__ Pepe Satan, pepe Satan, aleppe!

brada Plutão com sua voz irada.

Para que meu denodo não discrepe

 

Diz o sábio gentil: — Não temas nada.

Apesar do poder que ele se arroga

Jamais impedirá a nossa entrada.

 

E então Virgílio estas palavras joga

No rosto de Plutão: — Lobo cruel

sei que tua vontade nada voga!

 

Viemos por ordem do alto onde Miguel

Quando te revoltaste castigou

o teu imenso orgulho, alma revel!

 

Como as velas que o vento destroçou

ao derrubar o mastro a fera horrenda

possessa sôbre a terra baqueou.

 

Do quarto círculo tomando a senda

do abismo onde se vê toda a maldade

do universo, descemos sem contenda.

 

Ó justiça de Deus! Quem na verdade

Senão vós com os tormentos que assisti

enche os homens de culpa e iniqüidade!

 

Como em Caríbides, também aqui,

iguais às ondas e com igual furor,

em choque e confusão as almas vi.

 

Entre brados e urros de rancor,

os grupos se golpeiam mutuamente

confundindo o agredido com o agressor.

 

E no embate se ferem frente a frente

gritando: — Perdulários! – Avarentos!

Cada qual mais raivoso e mais veemente.

 

Assim em meio de cruéis lamentos,

dão as voltas ao círculo em que estão

com os mesmos vitupérios e lamentos.

 

De todos os semicírculos então

os mesmos choques repetir-se eu via.

E enchia-me de angústia o coração!

 

Digo: — Ó mestre! saber eu bem queria

se qualquer do que vemos tonsurado

como padres à Igreja pertencia.

 

Êle responde: — Está verificado

que clérigos por mera ostentação

os bens em luxo haviam dissipado.

 

Latindo os grupos, como late o cão,

ao chegarem aos pontos terminais

eles voltam à mesma danação.

 

Aqueles que os cabelos não têm mais

são eminentes clérigos ávaros,

pois aqui dentro há papas e cardeais.

 

E falo então: — De tudo já me aclaro,

mas diga-me se irei reconhecer

alguém que vejo aqui em desamparo?

 

— Quem vilmente viveu até morrer

já irreconhecível se tornou

e creio que impossível de o rever.

 

Prossegue o mestre: — Uma visão ficou

de cabeças raspadas, mãos trancadas,

como jamais ninguém imaginou.

 

E estas lutas intérminas travadas

entre ávaros e pródigos não mais

merecem ser por nós aqui faladas.

 

Podemos ver a duração fugaz

da prodigalidade variada

que a certos homens a Fortuna traz.

 

O ouro todo da terra aproveitada

não basta nunca para repousar

uma só alma ansiosa e castigada.

 

— Mestre – pergunto eu – como explicar

o poder da Fortuna que à vontade

concede os bens como te ouvir falar?

 

Retruca o mestre: — Ó cega humanidade!

Como a ignorância a inteligência ofende.

Do que penso direi toda a verdade.

 

Este cujo poder tudo transcende

criando  o céu e a terra que conduz,

e em qualquer parte a sua força esplende,

 

por todos repartiu a sua luz

tendo a igualdade como condição

que a mais humana aspiração traduz.

 

por todos repartiu a sua luz

tendo a igualdade como condição

que a mais humana aspiração traduz.

 

Os bens se estendem dentro da razão,

De família em família normalmente,

indo de uma nação a outra nação.

 

E uma nação é grande ou decadente

segundo quer o julgador supremo

oculto nos vergéis como a serpente.

 

As modificações de que não temo

qual o sábio capaz de as evitar?

Elas vão de um extremo a outro extremo.

 

Não há tréguas. Jamais hão de parar.

Levadas são pela necessidade.

Tudo tem neste mundo de mudar.

 

É a grande lei que, embora desagrade

a quem a deveria enaltecer,

se impõe com poderosa autoridade.

 

Mas na glória em que está sem conhecer

as maldições humanas se conforta

com a força interior de seu poder.

 

E descemos enfim nesta hora morta

Do declínio dos astros ao local

Onde somente a compaixão comporta.

 

Passamos deste círculo do mal

ao lado oposto onde uma fonte impura,

formando vai um grande lodaçal

 

no final de um regato de água escura,

cujo curso seguimos lado a lado

num clima de tristeza e de amargura.

 

Este regato quando encaminhado

por negra encosta ao pântano fervente

Estige passa então a ser chamado.

 

Atento vi no tenebroso ambiente

pessoas nuas de semblante irado

que se feriam furiosamente,

 

mas não com as mãos, cada um era atacado

com os dentes, a cabeça, o peito, os pés,

sendo entre si aos poucos devorados.

 

Disse o Mestre: — Êstes homens tão cruéis,

que vês em luta, foram quando vivos

ao ódio, à ira, ao rancor fiéis.

 

Agora neste lodo estão cativos,

e há no fundo do lago em efervescência

muitos que sofrem por iguais motivos.

 

— Ó dolorosa e trágica existência

que sob a luz do sol todos levamos

na prática brutal da violência!

 

Hoje no lodo como nós penamos! –

era assim a tristíssima canção

que das almas iradas escutamos.

 

E andamos numa extensa região

na margem seca onde ninguém percorre

entre gritos de dor e de aflição.

 

E assim chegamos junto de uma torre.

 

Poemas da Liberdade
Uma antologia poética de Dante a Brecht
Edmundo Moniz
Civilização Brasileira
1967