A segunda  mesa de discussões do seminário Democracia e Direitos dos Trabalhadores, intitulada  “Direito dos Trabalhadores e Reforma Trabalhista”,  ocorreu na tarde da sexta-feira (17), no Novotel Jaraguá, no centro de São Paulo. Dela participaram a ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Delaíde Alves Miranda Arantes; o ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto; o presidente da Central das Trabalhadoras e Trabalhadores do Brasil (CTB), Adilson Araújo; e o presidente da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (Abrat), Roberto Parahyba.

Insuficiências de um projeto

Adilson Araújo destacou a necessidade de que a classe trabalhadora tenha papel decisivo e crítico na discussão sobre as reformas pautadas pelo atual governo. Araújo pontuou que o quadro sofre influência de uma  conjuntura macro, marcada por grave crise do sistema capitalista global. Em âmbito local, ressaltou o esgotamento do “projeto político” levado a cabo no Brasil pelos governos Lula e Dilma.

“É claro que nós temos um momento que agravou por demais a crise política, decorrente do esgotamento de um projeto político. Eu acho que seria justo que a gente pudesse compreender  também os signos desse processo, que eu diria assim: governos Lula e Dilma, ascensão e queda. Nós temos o início de uma transição, que rompe com o modelo ultrapassado, que abre uma perspectiva mas, ao que tudo parece, à luz do estágio em que nos encontramos, nós ficamos devendo o debate da transição. E quando nós falamos hoje em reforma, na minha opinião, a reforma não ganhou a devida centralidade. Portanto, o que a gente discute hoje, à luz do que está colocado, é a contrarreforma”, destacou Adilson Araújo.

Na avaliação do dirigente sindical, à parte dos inegáveis avanços obtidos no campo social, o período dos governos comandados pelo PT e seus aliados não conseguiu avançar na realização de reformas e no aprofundamento de um projeto político. Deixaram de ser aprovadas, por exemplo, convenções da Organização Internacional do Trabalho que impedem a demissão imotivada e garantem o direito de greve no serviço público. Assim, a classe trabalhadora ficou em posição desfavorável diante do avanço conservador,  que apóia propostas pelo fim da CLT e da Previdência, entre outras conquistas históricas.

“O fato é que nós chegamos, em 2014, com 4,3% de trabalhadores desempregados. Uma das menores taxas de desemprego do mundo. E por que nós deixamos que tudo isso sumisse, como a areia de uma ampulheta? É porque também faltou um projeto. Nós ficamos devendo o debate das reformas. E quando eu insisto num debate das reformas é porque temos que levar em consideração que essa alternativa era exatamente em resposta a uma insuficiência. Porque se a gente levasse em consideração, nós não estaríamos correndo o risco que estamos correndo hoje. Porque nós não podemos negar. Por que nós não  conseguimos regulamentar  a Convenção 158 da OIT, que pôs  fim a demissão imotivada? Por que nós não conseguimos regulamentar a Convenção 151, para garantir o direito de greve e negociação coletiva e organização sindical no serviço público? Essas são insuficiências e, evidentemente,  isso tem rebatimento com o drama que a gente vive hoje”, declarou o presidente da CTB.

Araújo avaliou que as tentativas de mudança da legislação trabalhista, que priorizam o “negociado sobre o legislado”, se inserem em um contexto no qual o capital busca enfraquecer o poder de negociação dos trabalhadores, principalmente das categorias menos organizadas. No mesmo sentido, ocorrem  pressões para o aumento da terceirização, recentemente aprovada no Congresso, sob pretexto de estimular a geração de empregos, mas que resultam na precarização dos contratos de trabalho.

“O que é o negociado sobre o legislado? Eu sou da categoria bancária. Nós utilizamos do negociado sobre o legislado, mas não para pior, para melhorar. Porque nós temos a garantia da CLT. Nós temos conquistas convencionadas e buscamos negociar a partir de um marco. A base é a convenção coletiva. E é claro que a correlação de forças pode ser um termômetro. Por exemplo, nessa última campanha salarial dos bancários, a categoria fez uma greve de 31 dias. Tivemos que assinar acordo com reajuste abaixo da inflação por dois anos. Mas isso é uma categoria que tem organização nacional, que tem poder de pressão. Os sindicatos têm grande representatividade”, lembrou.

“Agora, eu pergunto: e a instituição do negociado sobre o legislado numa categoria que já sofre as incongruências da terceirização, por exemplo, como é o setor elétrico? Os companheiros do setor elétrico dizem o seguinte: na nossa convenção, nós temos um trabalhador formalmente contratado com salário base de 1.700 reais. E essa mesma empresa, que tem as subsidiárias, as chamadas “hub”, praticam atividades na empresa, na área meio, com jornada maior e contrato de 900 reais. Eu pergunto, à medida que você generaliza, que você permite a negociação, não é evidente que a corda vai partir no lado mais fraco?”, questionou Araújo.

A legitimação da precariedade

A polêmica acerca do negociado sobre o legislado e a terceirização esteve também no foco da exposição do presidente da Associação Brasileira dos Advogados do Trabalho (Abrat), Roberto Parahyba, que traçou um amplo panorama sobre o contexto no qual se inserem tais propostas. O causídico lembrou que foram resgatados do trabalho análogo à escravidão nada menos que 50 mil trabalhadores, nos últimos 20 anos. A maioria desse contingente era composto por terceirizados, destacou Parayba.

“Para fazer essa pintura da realidade do Brasil, da triste realidade do Brasil, dos parcos direitos sociais que pretendem ser solapados por essas reformas trabalhistas, não podemos deixar de mencionar que o Brasil ocupa os principais lugares na disputa do ranking mundial de acidentes do trabalho. São 700 mil acidentes de trabalho notificados por ano, sem contar os que não são comunicados pela empresa. Como todos nós sabemos, muitas empresas deixam de emitir a CAT para não viabilizar que o trabalhador adquira a estabilidade acidentária. Esses dados tristes são oficiais, dados reais”, arrematou o advogado.

Parahyba expôs uma situação que evidencia a fragilidade do trabalhador brasileiro, que tem o mais baixo salário entre as 20 maiores economias do mundo. “O salário mínimo do Brasil é metade do salário mínimo pago na Argentina”, argumentou. No quesito gênero e raça, lembrou que as mulheres negras recebem, em média 35% menos que homens brancos.  

Roberto Parahyba assinala que as reformas propostas pelo atual governo levam o país a caminhar na contramão da história. Ele lembra que, desde a Segunda Guerra Mundial ocorreu o fenômeno da constitucionalização do direito trabalhista, fator que deu a esses textos o status de direitos fundamentais. “Essas reformas trabalhistas estão indo num sentido diametralmente oposto desse que está acenado na Constituição Federal”, analisa.

“Esse discurso de valorização da negociação coletiva é uma falácia, que está sendo indevidamente apropriada por pessoas que estão longe de querer a valorização da negociação coletiva. Está muito claro, muito evidente e transparente que o objetivo final é reduzir os direitos trabalhistas. Quando se fala de negociação coletiva implica, necessariamente, em você adotar o princípio da liberdade sindical”, explicou o presidente da Abrat.

Parahyaba asseverou que falta ao país a instituição de uma série de práticas para proteger a atividade sindical, sem as quais não faria sentido amplificar a discussão sobre incentivar a negociação coletiva em detrimento do cumprimento puro e simples da legislação trabalhista.

“Se você quiser albergar, ampliar a negociação coletiva, tem que, antes, possibilitar o exercício efetivo da atividade sindical”, ponderou. “Você tem que inviabilizar a influência indevida do empregador sobre o seu empregado. Notadamente a de ele proibir que o empregado exerça sua atividade sindical. Então, tem que ter essas medidas protetivas, que em outros países chamam legislação de sustento, que são regras básicas, elementares, que não tem aqui no Brasil. O Brasil não tem essa proteção para as liberdades sindicais, que é pressuposto para a caracterização da liberdade sindical”, assinalou o advogado.

Precarização como saída para a crise

Para a ministra Delaíde Arantes, do Tribunal Superior do Trabalho, as propostas de mudança na legislação trabalhista correspondem a mais uma tentativa de implementação do neoliberalismo no país. Ela destacou que, em todos os lugares do mundo onde isso ocorreu, o mesmo roteiro deu seguimento à desvalorização da política, do Judiciário e da legislação trabalhista. “Tudo isso faz parte do esquema do neoliberalismo para implementar sua política de mercado”, disse.

“Esse segmento, que hoje investe contra a CLT, contra a Justiça do Trabalho, é o mesmo que atuava desde 1941, quando se instalou a Justiça do Trabalho. Ele não se conforma com a Justiça do Trabalho”, analisou a magistrada.  “É o mesmo segmento que, quando foi promulgada a Emenda Constitucional 72, estendendo os direitos dos trabalhadores domésticos, que empregam no Brasil em torno de seis milhões de pessoas, das quais 90% mulheres e mais de 60% mulheres negras, essa mesma sociedade dizia ‘vai haver um desemprego em massa. Todos os patrões e as patroas vão despedir os trabalhadores domésticos'”, asseverou Delaíde Arantes.

No que se refere à questão relativa à defesa do negociado sobre o legislado, a ministra do TST pontuou que, na verdade, tal instituto já existe há tempos e ganhou reforço na Constituição de 1988. “Mas ele exista para negociar benefícios para o trabalhador, além da legislação. Agora, para negociar aquém, é o que está colocado nessa tentativa de implementação”, afirmou. “A saída para a crise tem que ser encontrada na economia, não na precarização do trabalho”. defendeu a ministra.

Delaíde Arantes atentou para a disparidade do poder de alcance entre os que defendem as reformas do governo, com apoio da mídia, e seus críticos. “Logo mais, à noite, tem um cidadão chamado Bonner e uma bonita moça chamada Renata Ceribeli, que falam para 30 milhões de pessoas, brincando. Eles falam a favor das reformas, a favor de tudo o que é proposto institucionalmente pelo governo”, ressaltou, referindo-se aos apresentadores da TV Globo.

A ministra avaliou ainda que as propostas de reforma baseiam-se na premissa de um estado mínimo, que deve ser combatida. “Porque a proposta é de estado mínimo para o povo e para os trabalhadores, não para as teles, não para as grandes redes de televisão. Não para o sistema financeiro”, pontuou Delaíde Arantes. A ministra lembrou que o país ainda não erradicou o trabalho infantil e o análogo à escravidão, além de acumular comprovado desrespeito aos direitos básicos dos trabalhadores.

“Eu poderia ainda discorrer sobre algumas questões, mas finalizo dizendo que a experiência do contrato temporário em outros países não gerou empregos. Ela só precarizou. O que as empresas fazem quando é aprovado o contrato temporário? As empresas despedem os empregados efetivos e contratam empregados temporários. Não gera mais emprego, apenas precariza”, concluiu.

Trabalhador como custo, trabalho como mercadoria

Cezar Britto, ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), teceu argumentação sobre as diversas mentiras que estão sendo empregadas para defender reformas que resultariam, em última análise, no fim do Justiça do Trabalho e do Direito Trabalhista.

Britto também lembrou que o reformismo do governo tem o apoio da Rede Globo, classificada por ele como “Rede Goebbels”, em alusão ao ministro da propaganda do regime nazista. É atribuída a Joseph Goebbels a afirmação de que a mentira repetida mil vezes vira verdade. No caso em questão, a mentira reforçada estaria relacionada à afirmação de que a CLT atrapalha o desenvolvimento do  Brasil.

Ao defender a modernização da Justiça do Trabalho, o ex-presidente da OAB enfatizou a necessidade de manutenção do papel do trabalho como fator de dignidade. Britto apresentou uma alentada análise histórica relativa ao trabalho que, em seus primórdios, era visto como uma espécie de castigo. A leitura da atividade laboral como promotor da dignificação da pessoa humana, apontou o jurista, teve início apenas como resposta a movimentos revolucionários, que questionavam o domínio dos trabalhadores por outras classes sociais, notadamente nos casos da Revolução Francesa e da Revolução Russa.

Britto assinala que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) surgiu em 1919, apenas dois anos após a Revolução Russa, de 1917. “Em 1919, começa o mundo capitalista a formular esse conceito evolutivo do trabalho que sai, repito, de castigo, servidão, apropriação, e passa a ter proteção. Assume uma nova função, de dignidade da pessoa humana, a partir da OIT e de toda a legislação pós-1919”, afirma.

A partir desse momento, lembra Cezar Britto, o trabalho e os direitos dos trabalhadores entram na agenda política como uma resposta para evitar a adesão da classe trabalhadora aos ideais comunistas. A mudança de paradigma se dá por duas vertentes, uma delas favorável ao estado de bem-estar social e outra com perfil autoritário.

“A vertente autoritária, que é a de Mussolini, apareceu em 1922, pós-OIT e cinco anos após a Revolução Comunista. Em 1933, Salazar, em Portugal; 1933, Hitler, na Alemanha; 1937, Estado Novo, no Brasil, e Estado Novo, na Espanha”, elencou. “Surge essa visão autoritária em relação ao movimento sindical, mas mantendo a ideia de que é preciso conceituar o trabalho como fator de dignidade da pessoa humana. Daí porque a CLT regula essa discussão. Porque se dizia assim: se eu não concedo direitos, se não reconheço o trabalho como fator de dignidade da pessoa humana, os trabalhadores vão para o mundo comunista, vão ser atraídos para ele”, ponderou Britto.

Para o ex-presidente da OAB, a queda do Muro de Berlim, em 1989, serviu como um divisor de águas, no qual a defesa do trabalho como fator de dignidade humana começou, aos poucos a se enfraquecer.

“Começa-se a mudar esse conceito do trabalho. Falar em competitividade, falava-se em proteção ao capital e não mais em proteção à pessoa humana. De 1989 para cá, essa mudança vai se ampliando. E chega agora no seu auge”, defende Britto. “O governante de plantão, eleito a partir do pato da Fiesp, nos dá esse presente com mais força, dizendo que é preciso transformar o trabalho em mera mercadoria e o trabalhador em custo de produção. Essa é a visão que se tem hoje do mundo do trabalho. Ninguém mais fala em proteção da pessoa humana, se fala em proteção ao capital, ao capitalista”, sintetiza.

Cezar Britto, contudo, vê a mudança como fator positivo, pois acredita que, atualmente, as pessoas estão se mostrando realmente como são. “Hoje as pessoas se assumem. Falam o que pensam. E eu já sei quem são elas”, pontua.

“As pessoas estão se assumindo efetivamente como elas são. E esse é o debate que nós estamos enfrentando. E aí, eu pergunto, esse mundo então, em que as máscaras caem, é um mundo para pessimismo? Eu queria terminar falando de otimismo. Eu sou um otimista sobre o que está acontecendo hoje. Porque agora eu sei quem é meu adversário. Ele já não me dá um abraço, não. Não me dá a mão e diz que eu sou um cara legal”, finalizou o jurista.