Boa noite, Pablo Neruda. Neste instante
Ouvi cantar o primeiro pássaro da primavera
E pensei em ti. O primeiro pássaro da primavera
Cantou, parece incrível. Mas ainda existem pássaros
Que cantam em noites de primavera.

Estou sozinho e tudo é silêncio. Meus filhos
Foram dormir. Minha revolta, provisoriamente
Também foi dormir. A verdade, poeta
É que te tenho presente, a cerveja está bem gelada
E o pior ainda está por vir.

Hoje pensei em Lorca. Vi- o nitidamente
Caminhando entre soldados. Seus olhos
Me olhavam entre dois canos de fuzis, desfigurados.
Hoje soube que teve medo, teve medo de morrer
Teve medo, mas não dizia.

Eu também tenho medo, meu irmão. Quem, em verdade
Com tanto amor à vida não tem medo? Lorca
Amava a vida, era um pássaro. Lembro o dia
Em que atirei num passarinho, eu era menino. Vi-o
Por entre a mira da espingarda, depois tombou ensangüentado.
Debrucei-me sobre ele, agonizava, tinha medo
Mas também não se queixava.

É estranho, poeta, é tudo imensamente estranho
Esta noite, esta presença tua e esta certeza
De que a morte ronda. Gabriela, tua velha mestra
Partiu, foi para o México. Quando a deixei no avião
Olhou-me com ternura e muita paz
Depois beijou-me o rosto e disse:
– No sé si nos veremos más.

Agora, no entanto, a noite, amigo
Se estende sobre nós, plantada de lírios
Faiscantes. Lorca morreu. Outros morrerão
Talvez tu, talvez eu. O inimigo
Possui fuzis, o que não impede a primavera
De ser saudada pelos pássaros.

A ti te atacaram pelas costas
Os vendilhões de tua pátria em forma de faca
Tua pátria em forma de faca, que um dia
Há de se erguer ensangüentada
Do sangue da covardia e da maldade.

 

Vinícius de Moraes – História Natural de Pablo Neruda
A elegia quem vem de longe
Apresentação de Ferreira Gullar
Companhia da Letras – edição 2006.
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