ERRÂNCIA.

      Apesar de que todo amor é vivido como único e que o sujeito rejeite a idéia de repeti-lo mais tarde em outro lugar, às vezes ele surpreen-de em si mesmo uma espécie de difusão do desejo amoroso; ele com-preende então que está destinado a errar até a morte, de amor em amor.

1. Como termina um amor? – O quê? Termina? Em suma ninguém – exceto os outros – nunca sabe disso; uma espécie de inocência mascara o fim dessa coisa concebida, afirmada, vivida como se
fosse eterna. O que quer que se torne objeto amado, quer ele desapareça ou passe à região da Amizade, de qualquer maneira, eunão o vejo nem mesmo se dissipar: o amor que termina se afasta para um outro mundo como uma nave espacial que deixa de piscar: o ser amado ressoava como um clamor, de repente ei-lo sem brilho (o outro nunca desaparece quando e como se espera-va). Esse fenômeno resulta de uma imposição do discurso amo-roso: eu mesmo (sujeito enamorado) não posso construir até o fim minha história de amor: sou o poeta (o recitante) apenas do começo; o final dessa história, assim como a minha própria morte, pertence aos outros; eles que escrevam o romance, narrativa
exterior, mítica.

2. Ajo sempre – teimo em agir, não importa o que me digam nem quais sejam meus próprios desencorajamentos, como se o amor pudesse um dia me fazer transbordar, como se o Bem Supremo
fosse possível. Daí essa curiosa dialética que permite que o amor absoluto suceda sem embaraço ao amor absoluto, como se, atra-vês do amor, eu tivesse acesso a uma outra lógica (o absoluto não
sendo obrigatoriamente o único), a um outro tempo (de amor em amor vivo instantes verticais), a uma outra música (esse som sem memória, sem construção, esquecido daquilo que o precede e o
segue, esse som é em si mesmo musical). Procuro, começo, tento, vou mais longe, corro, mas nunca sei que acabo: não se diz da Fênix que ela morre, mas apenas que renasce (posso então renas-
cer sem morrer?

Werther

      Desde que não estou transbordante e que no entanto não me mato, Werther é fatal a errância amorosa. O próprio Werther conheceu este esta-do – ao passar da “pobre Léonore” à Charlotte; na verdade o movimento não progrediu, mas, se Werther tivesse sobrevivido, teria reescrito as mesmas cartas para uma outra mulher.

 
Wagner      
 

3. A errância amorosa tem seus lados cômicos: parece um balé, mais ou menos rápido conforme a velocidade do sujeito infiel; mas é Wagner também uma grande ópera. O Holandês maldito é condenado
a errar sobre o mar até encontrar uma mulher de uma fidelidade eterna. Sou esse Holandês Voador; não posso parar de errar (de amar) por causa de uma antiga marca que me destinou, nos tempos remotos da minha infância profunda, ao deus Imaginário, que me afligiu de uma compulsão de fala que me leva a dizer “Eu te amo”, de escala em escala, até que qualquer outro escolha essa fala e a devolva a mim; mas ninguém pode assumir a resposta impossível (que completa de uma forma insustentável), e a errân-
cia continua.

Benjamin Constant

 
4. Ao longo de uma vida, todos os “fracassos” de amor se parecem (pudera: procedem todos da mesma falha). X… e Y… não soube-ram (puderam, quiseram) responder ao meu “pedido”, aderir à minha “verdade”; não mexeram uma vírgula do seu sistema; para mim, um não fez senão repetir o outro. E, entretanto, X… e Y… são incomparáveis; é da diferença entre eles, modelo de uma diferença infinitamente reconduzida, que retiro a energia para Benjamin recomeçar. A “mutabilidade perpétua” (in inconstantia constans) Constant que me anima, longe de esmagar todos aqueles que encontro sob um mesmo tipo funcional (não responder ao meu pedido), des-loca com violência seu falso ponto em comum: a errância nãoiguala, faz mudar de cor: o que volta é a nuance. É assim que vou até o fim da tapeçaria, de uma nuance a outra (a nuance é esse último estado da cor que não pode ser nomeado; a nuance é o
Intratável).

 

R.S.B.: conversa.

 

Roland Barthes
Fragmentos de um discurso amoroso
Tradução: Hortênsia dos Santos
Francisco Alves Editora
Rio de Janeiro, 1989