um carneiro
não fizeram caso dele – mostraram uma galinha
e tiveram medo dela
deram-lhes taças de vinho
não gostaram dele
tomaram água para enxaguar a boca
e então estiraram- se de costas na alcatifa 
a dormir
e não procuravam encobrir suas vergonhas
(vergonha – de verga)
que não eram fanadas
e as cabeleiras delas estavam bem raspadas e feitas
e o Capitão mandou pôr
na cabeça de cada um seu coxim
e um de cabeleira esforçava-se para a não estragar
e deitaram um manto por cima deles
e aconchegaram-se 
e adormeceram.

Dois deles ficaram dormindo ali a noite toda
e o Capitão mandou que Duarte Coelho
                                                        [e Bartolomeu Dias
fossem em terra e levassem aqueles dois homens
e os deixassem ir com seu arco e setas

e mandou dar a cada um uma camisa nova
uma carapuça vermelha e um rosário de contas
e mandou com eles um mancebo degredado
criado de João Telo
de nome Afonso Ribeiro
para lá andar com eles e saber
de seu viver e suas maneiras.
levou Nicolau Coelho cascavéis a outros manilhas
e a uns dava cascavéis a outros manilhas
e eles davam arcos e setas
em troca de sombreiros e carapuças de linho.

Ali andavam entre eles três ou quatro moças
bem novinhas e gentis
com cabelos muito pretos e compridos pelas costas
e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas
e tão limpas de cabeleiras
e não se envergonhavam de ser olhadas
nem os marinheiros se envergonhavam de olhar
e uma daquelas moças era toda tingida
e certo era tão bem-feita e tão redonda
e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa
que a muitas mulheres da nossa terra,
vendo-lhe as feições envergonhara,
por não terem as suas como a dela.

Ao domingo de Pascoela pela manhã
determinou o Capitão ouvir a missa e sermão
e mandou a todos os Capitães que se arranjassem
nos batéis e fossem com ele
e assim foi feito – e mandou
armar um pavilhão num ilhéu
e dentro levantar um altar muito bem arranjado
e fez dizer missa, a qual disse
Frei Henrique de Coimbra, em voz entoada
e na mesma voz oficiada
pelos outros padres (oito frades e oito clérigos)
e junto ao altar a cruz (chanfrada a enxó)
com as armas do Rei – e ali
estava o Capitão com a bandeira de Cristo
com ela saíra de Belém
e ali esteve sempre alta, da parte do
Evangelho

E com seus corpos tingidos de vermelho
assistiram à missa e se ajoelharam como nós
e levantavam-se e levantavam os braços
e depois da missa muitos deles
tangeram corno ou buzina e começaram
a dançar e cantar um pedaço
e o Capitão mandou ao degredado Afonso Ribeiro
e a outros dois degredados – e a Diogo Dias
que foi almoxarife de Sacavém,
por ser homem alegre
gracioso e de prazer
com quem eles folgavam
que se metessem entre eles.
E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita
e meteu-se a dançar com eles
tomando-os pela mão – e eles
folgavam e riam e andavam com ele
muito bem, ao som da gaita:
depois de dançarem fez-lhes umas voltas ligeiras

andando no chão, e dando salto real
de que eles se espantavam  e riam e folgavam

e Diogo Dias
                               (era irmão de Bartolomeu
                                do Cabo das Tormentas)
os segurou e afagou muito
mas de repente
tomaram uma esquiveza como cabritos-monteses
e se foram para os altos.

E vimos muitas palmeiras
e comemos seus palmitos.

E na sexta-feira, primeiro de maio,
voltamos em terra com nossa bandeira
e fomos desembarcar rio acima
e no lugar melhor para ser vista

Arvoramos a cruz

lavrada por dois carpinteiros
e o Capitão mandou marcar o sítio onde seria fincada
e a cruz foi levada em procissão
como os freires e clérigos cantando.
E eles depuseram arcos e setas
e nos ajudaram a levar a grande cruz
e estiveram à sombra dela
e a cruz plantada – obra de dois tiros de besta do rio –
ali ficou com as armas
e a divisa de vossa Alteza.

Eles são inocentes como Adão
não lavram nem criam
nem há boi ou vaca cabra ovelha ou galinha
e não têm adoração nem idolatria
e um deles acenou, chamou os outros –
acenou com o dedo para o altar
e depois apontou com o dedo para o céu.
Até agora não podemos saber se há ouro
ou prata ou outros metais nesta terra.

contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar
é salvar esta gente.

Ao partir fomos beijar a cruz
e eles a beijaram como nós
e o Capitão deixou aqui dois degredados
e dois grumetes sumiram de bordo –
não voltaram mais – (a terra enfeitiçou os dois)
e de manhã, prazendo Deus,
fazemos nossa partida
rumo a Calicut.

E estas são as letras a escritura do escrivão
na primeira manhã do mundo.

Invenção do Mar
Gerardo Mello Mourão
Editora Record – edição 1997