Eu matei a escritora Cristina Fontana Paz. Peço perdão, mas ela assim consentiu e não me arrependo. Pediu, no entanto, que justificasse o ato. Mais uma vez, desculpem-me.

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      Na primeira vez foi assim. Tateou no escuro, encontrou a chave e partiu. Não lhe interessava mais o depois. Queria o prazer do instante, um último suspiro suado e só. Correu para casa, cheirando a libido e satisfação. Mas sem alcançar o êxtase. Desde então, a melhor parte ela guardava para o final.
Sentava em frente ao computador e lembrava os instantes de luxúria e sacanagem que vivera há pouco. Imaginava um antes. Ela com um namorado lindo que trabalhava muito, não tinha tempo para nada. Mas o amigo dele era tão doce… Aí um dia ela não resistiu e pronto. Depois pensava no dia seguinte. Ela não tinha usado camisinha, se sentia suja, resolveu fazer exame de aids. Não agüentava a culpa, então contou para o namorado, que a esbofeteou na praça de alimentação do shopping e pronto.
Então descrevia tudo com minúcias e criava climas. Ia colocando sensações tão verdadeiras quanto a marca das suas unhas nas costas do homem com quem estivera há pouco. Era inegável, tinha muito talento. Narrava com tanta autoridade que não havia como discordar ou desconfiar daquelas palavras. O melhor eram os trechos eróticos, carregados de pornografia e delicadeza. Sentia um prazer imenso, uma descarga criativa, como um orgasmo que demora pra chegar e fica um pouquinho, quer mais, engana, se prolonga e vai. 

      Ela sabia que era estranha essa ânsia por escrever. O sexo despertava sua mente, a imaginação a mil por hora, os dedos de pianista iam compondo a história no teclado, feito um selvagem, com sua parte inata, que simplesmente flui. Mas o conteúdo em nada era primitivo, em nada era ingênuo ou singelo. Apenas humano ao extremo. Bem, vocês sabem.

      Em todos os textos, a trepada mudava ou revelava o rumo da trama. Às vezes nem se notava, no entanto tudo girava em torno dela. E isso não é assim tão humano.

      Essa história de corpos se preenchendo lembra mais a selvageria e o animal. Mas do jeito que se apresentava e os problemas e felicidades gerados eram coisa que só gente entende.

      Ela ia buscando inspiração nas companhias mais diversas e nos lugares menos prováveis e escrevia, escrevia, escrevia. E fazia muito sucesso, vendia mais e mais. A autora da moda, queridinha das editoras, reconhecida nas ruas e cada vez mais promíscua. Era um vício. Não importavam os cartazes, a lista dos mais vendidos, ou a roda de intelectuais da qual agora fazia parte. Queria somente descarregar aquela energia, fazer jorrar as idéias, conceber livros e livros.

      Gostava de dizer que tinha muitos amantes, mas era casada com a literatura, pois era para ela que se guardava e por ela voltava ansiosa à casa. Entregava-se inteira. Definitivamente, era fiel. Digo era porque, claro, não é mais. Desde que os conhecemos.

      Tudo tinha sido planejado para ser apenas uma foda rápida, mas terminamos nos empolgando e toda a magia que eu havia lido em seus livros parece que habitou a realidade. Aconteceu de ser perfeito. E, pela primeira vez, ela adormeceu suave, lânguida sobre o meu corpo.

      Acordou meio lenta, muito bonita. Sorriu e disse que tinha tempo para ficar mais e foi ficando e está. Por isso agora conto essa história. Ela não mais escreverá como antes e a culpa é minha. Desculpem. Mas é preciso dizer que ela escrevia pra justificar os amores vazios, as noites repetidas, as sensações pela metade. Não mais o fará. Aquela escritora que conhecem está morta.

      Ela não usava suas experiências para escrever, ela as provocava por isso. Estava adoecendo. Contar histórias passou a ser a razão de sua vida. Se não bastasse, transformou-se em marionete de si mesma. Era personagem e não autora. Ninguém pode viver assim. Por isso digo com convicção que não me arrependo: assassinei essa adorável escritora. Talvez tenha parido outras, ainda não sei. Desculpem.