Fico imaginando, ao comprar um livro em um sebo, o que leva alguém a se desfazer de um bem tão precioso quanto esse. Eu, ciumento dos meus; eu, para quem os livros são como uma extensão de mim mesmo; eu, que preciso tê-los ali, ao alcance da mão, para uma lida, uma relida, uma folheada, uma carícia em suas páginas já por mim tão conhecidas; eu não consigo entender como alguém abandonaria os seus livros. Sim, abandono, um sebo é um orfanato de livros, abandonados, largados na rua, sem pai nem mãe.

      Por vezes, penso que cheguei perto de compreender. Quando ruiu o muro de Berlim e parecia que o mundo havia chegado ao fim, o império anunciando uma cor única e cruel para o nosso futuro, adquiri em sebos bons livros de marxismo e de literatura socialista. Compreensível. Muitos haviam se desiludido, suas convicções, afinal, não eram assim tão sólidas, bem mais frágeis que os muros. Desfizeram-se dos livros, como a apagar um passado, uma condição que renegavam e que os livros ajudassem a identificar. Alguns chegaram a riscar seus nomes das páginas iniciais, para que não pudessem ser lidos, para que não pensássemos mal deles. Adquiri desses aos montes. Quase compreendi os seus antigos donos.

      Penso também que, nesses tempos bicudos, de vacas magras, alguém, premido por espantosas necessidades, dessas que espantam aos que nunca as conheceram, tenha vendido os seus livros. Não sem pena, não sem sentir uma dor profunda, dilacerante, mas é que a necessidade era maior, muito maior. Compreendo também esses, sei de perto a fome, fomos vizinhos durante largo tempo, vezes até ela habitava comigo, visitas rápidas, mas marcantes. Nesses gestos rudes e magros de hoje carrego muito dessa época. Nos sebos há também alguns desses, vindos da mais absoluta e pura necessidade.

      Mas outros, suprema crueldade, foram largados ali porque os seus donos não gostavam deles. Melhor dito, seus donos nem os leram, eram não-leitores, embora alfabetizados, embora dito cultos, refinados, mas eram não-leitores, livros não significavam para eles muita coisa, ocupados que estavam em outro mundo. Nem eles mesmos sabem como esses livros foram ter em suas mãos. Talvez tenham recebido de presente de algum amigo, ou alguém mais distante, desconhecedor dos seus hábitos; talvez tenham comprado em algum lançamento para o qual foram convidados e ao qual compareceram por pura obrigação, compromisso social. Esses largaram os livros sem que tal lhe fizesse a menor falta.

      Há, por fim, aqueles que estão ali vítimas da desilusão, do desengano. A culpa de terem ido parar nos sebos é de uma grande dor, um abandono, um amor ferido de morte, moribundo. O homem velho, cansado de ser enganado, uma, duas, três vezes, e que desistiu de amar e de viver e de perder tempo com a poesia. Ou a jovem mulher, abrindo ainda as portas da vida, ao descobrir que aquele livro, justamente aquele que o ex-amado lhe dera, também fora presenteado à outra. Não mais leria aquele livro, não mais leria aquele poeta, o poeta era, de certa forma, culpado pela sua dor e pelo seu sofrimento.

      Comprar um desses livros de poesia, então, é como disse uma amiga, amante literária, dar uma segunda chance a eles, ofertar-lhes novamente a condição de comover e de tocar um coração, uma alma, um peito aberto.

      Por isso compro livros em sebo, e guardo-os comigo, e os presenteio. Esvazio os orfanatos, oferto-lhes novamente uma casa, um lar, livro-os do abandono triste e empoeirado ao qual foram condenados, em todos os casos, em todos, sem que de nada fossem culpados.