Era um lugar propício para o descanso e a leitura. E eu voltei a ler como o não fazia desde os vinte anos. Desordenadamente, alternando géneros e temas. Li a história da Revolução Russa de Trotski, novelas mágicas do peruano José María Arguedas – guindado para sempre aos meus altares da literatura latino-americana – a História da Conquista da Nova Espanha de Bernal Diaz del Castillo, e a obra de Garcilaso de la Vega sobre o Incário.

      Poderia inferir-se que essas leituras me ajudaram a amadurecer. Mas isso não aconteceu. A reflexão sobre o conhecimento acumulado desenvolvia-se em compartimentos estanques. A iniciação nas grandes civilizações da Mesoamérica e na História dos antigos peruanos fascinou-me e lançou raízes tão profundas que o seu estudo se tornou permanente. Cuauhtemoc ocupou um lugar definitivo na galeria dos meus heróis e cada vez que a vida me ofereceu a oportunidade de rever Teotihuacan escrevi com emoção sobre a cidade dos antigos deuses mexicanos.

      Mas a paixão pelas culturas mortas da América pré-colombiana e o descobrimento do mundo dos comuneros peruanos do nosso século foi fonte de sentimentos e estados de espírito separados por uma muralha intransponível das ideias e sentimentos que o painel da grande e maravilhosa tempestade das Revoluções Russas desencadeou em mim.

      O assalto ao Palácio de Inverno assombrara o mundo sete anos apenas antes de eu nascer. Mas ao recordar aqueles dias, tinha a sensação de que haviam transcorrido séculos. Não conseguia relacionar a Revolução com a imagem, aliás muito confusa, que me chegava da URSS actual. Não via no PCUS o partido Lenine, a quem já então admirava.
 
      De certa maneira, Trotski contribuiu mais do que Marx e Engels para reforçar a atracção que sobre mim exercia qualquer revolução contemporânea. Eu tinha, como já esclareci, um conhecimento pouco profundo da obra dos dois clássicos do marxismo. E no livro de Trotski o que empolgou não foi o autor mas os factos, os homens, as lutas que desembocaram na ruptura revolucionária. Significativamente passou algum tempo antes que retomasse contacto com a obra de Trotski.
 
      São Paulo já era então uma metrópole gigantesca. Mas eu movimentava-me numa área mínima da megalopólis. Naqueles dias ainda se dizia <> quando nos deslocávamos ao centro. Sem ser provinciana, São Paulo envolvia os moradores na atmosfera de intimidade própria das pequenas cidades. Nos bairros residenciais predominavam moradias de um ou dois pisos, com jardins. O relacionamento entre os vizinhos lembrava o das nossas vilas. A intelligentsia formava um mundo à parte. Havia uma interacção muito peculiar entre a Universidade, o Teatro, o Cinema, as Artes Plásticas e o Jornalismo. Quase todos se conheciam. Um ano depois da minha chegada tinha amigos, com diferentes níveis de intimidade, em todas essas áreas. No relacionamento estavam ausentes as pompas européias. O diálogo fácil viajava dos lugares públicos para as reuniões de ambiente familiar. Um dia, quando jantava com o economista Nuno Fidelino de Figueiredo, filho do prof. Fidelino de Figueiredo e tio do economista Jorge Figueiredo, então um garoto de 14 anos, encontrei Florestan Fernandes pela primeira vez. A amizade que se estabeleceria entre nós foi um sentimento profundo, que me trouxe alegria. Dela me orgulho. Não creio que possa nascer um revolucionário mais autêntico e puro do que aquele homem simples, gigante da Sociologia no século 20.

      A Revolução Cubana iria mudar a vida na América Latina. Mas nós não tínhamos a percepção de que o imperialismo norte-americano, alarmado, iniciava a busca de uma estratégia de hegemonia sobre o Continente que produziria efeitos também na área cultural. Em 1959 e 1960, a Europa era ainda para os intelectuais brasileiros o pólo de atracção. O francês continuava a ser entre eles a língua estrangeira de referência. As visitas de grandes figuras da cultura europeia, frequentes, mobilizavam o tout São Paulo do mundo intelectual. Três delas sobretudo: as de Aldous Huxley, André Malraux e Jean Paul Sartre – Simone de Beauvoir.
 
      Huxley marcara duas gerações com o Admirável Mundo Novo. Estava quase cego e caminhava apoiado numa jovem secretária. Correu um pouco pelo Brasil. Quis conhecer o candomblé e a macumba e Jorge Amado foi o seu guia. Constou que se apreciaram, não obstante, como artistas, se situarem nas antípodas.

      Estive presente no encontro do autor de Contraponto com intelectuais paulistas no Teatro Municipal. Não esqueço que nas suas palavras de abertura sublinhou ser o oposto de <>. Não podia convencer porque tudo nele desmentia a afirmação. O corte do fato branco, os gestos, o porte senhorial, a linguagem e a pronúncia denunciavam a sua origem de classe, como neto de Thomas Huxley, colega e amigo de Darwin.
 
      Apesar do seu distanciamento, encantou. O panorama sombrio que esboçou para o futuro imediato, partindo do que estava a acontecer, trouxe para a sala o fantasma da sua assustadora utopia. O tema da pergunta que lhe dirigi foi o seu pessimismo. Não haveria uma saída para a humanidade, estavam fechados para ele os caminhos da esperança? A sua resposta surpreendeu. Pessimismo e optimismo apareciam-lhe como conceitos de fronteiras muito amplas. O cérebro humano nos seus múltiplos andares tem espaço para o pessimismo nuns e para o optimismo noutros. Ao contrário do que muitos leitores supunham ele não fechava a porta à esperança. A presença do humor na sua obra era disso confirmação. O riso, comentou, é inseparável da esperança.
 
      André Malraux desembarcou em visita oficial, como ministro do general De Gaulle. Numa conferência de imprensa imediata, no átrio do hotel, um colunista mundano abriu o diálogo com uma pergunta pouco inteligente: <>. <> respondeu. <>.
 
      O sorriso desvaneceu-se quando indaguei quem falava connosco, o autor da Condição Humana e dos Conquistadores, o combatente da Revolução Espanhola, ou o ministro gaullista da Informação, defensor da política da <>? Malraux, sentado, apoiou as mãos nos braços da poltrona e projectou o corpo para cima num gesto de cólera. Sem olhar para mim, num tom de voz elevado, comentou: <<É sempre a mesma cantilena. Eis Malraux, o neofascista, o colonialista que chega. Assim, não, meus senhores!>>
 
      A conferência de imprensa ficou estragada.
 
      Horas depois o Consulado da França promoveu uma recepção em honra do ministro-escritor na Casa de Portugal, porque os convidados eram centenas e a missão francesa não dispunha de instalações adequadas. Malraux pronunciou um discurso que fez chorar muitos dos presentes. Eu sabia que era um extraordinário orador. Ele fez a demonstração nessa tarde. O tema, o gesto, a beleza das palavras, as pausas, o eco da sua voz rouca, profunda, foram gerando uma corrente de emoção que transformou os franceses ali reunidos num corpo único, identificado com o orador.
 
      A estrutura do discurso foi insólita. Malraux partiu da pergunta que eu lhe fizera, alterando-a, para uma evocação pessoal que iria estimular o sentimento patriótico. Começou assim: <> (Por que escolhi a França).<>
 
      A seguir, em brusca transposição, no seu belo exercício de oratória, pulou para o ano de 44 quando, integrado numa brigada do I Exército Francês, foi ferido em combate no avanço sobre a Alsácia. Prisioneiro dos alemães, abandonado sobre um catre imundo, meditava sobre a guerra, a morte e a libertação próxima da pátria quando uma velhinha francesa, passando pelos guardas da Wehrmacht nazi, indiferente às suas intimações, se aproximou e limpando-lhe o sangue do rosto, o fez tomar um gole de água. Na doce anciã, Malraux viu a imagem da França heróica e eterna.
 
      Começaram então a descer lágrimas quentes pelas faces dos compatriotas de André Malraux que o escutavam. O núcleo do discurso foi a apologia da política gaullista.  A visita do binómio Sartre-Beauvoir foi, de longe, a mais interessante pelo significado político. Sartre actuava na altura como compagnon de route dos comunistas. Defendia com entusiasmo, quase com paixão, a Revolução Cubana; enaltecia a gesta da luta que o povo vietnamita travara contra o colonialismo francês; e condenava com indignação a nova guerra colonial que tinha a Argélia por cenário. As suas conferências despertaram tamanho entusiasmo que numa delas os estudantes arrombaram as portas do teatro onde ele falava, quando a sala já estava cheia como um ovo.
      Júlio de Mesquita Filho ditou-me três editoriais muito críticos. Limitei-me praticamente a dar forma à sua condenação das atitudes políticas assumidas por Sartre e ao que ele considerava ser o elogio da subversão que emergia das conferências pronunciadas. Paradoxalmente, o Estado desaprovava a política colonialista da França. Mas defender a Revolução Cubana era já então inaceitável para o jornal. Uma prolongada entrevista do escritor na televisão desagradou-lhe particularmente. O tradutor, pormenor curioso, fora um jovem e brilhante professor de Sociologia, Fernando Henrique Cardoso, então defensor firme do marxismo.
 
      JMF foi felicitado pelos amigos no aristocrático Automóvel Clube. <> assim me disse, << caíram muito bem entre o povo>>. Senti a necessidade de o esclarecer sobre a minha posição. <>.

      Nem sempre lhe previa as reacções. Naquela manhã surpreendeu-me. Pousou em mim um olhar quase afectuoso e comentou: <>. À noite escrevi um artigo intitulado <>. Nele me identificava com o conteúdo do discurso político de Sartre no Brasil, fazia a apologia da sua obra de pensador e sugeria à Universidade de São Paulo que o convidasse para voltar ao Brasil. Somente uma permanência de alguns meses permitiria à juventude universitária brasileira extrair do contacto com um pensador como Sartre a riqueza da reflexão que aflorava nas mensagens transmitidas nas suas conferências. Com o rodar dos anos a minha opinião sobre a intervenção na política de Sartre – marcada por muitas guinadas – mudou. Mas isso não vem ao caso.
 
      No dia seguinte entreguei o texto a Júlio de Mesquita Filho. Ele leu com muita atenção. Do fundo dos seus olhos muito azuis subia uma luz de espanto. O que disse, entretanto, não me surpreendeu: <> E, apondo-lhe o seu visto, chamou um contínuo para que o encaminhasse ao chefe da Redacção.
 
      Uma comissão de alunos da Faculdade de Filosofia da USP apresentou-se dias depois no Estado para entregar uma carta dirigida à Direcção. Tive acesso a uma cópia. Era um abaixo assinado, felicitando o jornal por, finalmente, ter publicado um artigo decente sobre a visita de Sartre onde se formulava uma sugestão com a qual os signatários se identificavam plenamente.
 
      Tive a oportunidade de falar durante alguns minutos com Sartre. Ele tomara conhecimento do meu artigo e quis conhecer-me. Não sem ironia contou-me que Júlio de Mesquita oferecera na sua fazenda de Louveira um magnífico jantar em honra dele e de Simone de Beauvoir. A noite, exceptuado o encanto do cenário e a gentileza do anfitrião, fora, contudo, decepcionante. <> informou Sartre <>
 
      Para azar meu, Sartre também não me deu a oportunidade que eu esperava. Pedi-lhe que na linha das suas intervenções sobre a Argélia e o Vietname fizesse uma breve declaração sobre Angola, onde acontecimentos gravíssimos podiam ocorrer de um momento para o outro. Estávamos em Setembro de 1960 com a tragédia do Congo em desenvolvimento. Mas Sartre abanou a cabeça. Não dispunha de informações sobre a situação em Angola; não falava no vazio. Uma declaração abstracta, condenando o colonialismo português, sem relação com factos concretos, estava fora de questão. Mostrou-se irredutível.
 
      Sartre e Simone, por onde andaram, foram envolvidos pelo carinho e a admiração dos intelectuais progressistas. Dias depois de regressarem a França, um jornal paulista publicou uma notícia de poucas linhas que feriu a sensibilidade do mundo das Letras e das Artes do Brasil. Num dos hotéis onde se haviam hospedado fora encontrada uma mala com dezenas de livros dedicados por escritores brasileiros.

  

O tempo e o espaço em que vivi: I – Procurando um Caminho
Miguel Urbano Rodrigues
Campo das Letras Editores – 1ª edição, 2002